Edição 381 | 21 Novembro 2011

O capitalismo confrontado com outras formas possíveis de vida

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Graziela Wolfart | Tradução de Benno Dischinger

Anselm Jappe faz um retorno a Karl Marx, confrontando os Grundrisse e O Capital. E afirma: “o capitalismo absolutamente não corresponde a uma ‘natureza humana’ e constitui, antes, uma violenta ruptura com as formas de sociabilidade que têm reinado por muitíssimo tempo no mundo inteiro”

“A visão marxiana do capitalismo como formação histórica que se instaura somente após uma longa história precedente (...) nos permite efetivamente captar a singularidade do capitalismo. Esse é bem outra coisa do que ‘natural’ e não é o resultado final de um desenvolvimento histórico que tendesse a isso desde sempre como à sua realização perfeita. É nesse sentido que se pode falar do capitalismo como ‘parêntese na história da humanidade’. Não, por certo, como um incidente passageiro após o qual se poderia retomar um decurso substancialmente benévolo da história”. Quem faz esta reflexão é o filósofo e ensaísta alemão Anselm Jappe, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Em sua visão, “Marx demonstrou que mesmo as categorias mais basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor e a mercadoria, são categorias históricas, e não eternas. Assim como vieram ao mundo, podem também ser superadas um dia. Mas se isso vai acontecer, como e o que as substituirá, é outra questão”. E conclui: “a contribuição que podem dar os Grundrisse para compreender o mundo de hoje é a mesma de toda a crítica da economia política de Marx: ir a fundo na compreensão das convulsões atuais e ver que as injustiças sociais, as distribuições desiguais dos recursos, os desastres financeiros, as catástrofes ecológicas e a anomia social são elas próprias a expressão de uma crise mais vasta e profunda, a expressão de uma sociedade na qual a atividade social não é regulada conscientemente, mas depende das mediações fetichistas e autonomizadas do valor e das mercadorias, do dinheiro e do trabalho”.

Anselm Jappe realizou seus estudos na Itália e na França. Além de inúmeros artigos já publicados na revista alemã Krisis, é autor de Guy Debord (Petrópolis: Vozes, 1999) e As aventuras da mercadoria (Lisboa: Antígona, 2006). Leciona na Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália). Após a cisão interna do Grupo Krisis, posicionou-se ao lado dos autores que fundaram a revista Exit!, cujos principais integrantes são Robert Kurz, Roswtiha Scholz e Claus Peter Ortlieb. Participa do Grupo Crítica Radical e da revista “EXIT – Crítica do Capitalismo para o Século XXI – com Marx para além de Marx”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir da leitura dos Grundrisse, quais são os elementos fundamentais que Marx usa para sua crítica à economia política?

Anselm Jappe – Marx escreveu os Grundrisse em 1857-1858, em poucos meses, em meio a uma crise econômica que ele acreditava ser a crise definitiva do capitalismo. Foram necessários depois outros dez anos e muitos estudos suplementares para desenvolver O Capital. Segundo certa ortodoxia marxista, para a qual O Capital constitui o ponto de chegada de toda a reflexão de Marx, os Grundrisse não são senão um esboço, um trabalho preparativo e imperfeito, motivo pelo qual foram publicados somente em 1939, em Moscou. A partir de 1968, os Grundrisse foram traduzidos ao inglês, francês, italiano e espanhol e, no âmbito da “nova esquerda”, afirmava-se depois que talvez esse manuscrito contivesse uma versão superior da crítica da economia política, porque menos “cientificista”, “economicista” e “dogmática”.
Na verdade, nenhum dos dois pontos de vista se justifica. No que se refere à crítica marxista da economia política, muitas de suas categorias fundamentais começam somente a articular-se durante a elaboração dos Grundrisse e não encontram uma formulação definitiva antes da segunda redação d’O Capital, em 1873: sobretudo a teoria do valor e do dinheiro. A dupla natureza do trabalho - abstrata e concreta – mal e mal começa a aparecer nos Grundrisse. Ali Marx ainda não distingue claramente entre valor e valor de troca, nem sequer, sempre de modo rigoroso, ente valor e preço. Tudo isso tem sido indagado com extrema nitidez por Roman Rosdolsky  em seu Gênese e estrutura do capital de Marx (Rio de Janeiro: Contraponto, 2001), publicado em 1967 e cuja tradução curiosamente saiu no Brasil dez anos antes dos próprios Grundrisse. Além disso, falta nos Grundrisse o conceito de fetichismo da mercadoria. É, portanto, errado opor (como o faz, por exemplo, Karl Korsch ) um jovem Marx revolucionário a um velho Marx d’O Capital, que se teria limitado a observar com distância científica um processo determinístico. Na verdade, a natureza destrutiva do trabalho abstrato e da sociedade baseada sobre o mesmo é descrita de modo pleno principalmente no primeiro capítulo do Capital – e uma crítica verdadeiramente radical deve começar daqui.

IHU On-Line – O que está nos Grundrisse, mas que não entrou em O Capital?

Anselm Jappe – Os Grundrisse contêm alguns desenvolvimentos extremamente interessantes que faltam quase de todo n’O Capital. Há algum tempo se discute bastante sobre o assim chamado “Fragmento sobre as máquinas”, contido nos Grundrisse, onde Marx prevê que um dia a produção altamente “tecnologizada” não será mais mensurável em termos de valor, isto é, de tempo de trabalho despendido. Mas pode-se interpretar essa passagem de modos muito diversos: para os pós-operaristas , ele anuncia a generalização do general intellect, de uma intelectualidade difusa como força produtiva que fará sumir as relações de produção capitalista e emergir uma nova classe produtiva. Para a “crítica do valor ”, pelo contrário, trata-se de um ulterior elemento da crise do capitalismo que atingiu os seus limites internos por causa das tecnologias que diminuem a produção de valor, o qual só é criado pelo trabalho vivo.

IHU On-Line – Como eram os sistemas anteriores ao capitalismo?

Anselm Jappe – Esta é outra particularidade dos Grundrisse: a maior atenção que Marx concede aí às “formas de produção que precedem as capitalistas”, como se chama um dos seus capítulos mais famosos (e mais elaborados), com frequência publicado à parte. Marx analisa aí as comunidades antigas (antes das Gemeinschaft, “comunidades”), e ele utiliza a palavra Gemeinwesen, literalmente a “essência-comum” da terra e dos outros recursos, bem como a evolução gradual dessas sociedades em direção à propriedade privada individual durante a Antiguidade. Esta análise é importante, porque n’O Capital Marx fala quase exclusivamente da instauração do capitalismo a partir do século XVI, e não de quanto o precedeu. Marx, sem idealizar essas comunidades e sem falar em geral de “comunismo originário”, põe, todavia, em relevo que durante uma grande parte da história da humanidade a produção e reprodução da vida se desenvolveram sem se basear sobre o valor e sobre a mercadoria, sem trabalho abstrato e sem dinheiro que se valoriza comprando força-trabalho. Nessas sociedades, a sociabilidade – o elo social – residia na produção e não era algo que se lhe acrescentava post festum, como acontece na sociedade da mercadoria, onde o produto se desdobra em produto útil e em portador de valor, o qual se torna a única mediação entre os produtores, de outra forma isolados. Os indivíduos pertenciam organicamente à sua comunidade e não eram produtores através da troca dos seus produtos. Marx considera, por outro lado, o abandono de tais formas de comunidade como uma etapa historicamente necessária em direção ao desenvolvimento de uma individualidade mais rica.

IHU On-Line – Em outra entrevista que nos concedeu, o senhor afirmou que “o capitalismo é um parêntese na história da humanidade”. Em que sentido a obra de Marx, especialmente os Grundrisse, contribui para esse pensamento?

Anselm Jappe – Talvez sejamos hoje mais céticos no que se refere a esta presumida “missão civilizadora do capital”. Mas, a visão marxiana do capitalismo como formação histórica que se instaura somente após uma longa história precedente, a qual se baseava sobre princípios completamente diversos – visão que, como já foi dito, é mais nítida nos Grundrisse do que n’O Capital –, nos permite efetivamente captar a singularidade do capitalismo. Esse é bem outra coisa do que “natural” e não é o resultado final de um desenvolvimento histórico que tendesse a isso desde sempre como à sua realização perfeita – este tem sido o ponto de vista do Iluminismo quando fazia a apologia do capitalismo. É nesse sentido que se pode falar do capitalismo como “parêntese na história da humanidade”. Não, por certo, como um incidente passageiro após o qual se poderia retomar um decurso substancialmente benévolo da história. É bem possível que após esse “parêntese” restem somente ruínas. Mas o capitalismo absolutamente não corresponde a uma “natureza humana” e constitui, antes, uma violenta ruptura com as formas de sociabilidade que têm reinado por muitíssimo tempo no mundo inteiro. Além disso, a visão que Marx tem das sociedades pré-capitalistas parece até mesmo bastante negativa. Ele as associa em geral à guerra e à competição em torno dos recursos. Esse pensamento deve ser integrado com a constatação de Marcel Mauss , segundo o qual a “cadeia do dom” constitui uma “rocha eterna” da sociabilidade humana. Em todo o caso, Marx demonstrou que mesmo as categorias mais basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor e a mercadoria, são categorias históricas, e não eternas. Assim como vieram ao mundo, podem também ser superadas um dia. Mas se isso vai acontecer, como e o que as substituirá, é outra questão.

O conceito de comunidade

Em geral, o conceito de comunidade desempenha um papel maior nos Grundrisse do que n’O Capital, também como termo de comparação para captar a atomização social que comporta o capitalismo.

“Das Geld ist damit unmittelbar zugleich das reale Gemeinwesen, insofern es die allgemeine Substanz des Bestehens für alle ist und zugleich das gemenschaftliche Produkt aller. Im Geld ist aber, wie wier gesehen haben, das Gemeinwesen zugleich blosse Abstraktion, blose äusserliche, Zufällige Sache für den einzelnen” (p 152)

ou

“in der bürgerlichen Gesellschaft steht der Arbeiter z. B. Rein objektlos, subjektiv dar: aber die Sache, die ihm gegenübersteht, ist das wahre Gemeinwesen nun geworden, das er zu verspeisen sucht und von dem er verspeist wird” (p. 404).

 [Trad.: “Dessa forma, o dinheiro é ao mesmo tempo imediatamente o real ser comum, enquanto ele é para todos a substância universal da subsistência e simultaneamente o produto comunitário de todos. Porém no dinheiro, como vimos, o ser comum é ao mesmo tempo mera abstração, coisa simplesmente externa, casual para o indivíduo” (p.152)

ou

“na sociedade burguesa o trabalhador se encontra, p.ex., sem objeto, subjetivamente: mas a coisa, que está diante dele, se tornou agora o verdadeiro ser comum¸ que ele procura consumir e pelo qual ele é consumido” (p. 404)].

Aqui, como em outras passagens, o dinheiro aparece como forma falsa e alienada da comunidade humana, do Gemeinwesen – que ele remete ao Gattungswesen, ao “ser genérico” dos escritos jovens de Marx, demonstrando assim a posição intermediária dos Grundrisse entre obras jovens (“filosóficas” e antropológicas) e tardias (de crítica da economia política) de Marx. Mais do que n’O Capital, o capitalismo é aqui denunciado na base de um confronto com possíveis outras formas de vida. Nas sociedades antigas, diz Marx, a riqueza não era jamais um fim em si mesmo, mas servia para criar bons cidadãos. Característica do capitalismo é, ao invés, a tendência ao crescimento infinito – e nos Grundrisse, Marx a deduz do próprio conceito de valor, de sua estrutura de base: “Als quantitativ bestimmte Summe, beschränkte Summe, ist es auch nur beschränkter Repräsentant des allgemeinen Reichtums [...] Als Reichtum festgehalten, als allgemeine Form des Reichtums, als Wert, der als Wert gilt, ist es also der beständige Trieb, über seine quantitative Schranke fortzugehen: endloser Prozess” (p. 196)

[Trad.: “Como soma quantitativamente determinada, soma delimitada, ele também é somente um limitado representante da riqueza global [...] Considerado como riqueza, como forma comum da riqueza, como valor que vale como valor, ele também é o impulso constante de ultrapassar seu limite quantitativo: processo interminável” (p. 196)].

IHU On-Line – Em que medida a dialética de Hegel influenciou para que Marx mudasse o texto dos Grundrisse e chegasse à obra O Capital?

Anselm Jappe – Os Grundrisse estão repletos de intuições fulgurantes, com frequência expressas numa linguagem ao mesmo tempo poética e filosófica que deriva da retomada de conceitos hegelianos. Após as críticas que o jovem Marx dirige a Hegel por ter dado uma descrição invertida do mundo, acusando-o de partir do abstrato em vez de iniciar do concreto, Marx retoma nos Grundrisse muitos conceitos hegelianos, mas dessa vez antes como descrição fiel de um mundo realmente invertido, no qual o abstrato realmente domina o concreto. Marx deduz aqui as características do capitalismo – o trabalho, o capitalista – do conceito de capital (um exemplo: “Die Tendenz, den Weltmarkt zu schaffen, ist unmittelbar im Begriff des Kapitalis gegeben” [Trad: A tendência de criar o mercado mundial está contida imediatamente no conceito do capital] (p. 321): um procedimento que podia desconcertar os marxistas tradicionais por seu aparente “idealismo”, mas que também pode ser lido como uma descrição do caráter “realmente metafísico” do capitalismo, onde o trabalho concreto serve somente para exprimir o trabalho abstrato e cuja forma basilar é a mercadoria, que Marx chama “sensível-suprassensível”. Finalmente, a insistência de Marx nas formas comunitárias das sociedades pré-capitalistas e no fato de que o mercado capitalista constitui um desenvolvimento tardio é importante também para seu desmentido daquilo que se chama, hoje, “individualismo metodológico” nas ciências sociais. Enquanto a economia política de Smith  e de Ricardo  já partia das ações dos atores individuais que se encontram no mercado, Marx parte resolutamente do seguinte princípio: “Die Gesellschaft besteht nicht aus Individuen, sondern drückt die Summe der Beziehungen, Verhältnisse aus, worin diese Individuen zueiander stehen” [Trad: “A sociedade não consiste de indivíduos, porém expressa a soma das relações, nas quais esses indivíduos se defrontam reciprocamente”] (p. 189). Isso também significa que não é a vontade subjetiva dos capitalistas que cria o capitalismo, mas é a ação anônima do valor: “Der Wert tritt als Subjekt auf” [“O valor aparece como sujeito”] (p. 231). É importante sublinhá-lo porque no primeiro capítulo d’O Capital, Marx introduz somente algumas poucas mercadorias que se trocam e deduz as relações mais complexas desta “célula germinal”. Semelhante procedimento, devido a motivos de exposição, poderia induzir ao erro de pensar que Marx põe igualmente na base de suas análises os comportamentos de atores individuais e isolados; os Grundrisse demonstram, se houver necessidade disso, que não é assim. O marxismo universitário fez, pelo contrário, muitas concessões em nome da “cientificidade” ao individualismo metodológico, sobretudo ao marginalismo na economia.

IHU On-Line – Qual a principal contribuição dos Grundrisse e da obra de Marx, como um todo, para entendermos nosso tempo, principalmente o mundo do trabalho?

Anselm Jappe – A contribuição que podem dar os Grundrisse para compreender o mundo de hoje é a mesma de toda a crítica da economia política de Marx: ir a fundo na compreensão das convulsões atuais e ver que as injustiças sociais, as distribuições desiguais dos recursos, os desastres financeiros, as catástrofes ecológicas e a anomia social são elas próprias a expressão de uma crise mais vasta e profunda, a expressão de uma sociedade na qual a atividade social não é regulada conscientemente, mas depende das mediações fetichistas e autonomizadas do valor e das mercadorias, do dinheiro e do trabalho. E nos Grundrisse se alude, mais do que nas outras grandes obras marxianas, ao fato de que não se sairá do capitalismo sem recriar alguma forma de “comunidade”. E é sempre nos Grundrisse que Marx anuncia claramente (no final da terceira parte) que o capitalismo está condenado a desmoronar precisamente por causa do desenvolvimento das forças produtivas que o põe em movimento. Sua “profecia” levou muito tempo para se realizar – mas talvez estejamos assistindo atualmente a esta passagem histórica.

Leia mais...

>> Anselm Jappe já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

•    “O capitalismo é um parêntese na história da humanidade”. Entrevista publicada na IHU On-Line número 310, de 05-10-2009.

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