Edição 197 | 25 Setembro 2006

A banalidade da ética e da política

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IHU Online

Franklin Leopoldo e Silva é doutor em Filosofia e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Ele irá participar do Simpósio Internacional O Futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?  a ser realizado em maio de 2007, na Unisinos, promovido pelo IHU.

 
O professor da USP falou na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, sobre política brasileira e políticos, PT, moralidade como política, campanha pelo voto nulo e comentou as próximas eleições de outubro no Brasil. Confira a entrevista realizada, originalmente veiculada nas Notícias Diárias da página do IHU, em 14-9-2006.

IHU On-Line - O que o senhor poderia falar sobre a conferência Moralidade como Política, que proferiu no seminário Esquecimento da Política?
Franklin Leopoldo e Silva
- Escolhi como subtítulo da palestra a expressão Banalidade da Ética, que revela a inspiração do texto em Hannah Arendt  e seu livro Eichmann em Jerusalém . Segui o raciocínio dessa autora no sentido de mostrar que as condições sobre as quais agiram Eichmann  e outros nazistas, e que se configuram como a incapacidade de julgar, não são exclusivas daquele período, mas podem ser consideradas como o solo histórico do desenvolvimento político da modernidade. O juízo político, ou ético-político, relaciona-se com o que Aristóteles  chamava de Phronesis, discernimento ou prudência, que Arendt acredita reencontrar no juízo reflexionante da Crítica do Juízo, de Kant .

Como se sabe, esse tipo de juízo não se efetua com base em determinações gerais de ordem lógica existentes a priori na razão, mas sim, com base na consideração reflexiva de objetos ou situações particulares, vistas subjetivamente e alçadas a um patamar de universalidade não-teórica nem lógica. Seria algo aplicável à transformação das opiniões subjetivas em opinião pública numa situação em que a palavra poderia ser compartilhada pelos cidadãos, como na democracia grega. Para isso, é necessário que a opinião subjetiva não expresse o interesse particular, mas que o indivíduo, como cidadão, possa considerar, embora subjetivamente, o interesse geral.

Foi essa forma de fazer política que se perdeu na modernidade, em que o interesse privado, motor da civilização capitalista, coloca-se como critério ético e político. Conseqüentemente perdeu-se também a figura do indivíduo-cidadão (a individualidade lastreada pela comunidade) e instalou-se a hegemonia do interesse privado, sendo o centro de gravidade moral do capitalismo, a vida privada. Como decorrência veio o empobrecimento da vida pública e o processo de dissolução da esfera pública como lugar e fonte do poder. Os totalitarismos do século XX dão testemunho dessa mudança e do caráter meramente formal das democracias contemporâneas. Daí o desaparecimento das condutas e dos critérios públicos para avaliar as condutas ditas políticas. O espaço público foi reduzido à publicidade, e a vida pública, ao jogo de interesses privados que se digladiam ou se alternam. Não há sinais de que essa situação possa ser revertida. Daí a banalização tanto da ética quanto da política, devido à extinção dos vínculos internos que as ligavam.

IHU On-Line - O senhor acha correto falarmos hoje em banalidade da política no Brasil?
Franklin Leopoldo e Silva
- A banalidade da política deriva de seu desaparecimento, o que faz a política ser confundida com ações e critérios que nada têm a ver com a essência da política definida como vida pública institucionalmente organizada. A política tornou-se algo trivial porque ela foi degradada até o ponto de seu esquecimento ou desaparecimento. Não é o caso somente do Brasil, mas de muitos outros países com diferentes níveis de desenvolvimento. O individualismo exacerbado e o completo controle social da vida individual (duas coisas que parecem contrárias, mas que se combinam perfeitamente no mundo globalizado) são as causas mais importantes dessa situação.

IHU On-Line - A opinião pública, tendo o conhecimento dos políticos atuais, tem como acreditar em uma moralidade na política brasileira?
Franklin Leopoldo e Silva
- Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que o que se chama de “opinião pública" nada mais é do que a manipulação dos indivíduos pelos dispositivos de poder e pelos meios de comunicação. O indivíduo é passivo e massificado pelos controles que sobre ele são exercidos. Sua opinião não é formada democraticamente, mas imposta por grupos que fazem passar interesses privados, ilegítimos e, em muitos casos, até ilegais como se fossem interesses da coletividade. Nessa situação, as pessoas estão reduzidas a uma avaliação precária de condutas privadas de políticos, como se a dimensão social fosse apenas a somatória de indivíduos meramente agregados e apegados a seus interesses privados. A preocupação com a moralidade privada deriva do desaparecimento da vida pública, cujo sustentáculo ético seria exatamente o despojamento do interesse privado. Isso é impossível nas condições históricas atuais, tanto no Brasil como em toda parte. As campanhas por bons indivíduos passam ao largo da necessidade de bons cidadãos.

IHU On-Line - O que teria de ser feito para que a política brasileira fosse encarada com mais moralidade e respeito?
Franklin Leopoldo e Silva
- Antes de tudo, restabelecer a própria política, isto é, a vida pública autêntica. Não existe uma “ética da política". As relações humanas são adequadas à finalidade de emancipação dos indivíduos quando são ética e politicamente autênticas: quando o indivíduo pode reconhecer no plano social as possibilidades de exercício real de sua subjetividade e de sua liberdade, ou seja, da cidadania. Isso implica ética e política como dimensões inseparáveis, que corresponde à ligação profunda entre indivíduo e cidadão. Não se tem respeito pela política porque ela não existe; e não se respeita à moralidade social porque, na ausência da política, ela não faz sentido. Quanto à moralidade individual e privada, ela se presta a um uso publicitário e eleitoreiro; somente a transparência da vida pública pode fornecer critérios de avaliação ético-política.

IHU On-Line - O que o senhor vê na política partidária feita no Brasil atualmente?
Franklin Leopoldo e Silva -
Os políticos se ocupam de negócios; e os partidos são as bases e os instrumentos para as negociações e as negociatas. Nenhum dos partidos existentes promove a política no seu verdadeiro sentido ou exige de seus afiliados um comportamento político coerente com a idéia de vida pública. Não há qualquer critério político que governe a atuação dos partidos: tudo é decidido conforme vantagens e desvantagens nas negociações que são, ou diretamente financeiras, ou destinam-se a contemplar interesses privados na proporção do poder de pressão e de barganha dos diferentes grupos que estejam em situação de tirar vantagem. Qualquer observação superficial das casas do Congresso leva à visão de um esvaziamento político e de uma degradação total, consentida por quase todos os parlamentares, tolerada pelos outros poderes e já incorporada como natural por boa parcela da população. Trata-se de uma situação que tende a reproduzir-se porque as condições são favoráveis à manutenção desse sistema.

IHU On-Line - O PT tinha como bandeira ideológica a sua ética e a integridade de seus políticos. Depois de todas as acusações que aconteceram nos dois últimos anos, o senhor acha que o PT moralmente acabou?
Franklin Leopoldo e Silva -
O caso do PT não pode ser analisado separadamente da situação geral e dos padrões de sistema da "vida política" brasileira. Por mais forte que seja qualquer partido, ele não pode superar condições estruturais de degradação, a menos que renuncie a qualquer pretensão de poder. O sistema tem um extraordinário poder de fazer as intenções se adaptarem à realidade, tendo em vista várias justificativas. Mas o importante é que o sistema é mais forte do que qualquer partido. É possível fazer oposição dentro do sistema, mas não é possível fazer oposição ao sistema. As derrotas e as vitórias do PT mostraram igualmente onde está o poder e como ele é exercido, isto é, mostraram muito mais a força do sistema do que a força do partido. Como o PT tinha uma linha ideológica progressista e fazia uma oposição sistemática, abrindo espaço para expectativas radicais, a vitória do sistema nesse caso foi aparentemente mais chocante do que no caso de partidos já desde sempre inteiramente adaptados. Contudo, não foi surpreendente. Todos pudemos seguir as etapas da incorporação do partido ao sistema, tanto que a vitória não foi por todos festejada. Assim, não se trata de julgar o PT, principalmente com um discurso moralista que é trivial e cínico, além de oportunista. Trata-se de avaliar de forma mais adequada a força do sistema e as possibilidades de transformação, inclusive criando formas de atuação que não passem pelas vias tradicionais.

IHU On-Line - O senhor acha que esta campanha pelo voto nulo está repercutindo nos políticos por uma maior credibilidade da parte deles?
Franklin Leopoldo e Silva
- Os políticos não podem construir uma credibilidade maior; podem apenas forjar novas aparências de credibilidade, e isso depende das estratégias de marketing. A campanha pelo voto nulo tem como causa, pelo menos em parte, uma espécie de recusa ética da política. Ora, deixar de fazer política em nome da ética é um erro que reforça a separação entre ética e política. A política é, concretamente, a dinâmica da realidade social. Ficar indiferente à política é desdenhar a realidade social e, num país como o nosso, esse comportamento não pode ser considerado uma virtude. Para o sistema, no entanto, a indiferença política é muito positiva: alimenta a ilusão de que o indivíduo recolhido à sua particularidade e alheio ao social seria mais livre e mais autônomo. A democracia formal, aquela que vive da participação abstrata dos indivíduos, só tem a ganhar com essa atitude.
 
IHU On-Line - O senhor acredita que as próximas eleições podem colher uma resposta direta da população contra a corrupção e os políticos atuais no País?
Franklin Leopoldo e Silva
- O voto nulo é uma resposta imediata, mas não é a mais eficaz. A política foi substituída por um sistema de gerenciamento tecnoburocrático, de teor economicista, que comporta a corrupção como parte integrante de uma certa concepção de gestão privatista da coisa pública. Isso está muito bem enraizado, e o sistema não será abalado pelos episódios a que assistimos. Pelo contrário, tudo isso pode gerar procedimentos, inclusive legais, que protejam o sistema de eventuais instabilidades. Espetáculos públicos de moralização aparente produzem efeitos ilusionistas, mas não atingem o núcleo de uma ordem muito bem guarnecida.

IHU On-Line - Em 2007, o senhor estará participando do Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia aqui na Unisinos, promoção do IHU. O senhor já está pensando no tema que lhe foi proposto?
Franklin Leopoldo e Silva
- O tema que me foi proposto é A subjetividade moderna. Possibilidades e limites para o cristianismo. Ainda não tenho clara a linha que devo desenvolver. Mas o enunciado, assim como o tema geral do evento, sugere uma reflexão acerca das relações entre indivíduo e comunidade, pautada talvez na relação entre individualismo e moralização do interesse particular (ética do capitalismo), algo a ser confrontado com a universalidade concreta das exigências éticas cristãs.

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