Edição 388 | 09 Abril 2012

A concessão do perdão e a ruptura da espiral de violência e agressão

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Por Márcia Junges

Conceder o perdão rompe com a espiral de violência e agressão, observa o filósofo e psicanalista Mario Fleig. Perdoar é pré-condição para se reconciliar com o outro e surgir uma relação de paz

“O perdão é, antes de tudo, uma categoria teológica ligada à noção de graça e dom, indicativo de sua dimensão divina. Trata-se da dimensão do perdão de Deus”. A afirmação é do psicanalista e filósofo Mario Fleig, professor da Unisinos, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele diferencia o perdão entre o genuíno e o condicionado. “O perdão genuíno ocorre quando se perdoa o culpado como culpado, aquilo que nele seria absolutamente imperdoável. Perdoar o perdoável é o mais fácil, assim como quando o perdão está a serviço de uma finalidade, como reconciliação, redenção, restabelecimento da ordem social, da paz, etc.” Já no caso da anistia, por exemplo, há que se observar que ela é um “ato jurídico e político, e etimologicamente significa esquecimento: nela está em jogo a tentativa de um apagamento de crimes cometidos, com o fito de restabelecer as condições do convívio social”. Algo impressionante ligado ao perdão é a dissolução do ressentimento e do gozo do ódio, o que bloqueia a espiral de agressão e violência, acentua Fleig. “Assim, o perdão é a pré-condição indispensável para a reconciliação com o outro e o estabelecimento de uma relação de paz”, além de possuir um poder de cura sobretudo para aquele que perdoa.

Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e em Psicologia pela Unisinos, Mario Fleig é mestre e doutor em Filosofia. É professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como psicanalista, é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre Lebrun organizou O mal-estar na subjetivação (Porto Alegre: CMC Editora, 2010) e O desejo perverso (Porto Alegre: CMC Editora, 2008).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em que sentido o perdão pode ser encarado como uma aposta antropológica no “outro”, como uma confiança de que o outro é capaz de mudar?

Mario Fleig –
Sim, o perdão é uma aposta de que na relação com o outro e consigo possa ser introduzida uma contigência que venha alterar o caráter de necessidade do curso da situação de conflito insolúvel. O pressuposto do surgimento do ato de perdão e de sua noção é que há um mal perpetrado pela ação de um sujeito, e que deste mal ele poderia ser redimido. Temos um par de antagônicos: o mal e seu perdão, que se diferencia do outro par clássico, crime e castigo. Contudo, se este par nos remete imediatamente ao campo da lei e do direito, aquele não tem lugar no âmbito do direito. A punição, na acepção jurídica, é a resposta na forma da privação ou do castigo que o Estado, amparado na lei positiva, dá a quem se torne culpado de uma infração. E na mesma direção se situa a noção de punição divina, em que o pecador tem que pagar pelo mal que cometeu. Ao contrário, o perdão é, antes de tudo, uma categoria teológica ligada à noção de graça e dom, indicativo de sua dimensão divina. Trata-se da dimensão do perdão de Deus.


IHU On-Line – Como podemos compreender filosoficamente o perdão?

Mario Fleig –
Tenho simpatia pela perspectiva introduzida por Derrida  na questão do perdão, que o trabalhou de modo inovador. Sua derradeira conferência sobre o tema foi proferida no Rio de Janeiro, em 2004, quando já não poderia mais viajar em função de doença mortal. Dez anos antes, publicara o livro Força de lei, no qual fazia a distinção entre as leis e a justiça: o Direito e suas leis, por serem construídos em camadas textuais interpretáveis e transformáveis, ou ainda por terem um fundamento último infundado, são perfeitamente desconstrutíveis, ao passo que a justiça é essencialmente indesconstrutível. Ora, ao entrar no debate em torno dos crimes impunes e da atitude corrente face aos crimes contra a humanidade, e posteriormente na questão da pena de morte, Derrida afirma que todas essas questões, assim como a questão de reconciliação e da hospitalidade, têm no perdão seu ponto comum. Sua primeira distinção é entre o campo da punição e o campo do perdão. Assim, para ele é perfeitamente possível mantermos uma acusação penal mesmo perdoando ou, inversamente, podemos não julgar, mas perdoar. Nisso ele se afasta de posições clássicas que afirmam que, se um crime não encontra uma punição proporcional, permaneceria como absolutamente imperdoável. O perdão também se diferencia do indulto, da anistia e da prescrição do crime. Ou seja, para Derrida, o perdão situa-se fora da política ou do direito, não pertence à esfera política ou jurídica. Assim, o perdão puro somente seria possível frente ao absolutamente imperdoável. Essa posição radical protege o perdão de qualquer banalização, como ocorreu quando o presidente Lula foi pedir perdão aos africanos pelo que os senhores da colônia brasileira haviam feito a seus ancestrais.


O impossível à prova

Derrida introduz a distinção entre o perdão condicional e o perdão incondicional, que se encontra na tradição judaico-cristã: o perdão condicional pode ocorrer se quem fez o mal pede perdão. O pedido de perdão, com a correspondente contrição, indica que o penitente já se encontra no retorno ao bom caminho, efetivando-se uma troca entre aquele que perdoa e o arrependido. Para Derrida, nesse caso não se pode falar em verdadeiro perdão, mas quando ele é concedido independente da atitude do culpado. O perdão genuíno ocorre quando se perdoa o culpado como culpado, aquilo que nele seria absolutamente imperdoável. Perdoar o perdoável é o mais fácil, assim como quando o perdão está a serviço de uma finalidade, como reconciliação, redenção, restabelecimento da ordem social, da paz, etc. Isso não caracteriza o puro perdão, que se aproxima do poder de perdoar inerente ao ato divino, mesmo quando exercido por um ser humano, e deveria sempre permanecer como algo excepcional e extraordinário: colocar à prova o impossível e, assim, interromper o curso comum da temporalidade humana.


IHU On-Line – Em que tipos de casos se justifica não perdoar?

Mario Fleig –
Se seguirmos a diferença proposta por Derrida entre perdão condicional e perdão incondicional, todo o perdão que se justifica, seja pela sua finalidade ou pela contrição do pecador, seria um perdão condicional. Aquele perdão, que não encontraria nenhuma justificação, entraria na categoria do perdão incondicional, o puro perdão que sabe perdoar aquilo que é absolutamente imperdoável.
 

IHU On-Line – Não perdoar significa necessariamente ressentimento? Por quê?

Mario Fleig –
Perdoar ou não perdoar escapa do registro do legal e da obrigação. Mesmo diante daquele que solicita o perdão, dar o perdão perdura como um ato de liberdade. O perdão pode ser dado ou não, não há nada que o torne obrigatório. Se assim o fosse, já não seria um perdão.
Contudo, podemos pensar nos efeitos do perdão sobre aquele que perdoa: talvez se produza uma dissolução do ódio, visto que o ato de perdoar implica em abrir mão do gozo do ódio. O ressentimento, como um modo de permanecer fiel ao ódio para com o outro que cometeu um mal contra mim, pode cair e desfazer-se como efeito do ato de perdão. Mas não me parece que isso possa se alcançar com uma finalidade visada no ato de perdoar, visto que perdoar implica sempre um ato de gratuidade.


IHU On-Line – Qual é a importância psicológica para quem concede e para quem recebe o perdão?

Mario Fleig –
Para quem concede o perdão pode se produzir uma dissolução do ressentimento e do gozo do ódio, cortando-se a espiral de agressão e violência na relação com o outro. Para aquele que recebe o perdão, caso o tenha pedido, nem sempre resulta na interrupção de sua cruel submissão ao imperativo da culpa. Assim, o perdão é a pré-condição indispensável para a reconciliação com o outro e o estabelecimento de uma relação de paz.


IHU On-Line – Em que sentido o perdão pode ser visto como um ato de amor e reconciliação?

Mario Fleig –
O perdão, especialmente o perdão incondicional, é um ato de pura gratuidade e dom de si para o outro, constituindo assim um sinal de amor. A condição imprescindível para a reconciliação com o outro, assim como para a reconciliação com a divindade, é dar ou receber o perdão incondicional, aquele que pareceria impossível de acontecer. Isso não deve ser tomado como um sinônimo de anistia. A anistia é um ato jurídico e político, e etimologicamente significa esquecimento: nela está em jogo a tentativa de um apagamento de crimes cometidos, com o fito de restabelecer as condições do convívio social. No caso do perdão incondicional, não se trata de esquecer e apagar a culpa, mas antes a ferida aberta pelo mal praticado perdura viva e aberta. Ou seja, como propõe Derrida, é preciso que o ato perdoado continue sendo sempre imperdoável e que a aporia resultante desse impossível não se dissolva. Tal posição parece de acordo com a concepção cristã, dado que ainda que Deus conceda o perdão daquilo que é imperdoável, isso não é esquecido, pois, no momento do Juízo Final, todos serão julgados e punidos por seus pecados.


IHU On-Line – Em que medida podemos considerar que o perdão tem o poder de cura?

Mario Fleig –
O perdão, especialmente o perdão incondicional, tem todas as chances de produzir efeitos tanto para quem perdoa como para aquele que é perdoado. No trabalho psicanalítico tenho presenciado efeito surpreendente nos analisantes que puderam conceder um perdão incondicional. Sabemos que cada um de nós passa por experiências de sofrer o mal perpertrado por outro, especialmente o mal silencioso contra o qual pouco se pode fazer, tanto para se defender como para denunciá-lo. É o mal que os pais produzem nos filhos, o mal produzido na infância por todas as formas de abuso, etc., e que são imperdoáveis. Lembro-me de um garoto que atendi bem no começo de meu trabalho clínico. Chegou até mim por causa de sua asma que havia começado precisamente no primeiro ano escolar e persistia, apesar de todos os cuidados médicos que recebia. Ele sofria por ficar impossibilitado de todas as atividades que exigissem desempenho físico. Para um garoto pré-púbere isso é algo terrível. Vi uma luz no fim do túnel quando sua asma começou a ter uma história, pois ele localizou precisamente em que momento ela havia começado: fora brutalmente humilhado por sua professora. E o ódio que continuava a nutrir por ela era enorme e incessante. “Eu quero que ela morra”. Esse passou a ser então o assunto de suas conversas, até que um dia arrisquei: “No dia que tu perdoares tua professora, poderás jogar futebol e andar de bicicleta sem problema”. Depois de um bom tempo, ele chega em sua sessão e me diz: “Nessa noite eu a perdoei”. E de fato, como que por milagre, sua asma desapareceu definitivamente.
O poder de cura do perdão se exerce, então, mais para aquele que perdoa, na medida em que consegue, pelo perdão incondicional, abrir mão do gozo que o ódio proporciona. Quem fez o mal para o outro, muitas vezes, não tem mais como pedir perdão, por já ter falecido, ou até não tem ideia do mal que fez. Por isso penso que o perdão que pode vir a acontecer durante uma análise é concedido de forma incondicional frente a algo de absolutamente imperdoável sofrido pelo sujeito.


IHU On-Line – Como o conceito de liberdade se relaciona com a questão do perdão?

Mario Fleig –
O ato de perdão pressupõe necessariamente a responsabilidade daquele que praticou o mal, mas não sua liberdade. A diferença entre liberdade e responsabilidade é capital. Se agi movido por imperativos que me constragem, ou seja, sem liberdade, isso não significa que eu possa me considerar isento da responsabiliade de meus atos. Se eu faço algo desconhecendo as leis e as consequências de meu ato, não posso dizer que não sou responsável porque não sabia. De forma igual, um governante não pode dizer que não é responsável pelo que acontece em seu governo alegando que não sabia o que estava sendo feito por seus subalternos. Pedir perdão dizendo: “desculpa, foi sem querer”, de forma alguma isenta o praticante de sua responsabilidade.
Então, assim como dar o perdão incondicional não significa esquecer o mal sofrido, aquele que pratica o mal, mesmo não o fazendo livremente, não deixa de ser responsável por ele, apesar de poder se eximir da culpa. A liberdade está no ato do perdão incondicional, visto que não há nenhum imperativo para que esse perdão seja dado. Dar o perdão incondionalmente, frente a algo absolutamente imperdoável, é o dom de algo que constitui o supremo sinal de amor, sem contudo querer a impunidade do outro.



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