Edição 381 | 21 Novembro 2011

O capitalismo como um processo de acumulação

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Emir Sader defende que a proposta de transformação do mundo está articulada na visão do marxismo, que perde a sua essência ao se transformar em “um exercício acadêmico, crítico, especializado, desvinculado da prática política”, explica

“Muito mais do que O Capital, os Grundrisse constituem uma reflexão mais abrangente no sentido de que aborda temas econômicos mais amplos, temas históricos, políticos, culturais e sociológicos. O livro traz elementos para uma reflexão sobre a evolução histórica da humanidade em esferas muito diferenciadas. É uma obra monumental para o conhecimento da história e do capitalismo do mundo contemporâneo”. A definição é do professor e filósofo Emir Sader. Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, ele declara que vários aspectos podem ser tomados a partir dos Grundrisse. Um deles é de que “o capitalismo é um modelo de acumulação, feito para acumular e não para produzir. O capitalismo é o sistema que mais transformou a história da humanidade e as sociedades humanas em menos tempo”. E continua: “o capitalismo financeiro não é aquele que financia a produção, o consumo, a tecnologia; é um capitalismo financeiro que vive da especulação, da compra e venda de papéis. Esse é um elemento fundamental para entender o capitalismo contemporâneo. Chegou-se a uma fase financeira que, conforme análises, é sempre a fase final. É uma fase de não retorno, de sedentarismo, de esgotamento do modelo, que é claramente o caso do capitalismo”. Para Sader, os Grundrisse constituem um “festival de reflexões de colocações em prática do método de Marx. É um exemplo claro de uma aplicação da dialética às distintas circunstâncias e esferas do conhecimento e da prática humana”.

Emir Sader graduou-se em Filosofia, cursou o mestrado em Filosofia Política e doutorou-se em Ciências Políticas, pela Universidade de São Paulo – USP. Na instituição, foi professor de política e filosofia. Também foi docente da Universidade de Campinas – Unicamp e da Universidade do Chile. Professor aposentado da USP e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia, Sader dirige o Laboratório de Políticas Públicas – LPP, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em contexto de crise econômica e financeira mundial, em que sentido a leitura dos Grundrisse e da obra de Marx como um todo pode contribuir para pensarmos sobre os rumos do capitalismo?

Emir Sader – Vários aspectos podem ser tomados a partir dos Grundrisse. Um deles é de que o capitalismo é um modelo de acumulação, feito para acumular e não para produzir. O capitalismo é o sistema que mais transformou a história da humanidade e as sociedades humanas em menos tempo. A construção urbana, por exemplo, praticamente é produção do capitalismo. A sociedade industrial também. Mas acaba-se associando indevidamente a ideia de acumulação com a ideia de produção. Marx, no terceiro volume de O Capital, e nos Grundrisse muito mais, afirma que o capitalismo é um processo de acumulação. Se precisar passar pela produção, ele passa. No entanto, trata-se de uma contradição profunda, porque não existe acumulação financeira sem haver processo produtivo. Porém, é um desvio essencial. A própria crise atual do capitalismo começou com uma crise financeira, porque na época neoliberal o capital financeiro é hegemônico. Todo o grande conglomerado tem suas estruturas produtivas, mas na sua cabeça tem uma estrutura financeira. O capitalismo financeiro não é aquele que financia a produção, o consumo, a tecnologia; é um capitalismo financeiro que vive da especulação, da compra e venda de papéis. Esse é um elemento fundamental para entender o capitalismo contemporâneo.

O esgotamento do modelo capitalista

Chegou-se a uma fase financeira que, conforme análises, é sempre a fase final. É uma fase de não retorno, de sedentarismo, de esgotamento do modelo, que é claramente o caso do capitalismo. O boom econômico que acabou desembocando nessa crise atual foi o boom imobiliário, financiado de maneira virtual, fajuta, por pirâmides financeiras, sem fundamento na produção real. De repente desmoronou, caiu. O caso dos Estados Unidos e da Espanha é mais significativo. Significa que aquele elemento estrutural do capitalismo, que está muito presente nos Grundrisse, é aquele de que o capital produz e não distribui renda para consumir o que produziu – então suas crises são sempre de superprodução e subconsumo, ou seja, são o desequilíbrio entre produção e consumo. E daí vem a fase que agora aparece de forma escandalosa: sobra produção, mas em vez de distribuir renda, as pessoas são mandadas embora, aumenta-se o desemprego e cortam-se os custos de políticas sociais, intensificando ainda mais a crise e desequilibrando a produção e o consumo. O momento da crise é de irracionalidade. A desregulamentação que o neoliberalismo promoveu fez com que houvesse uma brutal e gigantesca transferência de investimentos, de renda do setor produtivo para o setor especulativo, que é onde se ganha mais. A especulação financeira é uma espécie de câncer que o capitalismo criou em seu seio.

IHU On-Line – O que faz dos Grundrisse um patrimônio das ciências humanas?

Emir Sader – Muito mais do que O Capital, os Grundrisse constituem uma reflexão mais abrangente no sentido de que aborda temas econômicos mais amplos, temas históricos, políticos, culturais e sociológicos. O livro traz elementos para uma reflexão sobre a evolução histórica da humanidade em esferas muito diferenciadas. É uma obra monumental para o conhecimento da história e do capitalismo do mundo contemporâneo.

IHU On-Line – O que os Grundrisse revelam sobre o método de trabalho de Marx?

Emir Sader – Ele reflete sobre o método de trabalho ao qual Marx já tinha chegado e coloca em prática. Refiro-me a todo aquele caminho de descoberta de que a realidade não é compreensível aos olhos, ou como ele mesmo diz: se o mundo fosse compreensível empiricamente a ciência seria desnecessária. Trata-se de todo esse processo de desconstrução da positividade imediata do mundo, para depois voltar a compreendê-lo como síntese concreta de múltiplas determinações. Os Grundrisse é um festival de reflexões de colocações em prática do método de Marx. É um exemplo claro de uma aplicação da dialética às distintas circunstâncias e esferas do conhecimento e da prática humana.

IHU On-Line – Como o contexto histórico e político em que Marx vivia contribui para a compreensão de seus escritos, principalmente os Grundrisse?

Emir Sader – Com razão, o pano de fundo da compreensão das obras de Marx é o conjunto de obras de Eric Hobsbawm  sobre as “eras”. A obra de Marx tem uma perdurabilidade impressionante. É feita para entender a história humana, mas muito contrastivamente voltada para a compreensão do capitalismo. Os Grundrisse permitem aprofundar essa compreensão de que, de alguma maneira, o capitalismo conspira contra ele mesmo. Marx viveu essa contradição profundamente, por ser um teórico e um militante político. Os Grundrisse remetem sempre a tudo o que Marx tomou como a contemporaneidade: o processo de acumulação, a revolução comercial e industrial e os limites disso em relação à luta de classes, bem como o surgimento do proletariado e a construção das alternativas ao capitalismo.

IHU On-Line – Qual a importância de Marx ser um ativista revolucionário, além de pensador revolucionário, para o sucesso de sua obra?

Emir Sader – Marx não pretende elaborar mais uma visão de mundo. É um projeto que nasce da compreensão real das contradições do processo histórico e tem, em si, a ideia de transformação do mundo. É totalmente absurdo aos olhos de Marx (e deveria ser aos nossos olhos também!) marxistas acadêmicos, universitários, críticos, críticos, críticos. Não tem sentido, não tem realidade, não tem verdade em um marxismo apenas crítico. Marx fazia crítica como compreensão das veias do processo histórico e político concreto para articular com uma alternativa. O marxismo tem articulado, em sua visão, a proposta de transformação do mundo. Ele perde a sua essência ao se transformar em um exercício acadêmico, crítico, especializado, desvinculado da prática política. Marx só é o monstro que foi e continua sendo porque ele bebia nas fontes concretas do processo histórico e da sua própria prática política.

Leia mais...

>> Emir Sader já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

•    Movimentos sociais devem estabelecer alianças com o governo. Entrevista publicada na revista IHU On-Line número 266, de 28-07-2008;
•    A renúncia de Fidel Castro e as implicações para a América Latina. Entrevista publicada no sítio do IHU em 20-02-2008.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição