Edição 387 | 26 Março 2012

A Constituição de 1988 foi um marco na história do Brasil

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Jacqueline Pitanguy de Romani

Ela se constrói tendo como eixo os princípios de direitos humanos a partir dos quais se definem as responsabilidades do Estado, reflete Jacqueline Pitanguy de Romani

Apesar de que a participação política da mulher brasileira no Congresso Nacional e nas Assembleias ser das mais baixas da América Latina, Jacqueline Pitanguy de Romani acredita que houve um grande avanço no marco normativo a partir da Constituição, a qual estabelece parâmetros de igualdade para homens e mulheres. “No âmbito civil, houve mudanças no código, adaptando-o aos princípios constitucionais. Recentemente, o Senado aprovou a lei que determina igualdade de pagamento a homens e mulheres por igual função. Além disso, existe desde 1996 uma lei de planejamento familiar que garante inclusive o direito à esterilização”. Essas são algumas das ideias da socióloga ao refletir sobre o cenário atual e os avanços ocorridos nos últimos anos, no que compete às políticas públicas em prol das mulheres. A também cientista política, ao receber uma série de perguntas enviadas por e-mail, preferiu respondê-las resumidamente em cinco tópicos. E enviou à IHU On-Line o texto a seguir. 

Jacqueline Pitanguy de Romani é socióloga e cientista política. De 1986 a 1989, indicada pelo então presidente da República, ocupou o cargo de Presidente do Conselho Nacional de Direitos da Mulher – CNDM, com o mandato de propor, acompanhar e desenvolver políticas públicas com perspectiva de gênero, visando melhorar a situação da mulher no Brasil. Nesse sentido, o CNDM desenvolveu programas nas áreas de Saúde Reprodutiva, Violência, Legislação, Cultura, Educação, Trabalho, Mulher Negra e Mulher Rural.

Confira o artigo.

A Declaração Universal de Direitos Humanos e a luta das mulheres

A Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948 – atualmente denominada Declaração Universal dos Direitos Humanos – constitui o pilar básico da linguagem internacional de direitos humanos, estabelecendo um conjunto de princípios que buscam regular a relação entre indivíduos e o Estado, definindo direitos e responsabilidades. A Declaração é, no entanto, um documento datado. Nesse sentido, reflete tanto o contexto internacional pós-segunda guerra mundial como as relações desiguais de poder entre homens e mulheres, prevalecentes na maioria dos países signatários. Nesse sentido, tal documento parte de uma ideia de humanidade calcada no homem como indivíduo abstrato, sobre o qual enuncia os direitos humanos. Mas, apesar de não considerar especificamente as desigualdades de gênero, estabelece um patamar sobre o qual, ao longo dos últimos 50 anos e em função de embates travados em arenas políticas nacionais e internacionais, a noção de direitos humanos adquiriu maior especificidade no sentido de reconhecer a diversidade do conceito mesmo de humanidade, a partir de gênero, raça e etnia.

A Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993

Essa Conferência da Organização das Nações Unidas – ONU foi de grande importância para o avanço dos direitos humanos das mulheres, pois, pela primeira vez, as Nações Unidas reconheceram que a violência doméstica é uma questão de direitos humanos. Esse reconhecimento introduz uma mudança paradigmática, pois até então, no plano internacional, o campo dos direitos humanos se definia no território das relações entre indivíduo e Estado, e não entre indivíduos particulares, como nesse tipo de violência. Entretanto, no Brasil a Constituição de 1988 já reconhece o papel do Estado em coibir a violência intrafamiliar (artigo 226, parág. 8) e, nesse sentido, nos antecipamos à Declaração da Conferência de Viena, que é, no entanto, de fundamental importância para legitimar e fortalecer os avanços conquistados no plano nacional.

Um novo conceito de humanidade

Como afirmei anteriormente, a Declaração Universal de Direitos Humanos está calcada em uma ideia do homem como uma figura genérica sinônimo de humanidade. Sabemos, entretanto, que, ao longo da história, alguns grupos e categorias sempre foram mais detentores de direitos que outros. Sexo, raça, etnia e pobreza sempre demarcaram territórios de menor titularidade de direitos. A sociedade civil vem desempenhando papel fundamental no processo de ampliação das fontes e instrumentos de direitos humanos, configurando novos espaços de cidadania, reconfigurando as relações Estado/indivíduo, legitimando uma ideia de humanidade que comporta diferenças, mas não admite que essas diferenças demarquem hierarquias entre cidadãos de primeira e segunda categoria. Pertencem a esse universo tratados internacionais que visam a proteção de grupos específicos, destacando-se a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção para os Direitos da Criança e o tratado mais relevante, no que se refere a desigualdade de gênero, que é a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres de 1979. No âmbito regional, cabe destacar a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ou Convenção de Belém do Pará. Trata-se, assim, de um novo conceito de humanidade, que reconhece e nomeia a diversidade ao mesmo tempo em que especifica e universaliza direitos e responsabilidades em função dessa diversidade.

A Constituição de 1988

A Constituição de 1988, também chamada de constituição cidadã por Ulisses Guimarães, deputado constituinte e presidente do Congresso Nacional, representa um marco na história do Brasil. Isso porque ela se constrói tendo como eixo os princípios de direitos humanos a partir dos quais se definem as responsabilidades do Estado. As mulheres, organizadas em movimentos, associações, sindicatos, realizaram um extraordinário trabalho junto do Congresso Constituinte. Em articulação com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, que presidi durante o período da constituinte, apresentamos propostas e emendas que, tendo sido incorporadas ao texto constitucional, permitiram um grande avanço nos direitos das mulheres. 

Situação atual

Apesar de que a participação política da mulher brasileira no Congresso Nacional e nas Assembleias ser das mais baixas da América Latina, houve um grande avanço no marco normativo a partir da Constituição que estabelece parâmetros de igualdade para homens e mulheres. No âmbito civil, houve mudanças no código, adaptando-o aos princípios constitucionais. Recentemente, o Senado aprovou a lei que determina igualdade de pagamento a homens e mulheres por igual função. Além disso, existe desde 1996 uma lei de planejamento familiar, que garante inclusive o direito à esterilização. Em 2006, foi aprovada uma lei específica de violência doméstica (Lei Maria da Penha), que parte de uma definição ampla de violência, incluindo as dimensões psicológica e patrimonial. 

Do ponto de vista de participação no mercado de trabalho, as mulheres brasileiras já constituem mais de 40% da força de trabalho, apesar de ainda receberem 70% do que recebe o homem. No capítulo da educação, elas não só têm níveis de escolaridade mais elevados do que os dos homens como também elas vêm ocupando espaços em carreiras antes nitidamente masculinas. Entretanto, há ainda grande distância entre leis e realidade, e é importante ter presente que não existe uma uniformidade na categoria mulher. Devemos nos referir às mulheres no plural, reconhecendo sua diversidade em função de classe social, raça e etnia, idade, bem como em função de seu local de trabalho e residência, rural ou urbana. Trazer maior igualdade entre as mulheres e entre elas e os homens é ainda um grande desafio.

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