Edição 388 | 09 Abril 2012

A bios humana: paradoxos éticos e políticos da biopolítica

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Castor Bartolomé Ruiz

“A nova biopolítica inverte a perspectiva de Hobbes ao propor a diluição do limiar artificial da sociedade, que deve ser compreendida como prolongamento da natureza biológica do ser humano”, aponta Castor Bartolomé Ruiz

“Os condicionamentos biológicos da natureza humana são inquestionáveis, sua influência é importante. Contudo, o que diferencia o ser humano dos outros seres vivos é que, entre os estímulos da sua natureza e a resposta que ele decide implementar, há uma mediação simbólica do sentido. O ser humano cria sentido para tudo o que sente. Tudo o que emerge da natureza humana aparece configurado desde a interioridade do sentido. O sentido não é imposto pela natureza, é criado pelo sujeito e pela sociedade. O impulso é natural, o sentido é criado historicamente”. A ponderação é do filósofo e professor da Unisinos, Castor Bartolomé Ruiz, em artigo escrito especialmente para a IHU On-Line. Segundo ele, “a potencialidade da bios humana de significar simbolicamente as pulsões naturais remete à sua abertura para a alteridade. O ser humano é o único ser vivo conhecido que se relaciona com o mundo como um outro, e com o Outro como um semelhante em quem reconhece um desdobramento de si”.

Castor Bartolomé Ruiz é o coordenador e conferencista do curso Filosofia e sociedade: A biopolítica, a testemunha e a linguagem. (Des) encontros filosóficos: M. Foucault, H. Arendt, E. Levinas, G. Agamben, cuja temática desta segunda-feira, 09-04-2012, é Michel Foucault, a biopolítica e a soberania. Em 02-04-2012 falou sobre Michel Foucault, a biopolítica e o cuidado da vida. Para conferir a programação completa do evento, acesse http://bit.ly/AqEfwa. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em filosofia da Unisinos, é graduado nessa área pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia, pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

Confira o artigo.


A vida tornou-se a “temática” central que articula as práticas discursivas da contemporaneidade. O discurso sobre a bios excedeu os âmbitos da medicina e da biologia para invadir todos os campos da existência humana. Notoriamente o discurso da bios penetrou em áreas tão remotas do seu limiar original como a administração, o direito, a educação, o Estado e a economia política. A vida em geral e a vida humana em particular foi objetivada como elemento produtivo das instituições modernas. Muitas das lógicas sociais modernas se articulam em torno do governo e administração da vida humana como recurso que pontencializa todos os demais recursos. Esse princípio aproximou as ciências naturais da bios das práticas sociais, originando o que viemos denominando de biopolítica.

Roberto Esposito , em sua obra Bíos, biopolítica e filosofia, propõe que a biopolítica tenha sido desenvolvida conceitualmente em três momentos bem delimitados, com perspectivas diferenciadas. Num primeiro momento, o surgimento do conceito de biopolítica em autores como Rudolph Kjellen, 1916, Jacob von Uexküll, 1920 e Morley Roberts, 1928, esteve vinculado a uma leitura organicista da sociedade. O Estado era lido em estrita clave biológica. Nessa lógica, a teoria médica e biológica dos agentes patológicos que ameaçam a sobrevivência do corpo desembocou na legitimação da tanatopolítica de determinados grupos sociais. Essa prática se justificava porque a sociedade era lida em chave biopolítica como um corpo que deve prevenir-se contra os potenciais inimigos que ameaçam a sua existência. A tanatopolítica defende a necessidade da eliminação seletiva das vidas perigosas, dos indivíduos ameaçadores, para conservar a segurança do resto dos cidadãos. O nazismo, os fascismos, mas também vários regimes racistas levaram até suas últimas consequências os princípios da biopolítica organicista.

Uma segunda onda da temática biopolítica reapareceu na década de 1960, principalmente na França, com autores como Aroon Starobinski, com a obra La bipolitique. Essai d’interprétration de lá histoire de l’humanité et des civilisations, ou com Edgar Morin , que escreveu em 1969 Introdução à une politique de l’homme. Ainda cabe destacar os dois volumes de Cahiers de la biopolítique, publicados em Paris, 1960, por la Organisation au Service de la Vie. Esses estudos se desmarcam abertamente da matriz tanatopolítica originária e abordam a biopolítica a partir de uma perspectiva neo-humanista. Conceitualmente eles mantêm a ambiguidade constitutiva do termo biopolítica, embora sublinham uma certa leitura crítica e funcionalista das políticas do neocapitalismo e dos regimes chamados socialismo real em guiar um desenvolvimento produtivo da vida humana.

Esposito não menciona as leituras críticas da biopolítica que, a nosso ver, são imprescindíveis para poder contextualizar as pesquisas de Foucault , Agamben  e as próprias de Esposito. Referimos aos estudos de Levinas , Adorno, Horkheimer , Marcuse , Benjamin  e Arendt , como já expusemos em um texto anterior.


Funcionalismo biopolítico

A terceira etapa dos estudos biopolíticos está sendo desenvolvida a partir de uma perspectiva legitimadora e implicativa. Tais estudos tentam aproximar a biologia com as teses da filosofia naturalista a respeito do comportamento humano provocando uma “nova” onda de naturalismo filosófico e político. O início formal desses estudos biopolíticos poderia situar-se em 1973, quando a Political Science Association inaugurou formalmente um espaço para pesquisa sobre biologia e política. De lá para cá têm acontecido uma variedade de eventos internacionais sobre biologia e política promovidos por essa associação: 1975, Hautes Études em Sciences Humaines de Paris, na sequência Bellagio (Itália), Varsovia, Chicago, Nova Iorque. Em 1983 criou-se a Politics and the Life Sciences, associação que promoveu a publicação de uma coleção chamada Research in biopolitcs, da qual já se têm publicados vários volumes.

Autores significativos iniciais dessa corrente, James Davies, Human nature in politics, 1963; Lynton K. Caldwell, 1964, Biopolitics: Science, ethics and public policy”. A obra de Roger Mascad The nature of politics,1989. Essas obras pretendem aferir os princípios reguladores da política a partir de uma certa lógica evolucionista das espécies. Neles persiste uma forte influência de um certo darwinismo social. Thomas Thorson, em sua obra, Biopolitics, 1970, afirma a tese de que a relevância da biopolítica consiste em posicionar a transição de um paradigma físico para outro, o biológico. Não importa tanto fazer da política uma ciência exata, mas reconduzi-la ao âmbito da natureza humana. É no plano vital que se explicam os fenômenos da política. A conexão orgânica de ambos os planos se dá pela natureza contingente do corpo humano que mantém sua ação dentro dos limites possibilitados e definidos pela sua natureza. A explicação dos acontecimentos sociais deriva ao extrapolar a lógica individual do corpo para a dinâmica biológica da espécie. A sociedade se explica como fenômeno natural da espécie biológica humana.

De alguma forma, as modernas leituras naturalistas da biopolítica remetem à obra-prima de Hobbes , O Leviatã, que já no século XVII representava o Estado como um grande corpo artificial formado pelo conjunto dos corpos naturais dos súditos. Porém, a nova biopolítica inverte a perspectiva de Hobbes ao propor a diluição do limiar artificial da sociedade, que deve ser compreendida como prolongamento da natureza biológica do ser humano. A sociedade não seria mais um corpo artificial, como pensava Hobbes, mas o seu funcionamento se explicaria pela lógica biológica da espécie. Nessa hipótese, o funcionamento das instituições sociais se comporta como apêndice biológico da natureza humana.  Nessa lógica biopolítica, para entender a sociedade nós temos que nos remeter às explicações naturalistas da biologia humana, pois o comportamento social é um prolongamento do instinto natural.


Sociobiologia

A legitimação naturalista da biopolítica articula-se com certa ética utilitarista. Um dos discursos contemporâneos que vem replicando de forma mais extensiva tais teses responde ao nome da neurociência, com diversas versões e variáveis. Os instintos naturais são funções úteis das instituições sociais. Um dos exemplos dessas teses se encontra nos trabalhos de Eduard Osborne Wilson com o que ele denominou de sociobiologia. Sua obra mais conhecida é Sociobiologia. Uma nova síntese. Nela defende a tese de que a biologia é a ciência por excelência que explica a natureza humana e seus comportamentos. O cérebro toma o lugar da alma humana. A química do cérebro responde pelos diversos estados emocionais primários e sentimentos complexos. Neurotransmisores como dopamina, norepinefrina, serotonina, gaba, são os verdadeiros responsáveis, as causas naturais, da modulação de nossas emoções, estimulando o inibindo seu funcionamento. A origem e funcionamento dos sentimentos humanos, e consequentemente as decisões da vontade, estariam diretamente relacionados com o funcionamento dos neurotransmissores. Eles contêm a explicação causal não só das alterações comportamentais humanas, mas do modo como se comporta a vontade na tomada de decisões. Para a neurociência, não se devem procurar as respostas do comportamento humano, em primeira instância, numa vontade “livre” dos sujeitos, mas nos impulsos químicos e em suas relações com os neurotransmissores, hormônios e genes. De tanto olharmos as outras espécies animais, temos que concluir que somos uma a mais, sem mais. Esse é o principio reitor, elevado a máxima filosófica, da sociobiologia.


Os genes egoístas

Outro autor amplamente conhecido da corrente neurocientífica é Richard Dawkins . Seus estudos sobre etologia, biologia, genética e neurociência lhe outorgaram um amplo reconhecimento internacional. Suas teses alcançaram ampla divulgação a partir de sua obra O gene egoísta.  Para ele, os genes contêm a chave do comportamento de cada ser vivo. Os genes são máquinas de sobrevivência que guiam a conduta dos seres vivos. O objetivo ao que tendem é sua autorreplicação. A estratégia que utilizam é sempre o egoísmo: “este egoísmo dos genes geralmente originará egoísmo no comportamento individual”.  Ainda de acordo com ele, as atitudes altruístas e formas de socialização não passam de estratégias dos genes egoístas que pensam que viver em grupo é mais proveitoso do que viver individualmente. Por tanto, nessa hipótese, o gregarismo e a socialização humana são derivações naturais do cálculo egoísta do genes.

Dawkins adverte que a palavra egoísmo aplicada à biologia é uma metáfora, pois o reino da vida está regido por leis naturais e não por comportamentos morais. A replicação dos genes é, para Dawkins, o que moralmente denominaríamos de egoísmo natural. Contudo, Dawkins evita cair num determinismo naturalista absoluto. Por isso afirma que, no ser humano, além dos genes atuam os memes. Esses seriam uma espécie de memória natural. Os memes não são um privilégio dos humanos, pois muitas outras espécies vivas também os possuem, tais como os primatas e as orcas. Embora neles não se atinja o desenvolvimento obtido nos humanos. O meme é a memória constituída pelo conjunto de experiências culturais adquiridas e transmitidas de uma geração para outra. A linguagem é um dos principais fatores que pontencializa os memes e estimula o cérebro. A pesar de nossa natureza egoísta – dos genes – os memes oferecem-nos a possibilidade de mudar de conduta. Segundo Dawkins, a cultura não é exclusiva do ser humano, mas a memória e a capacidade de previsão, sim.

Ainda a modo de exemplos contemporâneos desse discurso biopolítico da neurociência, podemos mencionar as obras de Antonio Damasio. Seus escritos mais conhecidos são O erro de Descartes e Em busca de Spinosa.  Para Damasio, as emoções e sentimentos estão regulados pela anátomo-fisiologia cerebral. Neurotransmissores, sinapses, hormônios, áreas cerebrais, constituem as bases explicativas das emoções e sentimentos humanos. Damasio estabelece certa taxionomia das emoções, para melhor as compreender, tendo como referência as reações neurológicas. Os sentimentos, para esse autor, são informações que os seres vivos são capazes de sentir quando se expõem a situações concretas. O medo é uma informação sobre o risco, a ameaça ou o perigo para o próprio ser ou seus interesses. A neurociência, segundo ele, permite estabelecer uma arquitetura de nossas emoções e sentimentos com base no conhecimento do cérebro e seu funcionamento.


Alguns questionamentos críticos ao biologismo

Essas teses biológicas da neurociência dão sustentação e legitimam os princípios da nova biopolítica naturalista, a qual se propõe governar os seres humanos a partir dos impulsos de sua natureza. Essa lógica pensa a política como uma administração desses instintos naturais e a ética como resultado de uma adaptação utilitária do comportamento humano às necessidades vitais. O melhor governo é aquele que consegue administrar os impulsos “livres” da natureza humana de sua população. E a validação da ética decorre da funcionalidade dos valores para a maioria dos sujeitos. Nessas teses ressurgem revigorados os argumentos clássicos do mecanismo do século XVII. As obras Hobbes e Spinoza adquirem uma nova coloração, agora acrescentados dos estudos gênicos, hormonais e neuronais.
A biologização do social aparece como consequência extrema de uma biopolítica que reduziu a vida humana a pura zoe, como nos recordam as leituras críticas de Arendt e Agamben. Na lógica biopolítica naturalista, a única vida humana é a mera vida natural (zoe). Portanto, inverte-se o objetivo arqueológico (arche inicial) da política e da ética, que era construir uma vida humana (bios) além da mera vida natural. Na lógica naturalista, a política perde o potencial criativo da práxis para se transformar numa técnica administradora da natureza. A biopolítica naturalista esvazia a política da potência criadora de possibilidades inéditas para a vida humana e a reduz a gerenciamento eficiente de elementos dados pela natureza. Talvez possamos identificar nesse reducionismo da decisão política dos sujeitos com a gestão definida por administradores um dos vácuos mais significativos da nossa política contemporânea. O crédito outorgado aos técnicos e administradores do social é inversamente proporcional ao descrédito da política como instância decisória dos sujeitos sociais. A democracia, entendida como regime em que se implementam as práticas de liberdade dos sujeitos, fica esvaziada pela administração eficiente dos desejos e vontades naturais da população.
Se o comportamento político está organicamente vinculado à bios, afere-se que a única política viável é aquela que se encontra inscrita no nosso código natural. Nessa tese produz-se um salto do ser ao dever ser, que constitui a clássica falácia naturalista. Provoca-se o salto da utilização analítico-descritiva do ser do comportamento humano para o dever ser prescritivo-normativo. Nessa hipótese a teoria social e humana não interpreta a realidade, mas a realidade determina o modo de ser da teoria e a confina numa única forma de ser: a natural. Como consequência, os seres humanos não podem ser outra coisa senão o que sempre foram. A história humana se torna uma mera repetição da natureza, às vezes disforme, mas não pode ser diferente daquilo que está determinada a ser. Nesta hipótese, a ciência, a técnica e a política devem ajudar reconduzir as práticas humanas a seu fundo natural.


O humano e a mediação simbólica da bios

Os estudos naturalistas em geral e a neurociência, em particular, contribuem para um maior e melhor conhecimento do funcionamento biológico que condiciona nossa conduta de seres vivos. Eles estão mapeando a base biológica sobre a que se constitui a subjetividade humana. Os novos conhecimentos a respeito do funcionamento do biológico (cérebro, hormônios, genes, etc.) contribuirão grandemente para uma melhor compreensão do humano em sua plenitude. Porém, a identificação da biologia com a subjetividade significa reduzir o humano à mera biologia, à pura animalidade. Tal achatamento naturalista do humano, em vez de resolver ou explicar, de fato, o comportamento humano, deixa na penumbra as questões centrais de por que razão o ser humano, diferentemente dos outros animais, é imprevisível em seu comportamento, de por que razão ele é capaz de significar simbolicamente de formas tão diversas os mesmos instintos naturais, ou ainda por que motivo valora diferentemente as mesmas necessidades biológicas, direcionando de forma imprevisível sua conduta para sentidos, objetivos e finalidades que dificilmente se poderiam aferir de um determinismo biológico. Afinal, por que o ser humano é criativo e (re) criador da própria natureza?
Ao pretender identificar os desejos, os sentimentos e a vontade humana com os meros impulsos naturais, produz-se um reducionismo do humano ao biológico. Nesse achatamento, ignora-se que, diferentemente dos outros seres vivos, no ser humano a relação entre o estímulo biológico e a resposta da vontade não é automática nem imediata. Os condicionamentos biológicos da natureza humana são inquestionáveis; sua influência é importante. Contudo, o que diferencia o ser humano dos outros seres vivos é que, entre os estímulos da sua natureza e a resposta que ele decide implementar, há uma mediação simbólica do sentido. O ser humano cria sentido para tudo o que sente. Tudo o que emerge da natureza humana aparece configurado desde a interioridade do sentido. O sentido não é imposto pela natureza, é criado pelo sujeito e pela sociedade. O impulso é natural, o sentido é criado historicamente. Quando as pulsões se apresentam no ser humano já lhe aparecem perpassadas pelo sentido, configuradas simbolicamente. Nada há no humano que escape ao sentido. O humano demasiado humano é o sentido e, com ele, os valores que institui para os próprios impulsos naturais. Por exemplo, a pulsão sexual, a fome, o abrigo, etc., são instintos primários, mas as possibilidades de viver a sexualidade ou de se alimentar, diferentemente dos demais animais, obedecem a um leque criativo de possibilidades e valores permanentemente abertos para o ser humano.
O ser humano é o único ser vivo que não se limita a responder imediatamente aos instintos naturais, mas os mediatiza através do sentido simbólico. O ser humano recebe os estímulos naturais da sua bios, porém consegue manter certo distanciamento deles ao ponto de significar de modo diferente os mesmos impulsos dependendo das circunstâncias, dos valores, da cultura. Sobre essa questão, remetemos ao debate que Ernst Cassirer travou com o biólogo Jacob von Uexküll – defensor de uma visão biopolítica organicista do Estado – em sua obra Antropologia filosófica. Também Cornelius Castoriadis, em sua obra A instituição imaginária da sociedade, argumenta amplamente a respeito da insuficiência das teses biológicas e funcionalistas para explicar a constituição do social, remetendo para a condição simbólica do ser humano e seu potencial criativo que, para ele, Castoriadis, implica uma criação imaginária.


A bios humana, natureza e história

A mediação simbólica é concomitantemente o hiato e a ponte que vincula a condição humana a sua bios. O fato de enunciá-los por separado não pode induzir-nos a novos dualismos. Deveríamos enunciar a bios humana como uma realidade única em que o humano se realiza como humano. Porém, na bios humana o adjetivo humano qualifica sua bios de forma qualitativamente diferente da mera zoe, ou bios animal. A bios humana compartilha com o resto dos animais uma zoe ou vida natural. Todavia, o modo humano dela é qualitativamente diferente da mera zoe. Quanto menor for a capacidade da bios humana de mediatizar significativamente os impulsos da sua natureza, mais parecido será seu comportamento com o resto dos animais. Ou seja, quanto menos capacidade de distanciamento simbólico tiver a bios humana, mais se assemelhará ao mero instinto animal ou à simples pulsão biológica. A conduta será mais humana, e não meramente biológica, na medida em que desenvolver a capacidade de instituir um significado simbólico próprio para sua conduta. A sua vida humana é diretamente proporcional a sua capacidade de significar simbolicamente os impulsos da sua zoe. Essa tensão entre vida humana (bios) e mera vida natural (zoe) é o marco que diferencia a possibilidade da prática política criativa dos sujeitos sociais da mera gestão eficiente das habilidades dos indivíduos. A primeira conduz à possibilidade real da democracia, a segunda desemboca numa biopolítica objetivadora da vida humana.

A potencialidade da bios humana de significar simbolicamente as pulsões naturais remete à sua abertura para a alteridade. O ser humano é o único ser vivo conhecido que se relaciona com o mundo como um outro, e com o Outro como um semelhante em quem reconhece um desdobramento de si. A alteridade implica numa abertura do humano que fraturou a pura naturalidade da bios animal para instituir a possibilidade de reconhecimento do outro como diferente de si. Há na bios humana uma fratura originária (nesse sentido metafísica) pela qual o humano existe, fraturado, em relação a uma alteridade que lhe constitui e pela qual adquiriu a potência da criatividade.  A alteridade é condição de possibilidade da subjetividade humana. Ambas, alteridade e subjetividade, constituem o modo de ser humano do sujeito, condicionado pela biologia mas humanizando sua bios.

Foucault retomou a temática da biopolítica e a problematizou a partir de uma formulação mais radical que a mera tese naturalista. A vida humana está perpassada pela dupla condição da natureza e da história. Nas versões naturalistas da biopolítica, essas duas dimensões, natureza e história, são percebidas como fatos inalteráveis e, até certo ponto, desconexos. Para Foucault, essa desconexão se torna um problema e sua não implicação também. A vida humana não pode simplesmente ontologizar-se como algo natural, mas também não pode ser pensada como pura criação histórica. Ela, a vida humana, é o resultado de um jogo de tensões, criações e forças que a constituem historicamente desde seu ser natural. Ela não se reduz a meras pulsões biológicas. Sua condição histórica atravessa a natureza que constitui o humano. História e natureza, vida e política, subjetividade e bios, se entrelaçam e interagem implicando-se de forma a constituir a singularidade da bios humana, em geral, e cada sujeito histórico em particular. O biológico emerge de dentro da história, assim como a história está condicionada pela bios. Foucault, através da categoria de história, afasta a vida do achatamento naturalista impetrado pelas lógicas biopolíticas contemporâneas. A vida coloca a história como uma exterior que a constitui por dentro no seu modo de ser humano. Por sua vez, a historicidade humaniza a bios tornando-a historicamente consituída.

 

Leia mais...

Confira os artigos de Castor Bartolomé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”
e a respeito do ciclo Filosofia e sociedade: A biopolítica, a testemunha e a linguagem. (Des) encontros filosóficos: M. Foucault, H. Arendt, E. Levinas, G. Agamben

* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011

* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011

* O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011

* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011

* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011

* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011

* A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça. Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-11-2011

* Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 386, de 19-03-2012

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