Edição 387 | 26 Março 2012

O século XX representa o nascimento social da mulher

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Thamiris Magalhães

Com a Constituição Federal de 1988, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”

Um fator que modificou completamente o papel da mulher na sociedade contemporânea foi a introdução do princípio da igualdade presente na Constituição Federal de 1988, que alterou, entre outras coisas, o conceito anterior fincado na referência ao “homem”. “O emprego da palavra ‘pessoa’ amplia o âmbito e insere a mulher. Essa mudança considera os avanços presentes na Constituição Federal de 1988, que estabelece que ‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações’”, afirma Elza Maria Campos, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, no novo Código, as mulheres são vistas como cidadãs, sujeitas de direitos e deveres. “Agora a mulher, ao casar, não apenas ‘assume a condição de companheira do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta’ (art. 240 do Código de 1916), mas passa a exercer direitos e deveres baseados na comunhão plena de vida e na igualdade entre os cônjuges”, diz. Nessa nova legislação, continua Elza, há um capítulo sobre “os direitos da personalidade” – por exemplo, o direito à integridade do corpo, o direito ao nome, o direito à privacidade etc. “Vários abusos foram excluídos. Mulher nenhuma tem mais que provar sua virgindade. Nesse código, mulheres e homens são iguais e ambos podem opinar sobre todas as questões da família, acabando com a ‘chefia da sociedade conjugal’ que era exercida apenas pelo homem”.

Elza Maria Campos é coordenadora nacional da União Brasileira de Mulheres – UBM e assessora do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, especialização pelas Faculdades Integradas Espírita e mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professora nas Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil em Curitiba-PR. É coordenadora nacional da União Brasileira de Mulheres, integra o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e o Conselho Estadual da Mulher do Paraná. É da direção do Conselho Regional de Serviço Social do Paraná – CRESS – 11ª Região. Tem atuação no campo das Políticas Públicas com ênfase nas questões de trabalho e gênero.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A União Brasileira de Mulheres nasceu sob o símbolo da luta pela igualdade de gênero e pela emancipação da mulher. Como vê o andamento dessas duas causas na sociedade contemporânea?

Elza Maria Campos –
Entendemos que a luta pela igualdade de gênero avançou em nossa sociedade, considerando a luta do movimento feminista e de mulheres ao longo do século XX, em especial aquele movimento de mulheres que emerge na década de 1960 e que teve o mérito de introduzir na agenda política questões que estavam antes restritas à esfera, supostamente despolitizada e neutra, da vida privada, trazendo para o debate público temas como sexualidade e corpo feminino. Necessário evidenciar que esse movimento já lutava por liberdades democráticas em um país em que os direitos libertários foram usurpados pela imposição da ditatura militar de 1964, quando o movimento de mulheres teve papel central na luta pela liberdade. A luta pela igualdade de gênero passa a ser colocada como central na luta das mulheres pelo reconhecimento de sua condição de cidadãs e sujeitos de direitos, capazes de decidir sobre as próprias vidas.


Luta pela igualdade de gênero

Embora em pleno século XXI tenhamos conquistado uma Secretaria de Políticas para Mulheres, uma presidenta da República, várias ministras, uma lei que previne e pune a violência contra a mulher, o resultado positivo dos índices da inserção das mulheres nas universidades, inclusive em cursos que antes era do domínio masculino, ainda convivemos com desigualdades, seja no campo econômico, do trabalho, na cultura, no parlamento, entre outros. Avançamos, sim, mas ainda temos muito a caminhar para alcançar a igualdade de gênero. Entendemos que a luta pela igualdade de gênero está entrelaçada com a luta pela emancipação da mulher. Avaliamos que é na luta concreta, no cotidiano, na luta contra a alienação imposta pelo modo de produção capitalista, que conquistaremos a emancipação da mulher. Quanto mais liberdade de expressão, de organização e de manifestação, mais consciência de seu papel na sociedade, mais as mulheres conquistarão a liberdade. Mas entendemos que a verdadeira emancipação da mulher só ocorrerá em uma nova sociedade, erguida e regida pelas mulheres e pelo conjunto dos trabalhadores. Porém, mesmo em uma nova sociedade, será necessário romper com as amarras culturais machistas e patriarcais que impedem a verdadeira emancipação social.


IHU On-Line – De que maneira os movimentos sociais podem contribuir para uma melhor política pública às mulheres e qual a contribuição da União Brasileira de Mulheres nesse sentido?

Elza Maria Campos –
De fato, os movimentos sociais realizam e têm um papel histórico maior do que simplesmente revelar as tensões e contradições sociais de cada momento histórico. Acima de tudo, eles são um importante instrumento para revelar a realidade de opressão e exploração das classes subalternas.


IHU On-Line – Quais as principais mudanças introduzidas pelo Código Civil brasileiro em relação à atuação da mulher no casamento?

Elza Maria Campos –
Importante registrar que o Código Civil anterior mantinha elementos profundos de subordinação e da visão da mulher como propriedade masculina. É necessário evidenciar que essa mudança veio acompanhada de um processo de luta histórica do movimento de mulheres, ou seja, foram mais de 80 anos de luta.


Constituição Federal de 1988: avanços para as mulheres

A introdução do princípio de igualdade presente na Constituição Federal de 1988 muda o conceito anterior fincado na referência ao “homem”. O emprego da palavra “pessoa” amplia o âmbito e insere a mulher. Essa mudança considera os avanços presentes na Constituição Federal de 1988, que estabelece que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. No novo Código, as mulheres são vistas como cidadãs, sujeitas de direitos e deveres. Agora a mulher, ao casar, não apenas “assume a condição de companheira do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta” (art. 240 do Código de 1916), mas passa a exercer direitos e deveres baseados na comunhão plena de vida e na igualdade entre os cônjuges. A mudança na linguagem é fundamental, pois deixamos de ser uma “sombra” do homem. Sempre defendemos a utilização do gênero humano para compreensão do papel de homens e mulheres no processo histórico e o Código avança ao colocar o termo “pessoa”. Nessa nova legislação há um capítulo sobre “os direitos da personalidade” – por exemplo, o direito à integridade do corpo, o direito ao nome, o direito à privacidade etc. Vários abusos foram excluídos. Mulher nenhuma tem mais que provar sua virgindade. No Brasil, nos anos 1960 e mesmo 1970 do século XX, bem recentemente, se uma mulher com idade inferior a 21 anos “fugia para casar”, mesmo que não tivesse consumado a relação carnal, tinha que casar para não ficar isolada ou negligenciada à solidão e estigmatizada como “prostituta”. No código atual, nenhuma mulher tem mais que provar “honestidade” para ter direito à herança paterna. Isso para chamar a atenção que o termo “honestidade” tem uma marca histórica para as mulheres, que deveriam ser recatadas, quietas, sendo que para os homens representa sua atuação no mundo público, no mundo dos negócios. Outra questão refere-se à decisão de incluir ou não o sobrenome do companheiro em seu nome. Agora, o marido também poderá acrescer ao seu nome o nome da esposa. Ou ainda continuarem com os nomes de solteiros. Nesse código, mulheres e homens são iguais e ambos podem opinar sobre todas as questões da família, acabando com a “chefia da sociedade conjugal” que era exercida apenas pelo homem. Com relação à direção da sociedade conjugal, a mulher deixou de ser apenas uma colaboradora do marido, que tinha a chefia da família. Agora, a direção da sociedade conjugal passa a ser exercida por ambos, marido e mulher. E deve ser respeitado, em primeiro lugar, o interesse do casal e dos filhos. Se houver alguma divergência, qualquer um dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá considerando os interesses do casal e dos filhos. Além disso, o princípio da igualdade estabelece, também, as obrigações para com as despesas de sustento da família e a educação dos filhos, que são obrigações tanto do homem como da mulher. Essa obrigação deve ser cumprida, qualquer que seja o regime patrimonial. Parece estranho que em pleno século XXI estejamos comemorando essas mudanças, uma vez que na vida cotidiana muitas mulheres têm exercido sozinhas o cuidado com os filhos e, quando assumem a “chefia” da família, o fazem realmente só, diferente do homem que, quando “chefe” da família, na esmagadora maioria das vezes, tem a companheira como importante pilar no cuidado dos filhos e na atenção ao estafante trabalho doméstico.


IHU On-Line – Quais foram os principais avanços adquiridos pelas mulheres no que compete às mudanças nos direitos trabalhistas?

Elza Maria Campos –
Seria difícil imaginar que quando as feministas há mais de 100 anos lutavam pelo direito à educação e ao voto, estaríamos hoje com os índices de ocupação dos postos de trabalho no Brasil chegando quase a metade da força de trabalho brasileira e em ocupações até então não permitidas às mulheres como motoristas, engenheiras, operárias da construção civil, trabalhadoras rurais, comandante de avião, etc.


Licença maternidade

Um direito que deve ser mencionado refere-se à licença maternidade concedida à mulher que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança. Essa licença será concedida de acordo com a idade da criança adotada. Assim, a mãe que adotar criança até um ano de idade terá direito à licença de 120 dias; de mais de um ano até quatro anos, terá direito à licença de 60 dias; e de quatro até oito anos, terá direito à licença de 30 dias.

O trabalho doméstico como vital para a organização da vida da sociedade, que representa o cuidado dos afazeres domésticos, da alimentação, das vestimentas da família e que se ele não acontece desorganiza a própria vida social laboral em geral, ficou de fora da Constituição de 1988. Sabemos que a discriminação, a herança escravista, a evidência racista, fortemente presente em nossa sociedade e muitos outros motivos arraigados em nossa cultura, apartaram os direitos trabalhistas dessas milhares de mulheres trabalhadoras brasileiras.
Destacamos o recente tratado internacional que prevê mudanças como pagamento de FGTS, seguro-desemprego e hora extra, que agora o Brasil adotou. É preciso ainda levar em conta que muitas mulheres são chefes de família no Brasil e que isso se trata de uma conquista recente, a exemplo do direito à aposentadoria rural.


IHU On-Line – Quais as políticas públicas existentes para as mulheres que sofrem violência sexual?

Elza Maria Campos –
É necessário destacar que a violência sexual insere-se no entendimento da violência de gênero, decorrente das relações de classe, gênero e étnico-raciais, sendo decorrente de um sistema de dominação e de exploração manifesto nas relações de poder. Essa violência de gênero se expressa de diferentes formas, em particular na violência doméstica e conjugal.
Vivemos num país patriarcal e machista no qual a violência contra as mulheres e meninas ainda é naturalizada. Temos de reagir a isso. Há poucos anos os casos de violência passavam despercebidos. Hoje, as pessoas têm auxiliado as mulheres a procurar apoio. A existência da lei “desnaturaliza” a violência e, com isso, as pessoas se tornam mais ativas, ajudando as mulheres a pedir proteção.


Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha, importante instrumento que previne e coíbe a violência doméstica e entre essas a violência sexual, que foi conquista após mais de 40 anos de lutas do movimento feminista e de mulheres, é um instrumento na luta pelo fim da violência contra as mulheres e meninas. Por isso precisamos estar vigilantes à sua efetiva aplicação, para que aumente o número de juizados especializados e de serviços de atendimento às vítimas em agressores. Isso porque, sem isso, contamos apenas com a parte repressiva da lei e isso não é suficiente para garantir a integridade e dignidade das vítimas.


IHU On-Line – Quais foram os principais avanços adquiridos pelas mulheres no que se refere aos seus direitos políticos?

Elza Maria Campos –
As mulheres brasileiras saíram às ruas massivamente, ao longo do século XX, em favor de igualdade de direitos e conquista da cidadania plena. A luta era por visibilidade e reconhecimento da mulher como sujeito político. Estava posta a necessidade de problematizar as questões femininas a partir de uma lógica que pudesse historicizar a origem da propriedade privada, da desigualdade entre os sexos, tendo como esteio a divisão sexual do trabalho e o aprofundamento das desigualdades com o advento do capitalismo. Esse movimento conseguiu, através de duras batalhas no último século, dar visibilidade à luta contra o patriarcado e o sexismo, questionando a inferiorização e a subordinação das mulheres, personagens invisibilizadas e esquecidas em nossa história.


Primeira mulher na presidência da República

Não poderíamos deixar de mencionar o ineditismo da eleição da primeira mulher para a presidência da República. Tivemos também um aumento de ministras de Estado e em presidência de empresas e órgãos públicos, como no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e na Petrobrás. Grande avanço! Mas a representação parlamentar ainda é sofrível. Nos municípios, as mulheres são atualmente menos de 10% das chefias das prefeituras. Nas Câmaras Municipais, as mulheres formam cerca de 12% dos vereadores. Na Câmara Federal, são apenas 9% das vagas e 13,5% no Senado. Já nas Assembleias Legislativas, o percentual é de 12% das vagas. Além disso, no ranking mundial da representação parlamentar feminina, o Brasil está em 111º lugar, enquanto a Argentina está em 11º.


80 anos do direito de voto feminino

Mas, em 2012, quando se comemoram os 80 anos do direito de voto feminino, haverá eleições municipais. A Lei de Cotas determina que os partidos inscrevam pelo menos 30% de candidatos de cada sexo e dê apoio financeiro e espaço no programa eleitoral gratuito para as mulheres. Precisamos estar atentas a esta realidade.

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