Edição 197 | 25 Setembro 2006

Uma discussão sobre a teologia na contemporaneidade

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IHU Online

Christian Duquoc é teólogo dominicano francês, professor emérito da Faculdade de Teologia na Universidade Católica de Lion, França, e diretor da revista Luz e vida e membro da direção da revista Concilium. É conhecido, sobretudo, por seus estudos sobre cristologia. De suas obras, confira Cristologia: o Messias. São Paulo: Loyola, 1980; Cristologia: o Homem Jesus. São Paulo: Loyola, 2002; Cristianismo, memória para o futuro. São Paulo: Loyola, 2005; A teologia no exílio. Petrópolis: Vozes, 2006. Ele aceitou conceder, por e-mail, uma entrevista com exclusividade para a revista IHU On-Line, falando sobre os rumos da Teologia na contemporaneidade. Confira.

IHU On-Line - O título do seu livro, A teologia no exílio aponta para a dificuldade da teologia ressituar seu lugar e achar seu próprio caminho no mundo de hoje. Como as transformações da cultura contemporânea incidem sobre a teologia? O que mais dificulta à teologia ocupar um lugar na cultura contemporânea?
Christian Duquoc
- Depois de La théologie en exil , publiquei mais dois livros: L’unique Christ, la symphonie différée. Paris: Cerf, 2002 e Dieu partagé, le doute et l’histoire Paris: Cerf, 2006. O primeiro estuda as conseqüências para a cristologia da legitimidade do pluralismo religioso. O segundo, esforça-se em estabelecer a fecundidade do afrontamento entre a busca não-bíblica de Deus, incluindo sua negação atéia no Ocidente e a originalidade do Deus que reside na narrativa bíblica. Este livro se aproxima das questões levantadas nessa primeira pergunta. Na verdade, a teologia representa um esforço para pensar em uma situação cultural, dada a singularidade da narrativa bíblica. Ela se encontra confrontada a uma falta: o pedestal social religioso se enfraquece, as instituições que ele sustentava estão desconsideradas, a moral originada no cristianismo tornou-se um bem comum pelo intermédio dos direitos do homem.

Julio Cortazar , em sua novela L’homme à l’affût  exprime, com veemência, a situação contemporânea: “O jazz, a mulher, o trabalho... tudo para se estar feliz, diz o herói da narrativa, o músico Johnny. Armadilhas, acrescenta ele, ... pois não é possível que não exista outra coisa, não é possível que se esteja ao mesmo tempo tão perto da porta e tão definitivamente do outro lado dela... É teu bom Deus (o Deus cristão) que tenho na garganta... Se ele está de fato do outro lado da porta, pouco me importa. Não há mérito algum em passar para o outro lado, se é ele quem a abre. Ah! Se pudéssemos derrubar a ponta-pé esta porta, isso sim seria alguma coisa!...”. 

Em algumas palavras simples, tudo é dito sobre a distância entre a busca humana do absoluto e a repulsão que o bom Deus provoca pela sua boa vontade intervencionista. Sua presença na história é a objeção mais forte à sua verdade. Esta oposição, seguidamente agressiva, descontenta os teólogos mais voltados ao diálogo.

IHU On-Line - É inegável a situação de marginalidade em que se encontra a teologia hoje. Não poderíamos pensar que esta situação abre à teologia possibilidades novas dela pronunciar uma palavra autônoma e original, em diálogo com a cultura contemporânea?
Christian Duquoc
- A teologia é um reflexo, ela não é autônoma como se pensa geralmente, pois vive no seio de uma instituição. Sua marginalidade presente vem da vontade coletiva de definir o destino terrestre com base em seus próprios projetos. Eles serão a obra da humanidade única. Estes projetos se concretizam por meio de uma negociação jamais encerrada. Nenhuma lei ou palavra externa podem legitimamente controlá-los ou criticá-los, pois sua intrusão seria um atentado à liberdade inalienável. Se há religião, ela deve ser compreendida como um fenômeno cultural transitório, respondendo afetiva e simbolicamente a problemas ainda não administrados por consciências em emancipação.

Esta situação retira da teologia, por uma prioridade dos nossos contemporâneos ocidentais, uma autêntica pertinência, pois ela pretende escutar uma voz vinda do além e fazer-se a porta-voz, que foi crítica, de uma Igreja que confessa não ter sua origem em si mesma. Consequentemente, a teologia não é julgada livre porque ela apóia sua legitimidade sobre “um outro”.
René Rémond , historiador francês, escreveu várias vezes sobre o anticristianismo atual na Europa, que sua agressividade, sustentada por um desafeto majoritário, parecia-lhe enigmática. Ela é menos, a meu ver, do que ele pensa. Ela é o produto de um movimento cultural que se nutre de uma evidência coletivamente partilhada: o homem é o único produtor de sua história, que só tem sentido, se ela o extrai de sua ação e não de um projeto divino concebido fora de todo concerto. A marginalidade da teologia resulta da marginalidade do cristianismo. Então, ela só pode assumi-la e fazer de si mesma um local de criação e de provocação.

IHU On-Line A terra natal da teologia cristã é a comunidade eclesial e sua experiência de fé. Que limites e possibilidades este dado originário coloca para se pensar a teologia no âmbito acadêmico e na esfera pública da sociedade?
Christian Duquoc
- A filosofia, mesmo se definida por seu contexto social, é uma atividade individual. Ela se mantém por princípio distante das instituições e das opiniões dominantes. A teologia, ao contrário, é uma tarefa que se desenvolve no seio de uma igreja. As diferentes igrejas modelam as formas e os conteúdos. Esta ligação eclesial é vista de forma desfavorável por nossos contemporâneos. Eles atribuem a ela uma submissão inaceitável a uma autoridade externa. Eles desprezam o dogma porque ele se impõe como indiscutível. Para os modernos, a verdade é provisória. Ela se apóia sobre uma argumentação a ser revisada, ela só pode ser uma autoridade instituída.

Esta submissão da teologia na igreja é uma séria deficiência. Na França, ela distancia-se dos centros acadêmicos em função de sua pretensão em deter uma verdade que não é o fruto de um debate independente e laico. Os controles romanos das quais alguns teólogos foram objeto confrontaram a opinião corrente. É inútil, estimam muitos intelectuais, discutir com os teólogos uma vez que eles não têm o pensamento livre: eles estão sob tutela.

Se a teologia quer conquistar um lugar nos debates culturais e sociais no mundo laico, é preciso que ela se distancie no que tange sua implicação institucional. Isso significa que o teólogo deve aparecer para seus contemporâneos como um homem que afronta livremente, não somente a opinião dominante, a mais freqüentemente indiferente em relação ao cristianismo, mas também, o pensamento eclesialmente correto. Ele deve, então, argumentar sem preconceito sobre a base narrativa bíblica, que se apresenta sob a forma simbólica de um combate, tal como o de Jacó, entre os interesses de Deus e sua percepção humana. O desafio não é institucional, mas existencial. O teólogo é, neste contexto, um investigador, e não um porta-voz. Tamanha é a exigência de uma marginalidade que se quer tão instauradora quanto provocadora.
 
IHU On-Line - Que perspectivas o senhor indicaria para uma relação produtiva entre ciência e teologia?
Christian Duquoc
- O debate entre a ciência e a teologia não interfere mais nos conhecimentos, mas nos símbolos. Para muitos dos nossos contemporâneos, o método científico é uma prática que eles imaginam, mas da qual não se utilizam. O caráter desestruturador da ciência resulta, sobretudo, do rumor que da efetividade de suas pesquisas e de suas produções.  O símbolo é ainda ativo: ele resulta da ideologia do progresso. A ciência, ou seja, um conhecimento metódico, exato, de resultados verificáveis, fundada na experiência, permitiria no final, resolver os problemas humanos que os filósofos e as religiões deixaram para trás e conduziria nosso planeta à uma era de prosperidade, de igualdade, de fraternidade e de paz.

Esta ideologia é doravante menos presente nos cientistas, o cientificismo estando em regressão. Todavia, ela nada perdeu de seu vigor popular, mesmo se emerge o medo das conseqüências nefastas da tecnologia sobre a saúde e a harmonia da natureza.

O teólogo pode encontrar os cientistas, sobretudo no terreno de certa sabedoria na administração e na gestão do mundo do que em um uso, seguidamente caricatural, de métodos incompatíveis e de conhecimentos desajeitadamente ajustados. Os erros dos diferentes fundamentalistas ou as utopias dos diferentes concordismos fornecem a prova. O teólogo, referindo-se à criação divina como uma palavra incontrolável não a lê nas leis cientificas do universo. A homenagem que suscita sua beleza é de ordem poética da qual a teologia é parente. Ela protege a interrogação existencial e estética contra o fascínio da dominação pelo conhecimento.

IHU On-Line – Entre o pluralismo cultural, religioso e axiológico que caracteriza a sociedade contemporânea, qual é o lugar e a função da teologia?
Christian Duquoc
- Durante muito tempo, o cristianismo pensou sua universalidade por meio da reunião de suas experiências religiosas diversas desconstruindo sua originalidade. Ele esquecia assim de sua particularidade. Sob a pressão de um melhor conhecimento da história e dos religiosos, o cristianismo abandonou pouco a pouco esta convicção que se traduziu durante séculos pelo slogan: “Fora da Igreja, não há salvação”. A palavra de Deus destinada a Israel, e aceita pela Igreja, não exclui uma busca legítima do divino, mesmo se este continua silencioso. Esta busca pagã e filosófica não deixa de ter significado para o cristianismo, ela forma o horizonte humano e religioso sobre o qual se destaca a originalidade bíblica. Aquele não a condena, ela revela o desejo interno sem abolir com a pluralidade das experiências espirituais. Este esclarecimento é tão vigoroso e autêntico que não força a história a parir prematuramente uma unidade institucional englobadora. 

O encontro das religiões conduz o cristianismo a avaliar sua missão não mais segundo a metáfora da conquista, mas sob o ângulo de uma outra possibilidade: suscitar relações inesperadas e fecundas das quais as experiências espirituais singulares dão testemunho de várias maneiras. O dom do Espírito pelo Cristo ressuscitado, longe de favorecer o fanatismo ou a intransigência, convida a tomar os novos caminhos como necessidades vitais no tempo no qual a unidade precursora sofreria um empobrecimento dos desejos humanos de Deus. A teologia previne, assim, contra a ilusão de um mundo unificado e totalitário sob o selo da bíblia. Ela se opõe atualmente à requisição das riquezas religiosas e filosóficas da humanidade.

IHU On-Line - Que contribuições a teologia pode oferecer na busca de respostas para as questões que afligem a humanidade em nossos diais?
Christian Duquoc
- As inquietações dos humanos não são as mesmas segundo o modo de vida e o nível de desenvolvimento. A globalização que, no plano técnico e econômico, é incontestável produto dos efeitos tão ambíguos que alguns a negam a ponto de ficarem angustiados e que outros a percebem como uma esperança de sair da miséria. Este fenômeno não impede nem um pouco as guerras regionais de prosperar e os antagonismos e as raivas de se atiçarem. O progresso técnico e econômico não resolve as infelicidades da vida cotidiana: doenças, separações familiares, desemprego, lutos, angústia de morte. O pessimismo e o niilismo atentam o Ocidente que faria facilmente seu o propósito de um terrorismo basco desiludido: “Os que correm atrás de uma miragem não bebem mais da água do que os que só vêem a areia”.
Neste emaranhado de questões, de esperanças e desesperanças, a teologia nada pode afirmar além do que se propõe com sobriedade a fé cristã: a presença discreta de Deus na luta contra o mal e a infelicidade, a firme esperança de que a morte não terá a última palavra. Conseqüentemente, o teólogo desconfia das doutrinas que anunciam um futuro radiante, apoiando-se nas profecias bíblicas ou nas ideologias progressistas. Ele sabe que não dispõe de soluções concretas de ordem política ou econômica que resultariam imperativamente do Evangelho. Ele lembra as exigências bíblicas de justiça e de respeito, ele não goza de um potencial de conhecimentos práticos que não estejam em princípio à disposição de todos, ele pode incitar, por sua fé cristã, a escolhas corajosas: abrir-se a uma nova forma de viver que rompe com o modelo dominante, inventar espaços onde a fraternidade não seja uma palavra em vão. Ele não pode garantir que estas tentativas limitadas, porque não-estatais ou não diretamente políticas sejam capazes de resolver eficazmente os problemas que assombram nossas sociedades. Além do mais, ele nada pode sem a vitalidade inventiva e prática das comunidades cristãs.

Esses limites tornam delicada a situação do teólogo; aceitando-as, ele pode se fazer ouvir como uma voz singular imaginando um modo de vida menos “bulêmico”. Ele convida a não ceder à demagogia, a não favorecer o idealismo utópico, a não sacrificar às ilusões de um Deus a nossa disposição para pagar como encantamento as incoerências de nosso mundo.

 

 

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