Edição 386 | 19 Março 2012

Malick, Scorcese Lars von Trier em debate

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Thamiris Magalhães

A última tentação de Cristo e Cinzas do Paraíso são filmes que convidam a não apenas ter emoção, mas também a pensá-las em relação a formas de percepção de mundo, colocando certas determinações morais, estéticas e religiosas sob novas perspectivas e possibilidades, afirma Joe Marçal Gonçalves dos Santos

Ficha técnica
Nome:
A última tentação de Cristo
Nome original: The Last Temptation of Christ
Origem: EUA
Ano de produção: 1988
Gênero: Drama
Duração: 163 min
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Willem Dafoe, Harvey Keitel, Paul Greco, Steve Shill, David Bowie, Verna Bloom, Barbara Hershey, Harry Dean Stanton

Ficha técnica
Nome:
Cinzas do Paraíso
Nome original: Days of Heaven
Origem: EUA
Ano de produção: 1978
Gênero: Drama
Duração: 95 min
Direção: Terrence Malick
Elenco: Sam Shepard, Richard Gere, Brooke Adams, Linda Manz



Os longas A última tentação de Cristo, na direção de Martin Scorsese, e Cinzas do Paraíso, de Terrence Malick são obras de referência, porém, cada qual a seu modo, segundo Joe Marçal Gonçalves dos Santos. Segundo ele, Scorsese tornou-se um mestre do cinema clássico americano, narrativo, que seduz pela forma como uma história é contada ou recontada, direcionando expectativas e emoções. “Terrence Malick traz outra proposta, mais poética e menos determinada por uma história que se tem a contar. Por isso são filmes que exigem uma postura mais reflexiva e uma parcela de criatividade do espectador”, diz à IHU On-Line. “A relevância de ambos, entendo assim, está no que possibilitam viver a experiência do cinema tal como um deslocamento de um olhar comum e pronto acerca das coisas”.

As análises acima antecipam aspectos do debate que será dirigido pelo referido professor, após a exibição de Cinzas do Paraíso, que acontece em 19-03-2012, na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dentro da Programação da Páscoa 2012.

Joe Marçal Gonçalves dos Santos é graduado em Teologia pela Faculdade Luterana de Teologia, mestre e doutor em Teologia pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação. Professor na Faculdade de Teologia – Fateo, da PUCRS, e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Teologia e Sociedade do Programa de Pós-Graduação desta mesma instituição. Suas áreas de interesse são: teologia contemporânea; teologia da cultura; hermenêutica e teorias da arte; estética do cinema; Andrei Tarkovski. É membro da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião – Soter e da Associação Paul Tillich do Brasil.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual a relevância das obras de Martin Scorsese e de Malick para o cinema?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos –
São obras de referência, porém, cada qual a seu modo. Scorsese tornou-se um mestre do cinema clássico americano, narrativo, que seduz pela forma como uma história é contada ou recontada, direcionando expectativas e emoções. Terrence Malick  traz outra proposta, mais poética e menos determinada por uma história que se tem a contar. Por isso são filmes que exigem uma postura mais reflexiva e uma parcela de criatividade do espectador. A relevância de ambos, entendo assim, está no que possibilitam viver a experiência do cinema tal como um deslocamento de um olhar comum e pronto acerca das coisas. De uma forma ou de outra, são filmes que convidam a não apenas ter emoção, mas também pensá-las em relação a formas de percepção de mundo, colocando certas determinações morais, estéticas e mesmo religiosas sob novas perspectivas e possibilidades.


IHU On-Line – Como se dá o diálogo entre teologia e cinema nas obras de Malick e Tarkovski ?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos –
O cinema, por ser ele mesmo uma forma de representação e interpretação criativa da vida, convida ao diálogo com a teologia, na medida em que esta toma como seu objeto as formas como o ser humano traduz suas experiências de sentido último. Malick e Tarkovski são cineastas que, de modo especial, promovem esse diálogo, pela forma como se interessam pela condição humana face àquelas experiências em que o ser humano se vê tocado por questões absolutas e incondicionais. Além desse repertório, contudo, teologicamente significativo, em minha opinião, é não apenas o que cada um deles fala ou deixa de falar sobre essas questões, mas a forma com que o fazem. Quer dizer, são filmes muito pouco discursivos, diretivos ou dogmáticos. Em vez disso, encontramos neles poesia, o que proporciona uma mediação afetiva e reverente aos temas que são abordados em seus filmes. Na medida em que investem na duração da imagem, na construção de estados de espírito, no silêncio e numa música comedida, bem como nos envolvem com um olhar contemplativo acerca do mundo, esses filmes dão lugar preponderante à subjetividade. A sensação primeira pode ser de estranhamento, mas na medida em que nos entregamos e consentimos a esse cinema poético, experimentamos algo de iniciático, ou mesmo, como diz Deleuze acerca dos filmes de Tarkovksi, algo litúrgico.


IHU On-Line – Como a teopoética aparece nas obras de Malick? E nas de Scorsese?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos –
A noção de teopoética pede definição. No meu entender, trata-se de um critério que zela por vincular a análise e interpretação teológica da obra de arte à sua adequada recepção, que é antes de tudo estética. A partir desse pressuposto, o aspecto teopoético da arte contemporânea, arriscando generalizar, parece-me relacionado à indeterminação de representações de valores absolutos e, ao mesmo tempo, a um esvaziamento (o que em linguagem teológica diz-se kenosis, fazendo referência ao esvaziamento crístico de Deus quando assume forma humana) de representações tradicionais desses valores. Esse duplo movimento cria situações inusitadas, críticas e ao mesmo tempo criativas, na medida em que cria uma demanda incondicional para qual a resposta terá de ser necessariamente humana, histórica, provisória.  Scorsese, em A última tentação de Cristo, faz disso o motivo do enredo, colocando a narrativa dos evangelhos sob uma ótica de inversão do aspecto humano e divino em Jesus. Por sua vez, Malick, em Cinzas do Paraíso, por exemplo, promove esse mesmo movimento, de desencantamento em relação ao idílico, sustentado por metáforas bíblicas e um ordenamento moral pretensamente seguro no ambiente rural, para mergulhar nas condições trágicas de um mundo em transformação.


IHU On-Line – De que forma é acentuado o caráter filosófico e metafísico no longa Cinzas do Paraíso?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos –
O filme ganha um contexto social e histórico e está dialogando abertamente com ele: trata-se de uma interpretação bastante crítica do início da sociedade industrial, nos Estados Unidos da América, nas primeiras décadas do século XX. Essa relação, por si mesma, evidencia um caráter filosófico importante. E, na medida em que o filme cria esse enredo, de um relato de uma adolescente acerca dos dias vividos tal como num paraíso, com as relações que lhe representam sua família, no cenário idílico de uma fazenda em meio ao campo e à natureza abundante – tudo isso convida à reflexão filosófica acerca de um sistema de crenças, mitos e ideologias que se perpetuam ainda hoje. O caráter metafísico, por sua vez, creio que se possa explorar tanto pelo que o filme sugere acerca da relação ser humano e natureza como por sua estrutura narrativa, dando-se como uma memória da personagem narradora.


IHU On-Line – Por que a mudança no Brasil do título original da obra Days of Heaven para Cinzas do Paraíso?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos –
Boa pergunta, para um filme que encerra afirmando desejo e esperança, ainda que de modo bastante modesto, colocá-lo sob as cinzas que destruíram a fazenda soa regressivo e um tanto moralista...


IHU On-Line – Há influência de Martin Heidegger nos filmes de Malick, uma vez que o cineasta era leitor e tradutor do filósofo alemão?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos –
Creio que ambos são cúmplices no interesse pelo humano. Além disso, considerando como Heidegger  toma a história e a existência humana como palco definitivo do real bem como rompe com uma metafísica transcendental positiva e objetiva, condecorando a linguagem e a expressão humana como a morada do ser, acho muito provável que seu pensamento seja no mínimo inspirador.


IHU On-Line – Os diálogos de Cinzas do Paraíso estão recheados de citações bíblicas, frases não terminadas, praticamente declamadas pelo elenco (principal ou não) de forma estilizada e muitas vezes sem nenhum sentido, trazendo alusões apenas indiretas à história. Nesse sentido, há, nos filmes de Malick, características fílmicas pós-modernas?

Joe Marçal Gonçalves dos Santos – Isso depende de como definiríamos essas características fílmicas pós-modernas. Considerando o modo como Malick investe no silêncio, privilegia o tempo em sua duração, não em sua superação em velocidade, aborda o humano como criatura feita de relações, parece-me que tudo isso o distancia de algo assim, “pós-moderno”. Nessas citações bíblicas e literárias associadas à indeterminação de significado vejo antes um estilo de cinema poético, a maneira de mestres como Tarkovski, Bergman , Kurosawa , Pasolini , entre outros. Paradoxalmente, são cineastas que entenderam o cinema como arte da observação da vida e não tanto uma arte narrativa. Por isso são poetas de imagens em movimento, beirando algo documental, cujo interesse é a dar visibilidade ao invisível, isto é, aos suspiros humanos em suas faltas e desejos mais profundos. Se, a partir disso, compreendermos esses artistas como precursores de aspectos que hoje se acentuam, e que alguns caracterizam como pós-moderno, então teríamos relações mais a fazer e, o melhor de tudo, mais motivos para assisti-los sempre de novo.


Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Joe Marçal Gonçalves dos Santos e publicadas na IHU On-Line:

* Da ingenuidade ao cinismo: o Brasil de Sérgio Bianchi. Entrevista publicada na edição 249 da Revista IHU On-Line, de 03-03-2008

* “O Cristianismo tem por vocação atender as demandas de forma plural e diversa.” Entrevista publicada em 21-08-2009

* Um olhar teopoético. Teologia e cinema em O Sacrifício, de Andrei Tarkovski. Cadernos Teologia Pública, nº 26

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