Edição 381 | 21 Novembro 2011

"Grundrisse" de Marx. Um outro paradigma teórico para os desafios contemporâneos

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Graziela Wolfart

Jorge Paiva fala sobre a proposta de um novo paradigma teórico para vencermos os desafios atuais. Trata-se de formulação teórica nova, que vai fundo na crítica ao marxismo tradicional, a partir da leitura da obra de Karl Marx intitulada Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, conhecidos simplesmente, como Grundrisse

Republicamos, a seguir, uma entrevista concedida por Jorge Paiva à IHU On-Line, originalmente publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 19-06-2006, ocasião em que Paiva esteve na Unisinos, fazendo a apresentação do livro As aventuras da mercadoria, de Anselm Jappe. “A natureza da crise é exatamente a crise categorial, das categorias do capitalismo. Para os marxistas tradicionais soa como se estivéssemos questionando a teoria da gravidade. Porque essas categorias são consideradas ontológicas, naturais. Não se discute isso. Quando questionamos essas categorias, o edifício treme”, afirma.

Jorge Paiva faz parte do grupo Crítica Radical, de Fortaleza-CE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a contribuição brasileira para essa discussão sobre os Grundrisse?

Jorge Paiva - Essa nova concepção teórica contraria a formulação teórica dos agrupamentos de maneira geral no país. É uma formulação teórica nova, que vai fundo na crítica ao marxismo tradicional. Ela descobre duas leituras de Marx. Uma leitura que está sustentada na luta de classes, na política, no Estado, na ditadura, no proletariado, na revolução socialista. E a outra é a crítica radical do valor, do fetichismo, da mercadoria, do trabalho, do Estado, do mercado, do dinheiro. Portanto, é uma fundamentação teórica que busca uma relação social distinta da distribuição. De um lado, temos uma discussão que se caracteriza muito na distribuição das mercadorias. Ela está em torno do resultado da natureza da crise, da própria crise do valor. É uma discussão que, em última instância, por mais radical que ela seja, moderniza o sistema.

Uma crítica às categorias


Do outro lado, temos uma crítica categorial. É uma crítica às categorias fundantes do capitalismo, portanto, muito mais profunda. O próprio Marx considerava essa parte a mais difícil da obra dele. Eu, inclusive, fui aconselhado a não começar por esse caminho. Mas é nele que está a riqueza. Essa contradição não está resolvida pela maioria dos grupos marxistas do Brasil. A natureza da crise é exatamente a crise categorial, das categorias do capitalismo. Para os marxistas tradicionais soa como se estivéssemos questionando a teoria da gravidade. Porque essas categorias são consideradas ontológicas, naturais. Não se discute isso. Quando questionamos essas categorias, o edifício treme.

A crise do valor

Por exemplo, uma coisa muito rica nessa discussão é entendermos que o valor tem sexo, que o capitalismo tem sexo. E que a entrada da modernidade deu, no capitalismo, um papel diferente ao homem e à mulher. E que, portanto, o patriarcado anterior se reforçou no capitalismo. Então, as mulheres ficaram subalternas, "o homem manda", exatamente porque também o valor deslocou isso. Então, como a crise atual é uma crise do valor, ela também ocasiona a "crise do macho". Como ela leva a essa "crise do macho", ela pode despertar nas mulheres um papel diferente. Evidentemente que aí há um problema, porque o movimento feminista não pode pedir só oportunidade de ser igual ao homem. Tem que pensar num movimento que supere, porque o "macho" é um valor dessa sociedade em crise. Isso abre uma perspectiva nova.

Do ponto de vista do pós-modernismo é algo ainda maior, porque o pós-moderno é um pensamento que, em função da crise anterior, fragmentou a teoria. Na crítica que ele faz ao marxismo ele o fragmenta. No entanto, como ele não faz da crítica a crítica às categorias, ele se desarma perante isso, porque, para pegarmos a natureza da crise hoje, temos que ter uma visão de conjunto do sistema. Mesmo porque o capitalismo não está aqui ou lá. Ele é global, ele é "one world". Então, temos que fazer uma vista geral desse processo. Assim, começamos a perceber que essas formulações teóricas deixam a desejar. Parece que o futuro está com essa concepção teórica nova. Pelo menos estamos sentindo isso.

IHU On-Line O que quer dizer a expressão "crítica radical do valor" a que o senhor se refere no comentário sobre o livro de Jappe?

Jorge Paiva - O livro é algo novo, inusitado em termos de edições brasileiras. Ele analisa esse aspecto da crítica radical do valor a partir de Marx, e vai estudar, portanto, a dupla natureza da mercadoria. Ele mostra como isso é fundamental no sentido do trabalho, do dinheiro. Aponta que isso está em crise e que uma abstração real comanda a nossa vida. É algo que está nas nossas costas, portanto não é a leitura do conflito de classe que nos permite ver o mundo, é exatamente captar essa abstração real. Essa é uma expressão em contradição: como uma abstração pode ser real? Ele vai aprofundar e provar isso, de forma acessível, didática e bonita, trazendo tudo para a realidade do trabalho, da política, mostrando as insuficiências da crise do Estado, do mercado, do dinheiro.

A crítica ao trabalho

Jappe vai fundo na crítica ao trabalho. Ele dimensiona e localiza etimologicamente como o trabalho era entendido como uma relação de servidão, dependência, indo na raiz da palavra trabalho. Tudo isso para dizer que o trabalho foi imposto, que as armas entraram nos regimes absolutistas para que as pessoas fossem deslocadas do campo para se congregarem nas fábricas e isso possibilitou um processo de expansão do sistema muito grande. Era uma dinâmica quase que absoluta, porque não tinha obstáculo que o sistema não superasse. As iniciativas revolucionárias que aconteceram no período da expansão do capitalismo acabaram derrotadas porque fizeram a tomada de poder, tomaram o aparelho do Estado e mantiveram as categorias do capitalismo. O que é a foice e o martelo? Trabalho.

A natureza da crise

A novidade é que, enquanto o sistema sofria o processo de expansão, os obstáculos foram derrubados. Hoje o limite não está vindo das iniciativas revolucionárias. Está vindo internamente ao sistema. Quando o sistema tira o trabalho, ao substituir pela microeletrônica, ele serra o galho onde ele está sentado. Daí vem a natureza da crise. Para superar essa crise, é preciso pensar em uma relação social nova, que não esteja mais baseada nessas categorias. E daí "a coisa pega", porque o sujeito, que somos nós, frutos desse processo, não queremos "largar o osso". Queremos continuar, ver se há possibilidades de melhorar, já que não é possível que a situação piore. Mas está piorando, cada dia que passa piora, e temos que pensar em uma saída para superar isso com uma certa urgência.

IHU On-Line - De que forma pode se fazer uma "crítica radical" às categorias fundantes do capitalismo como valor, trabalho, mercadoria, dinheiro, Estado, política, democracia e nação?

Jorge Paiva - Isso não é algo fácil, porque a crise é também uma crise do sujeito, da pessoa humana. Nós temos nas nossas cabeças camadas geológicas muito grandes, que advém inclusive do período primitivo, pré-moderno e do capitalismo. Essas camadas se formaram e se assentaram com base no que chamamos de relações fetichistas. E a relação fetichista da mercadoria casou com isso. Quando um homem sai do processo da primeira natureza e entra na situação da segunda natureza, as relações históricas são relações fetichistas. Não são relações de classes, de poder. Elas, pelo contrário, estão subordinadas ao fetiche. O fetiche moderno é o fetiche do dinheiro, da mercadoria. Como a crise atinge essas categorias, a pessoa que está com essa formação entra em crise, porque ela quer manter uma situação que não tem mais condições de se manter. Então começamos a ver aberrações sociais das mais variadas, porque há uma incorporação dessa lógica, que está enraizada nas nossas cabeças. Aprendemos e só sabemos fazer, só conhecemos isso.

É preciso pensar na superação do sujeito

Então, ao entrar em contato com outras pessoas, ao pensar em uma outra possibilidade, essa lógica vem em primeiro plano. Estabelecer uma crítica radical para pensar na superação disso não basta pensar apenas na superação das categorias. É preciso pensar em uma superação do próprio sujeito, portanto, da própria pessoa da qual fomos construídos e criados, organizados. Essa tarefa é difícil. Por outro lado, o universo das pessoas em termos de atuação social se dá exatamente em como se distribuem essas categorias. Então, apela-se para o Estado, pois é o Estado que deve harmonizar isso, a pessoa quer um emprego, porque depende do trabalho, porque com o trabalho ela compra as mercadorias, e esse encontro se dá no mercado. A atuação da pessoa é política, porque o cidadão é a pessoa que atua, que reivindica direitos, que vota.

Não basta apelar para o Estado, para o mercado. Não basta ter trabalho, porque amanhã a pessoa pode estar desempregada. Somos forçados a pensar em uma situação nova. A dificuldade da crítica radical, nesse particular, é organizar um novo movimento social, radical, transnacional, e pensar um tipo de relação social que não seja mais mediada pela troca. Isso é difícil, porque fomos educados na troca, mas por outro lado, ou nós fazemos isso ou então vamos sucumbir com o sistema. O atual sujeito está no Titanic e no convés está tocando a banda. Ele quer que a banda continue tocando, não quer abandonar o barco.

IHU On-Line - O que devemos aproveitar de Marx e por que é necessário ir além dele?

Jorge Paiva - Marx foi a pessoa que, na época dele, um tanto quanto único, infelizmente, captou esse problema das categorias. Marx pegou o capitalismo nascente, se desenvolvendo, ainda muito jovem, com muita força e impetuosidade. E ele como observador e estudioso, e em um local privilegiado como a Inglaterra, conseguiu captar essa questão das categoriais. Marx separa algumas mercadorias, descobre que a mercadoria é a célula germinal. No estudo da comparação de duas mercadorias, ele percebe que, de um lado e de outro da equação, tem algo em comum, que é o valor e que quem mede isso é o tempo de trabalho. As pessoas não sabem, mas fazem isso. E ao perceber isso, ele foi capaz de prospectar para vários anos depois dele a possibilidade dessa categoria e dessa relação social entrar em crise.

Marx não viveu isso, pelo contrário. A época dele foi a época da expansão do sistema. Por isso, a leitura da luta de classes acabou predominando. Esse tesouro ficou escondido e essa responsabilidade ele transferiu para nós hoje, no sentido de irmos além dele. E só é possível ir além dele se subirmos nos ombros dele, exatamente nessa ótica, que é uma ótica abandonada pela esquerda, que acha que a luta de classe é a que dá conta da natureza da crise. E nós estamos convencidos de que não dá, não é possível enfrentar a complexidade do mundo hoje com um tipo de análise que é capenga, que não está bem fundamentada, que explica elementos secundários, mas superficiais.

IHU On-Line E qual a contribuição de Debord, com "A sociedade do espetáculo"?

Jorge Paiva - Debord foi alguém da turma de 1968 que resgatou esse problema da mercadoria. O espetáculo, para ele, é o desenvolvimento do processo da mercadoria. O desenvolvimento do capital é tanto que vira imagem. Essa é a contribuição de Debord. Ele traz isso no seu livro, A Sociedade do Espetáculo. Ele fala das implicações disso, diz que a sociedade da atualidade (dele, sendo que o livro saiu em 1967) é essa sociedade do espetáculo e ao provar isso, ele abre na época algo inusitado, porque foram raras as pessoas que fizeram isso. O grande valor de Debord está exatamente nisso. Talvez por causa disso ele tenha sido tão maltratado pela esquerda e pela direita: porque foi um inovador. A nossa tradução brasileira veio quase 30 anos depois, em 1997.

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