Edição 381 | 21 Novembro 2011

A subordinação ao trabalho e ao capital

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Graziela Wolfart

Os Grundrisse, do ponto de vista didático, são a primeira tentativa de Marx de sistematizar a sua crítica da economia política, defende Mario Duayer

Mario Duayer é um dos tradutores e supervisor da tradução dos Grundrisse encabeçada pela Boitempo Editorial neste ano. Ele concedeu a entrevista que se segue por telefone para a IHU On-Line, analisando tais textos de Marx e refletindo sobre sua contribuição para o cenário contemporâneo. Para ele, “a atualidade da obra de Marx se dá justamente por ser uma crítica ontológica. Nesse nosso mundo – na moderna sociedade capitalista –, que não tem futuro, que aboliu o tempo e o espaço, mas que experimenta crises tremendas, os Grundrisse nos permitem pensar no nosso tempo e no nosso futuro, em como podemos desmontar essa sociedade que emerge na história espontaneamente, que produzimos e reproduzimos permanentemente em nossas práticas cotidianas e que, aparentemente, de modo algum pode nos satisfazer, seja do ponto de vista das nossas relações humanas, seja das nossas relações com a natureza”. Em sua opinião, “a obra de Marx, na verdade, representa um momento privilegiado da autorreflexão da humanidade sobre suas circunstâncias, sobre sua história”.

Mario Duayer tem doutorado pela University of Manchester (UK). Professor titular aposentado da Universidade Federal Fluminense, atualmente é professor visitante do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Crítica da Economia Política, atuando principalmente nos seguintes temas: ontologia, Marx, teoria social crítica, filosofia da ciência, metodologia da análise econômica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Do ponto de vista mais didático, o senhor pode explicar brevemente o que são os Grundrisse? De que tratam esses textos?

Mario Duayer – Como indiquei na apresentação do livro, os Grundrisse são uma espécie de obra intermediária, dos primeiros escritos de Marx, na juventude, para a sua obra madura, notadamente, O Capital. Os Grundrisse, do ponto de vista didático, são a primeira tentativa de Marx de sistematizar a sua crítica da economia política. É o primeiro esforço dele depois de estudar economia e de fazer uma crítica da economia política que é, na verdade, uma crítica das relações capitalistas. Nesse sentido, eles são o primeiro rascunho da crítica que posteriormente aparece, consolidada em O Capital. São a primeira tentativa de construir uma figuração da sociedade capitalista, distinta figuração corrente, gerada e requerida pelas relações capitalistas. Nesse sentido, pode-se afirmar que Marx elabora o que se pode denominar de crítica negativa – especificamente, crítica da economia política. Ele não toma os economistas políticos como interlocutores com o propósito de criar uma teoria econômica alternativa, supostamente melhor e, por isso, mais adequada para gerenciar essa sociedade. Ao contrário desse tipo de crítica, própria da ciência econômica, que toma a realidade tal como ela se apresenta e se atribui o papel de administrá-la, a crítica de Marx procura mostrar que a estrutura e a dinâmica da economia regida pelo capital escravizam crescentemente os sujeitos à lógica do seu produto, a saber, produção de valor e, portanto, sempre produção de mais valor, processo infinito de acumulação de capital. Produção crescente e crescentemente estranhada dos sujeitos.

Por se tratar de uma crítica ontológica – e crítica efetiva tem de ser crítica ontológica –, a teoria social de Marx consiste em outra figuração da realidade, oferece outra ontologia, representa uma crítica ontológica às nossas ideias correntes, conformes às relações sociais burguesas, sejam elas do cotidiano ou da ciência.

IHU On-Line – Qual a atualidade dessa intuição de Marx? Em que sentido esses textos ajudam a entender o nosso tempo e em que medida podem ajudar a vislumbrar uma alternativa ao capitalismo nos dias hoje?

Mario Duayer – A atualidade da teoria marxiana resulta justamente de seu caráter ontológicoa. Nesse nosso mundo – a vida social sob o capital – que não tem futuro, que aboliu o tempo e o espaço, mas que tem crises tremendas, abole essa abolição e nos permite pensar no nosso tempo e no nosso futuro, em como podemos desmontar essa sociedade que construímos espontaneamente, sem nenhum tipo de plano ou deliberação, que emergiue na história, que reproduzimos permanentemente com nossas práticas e que parece se mover diretamente para a tragédia que sua dinâmica anuncia, seja do ponto de vista das nossas relações humanas, sejas das nossas relações com a natureza. Diria, portanto, que aí reside a atualidade do pensamento de Marx. Derrida , que, como se sabe, não era um filósofo marxista, sustentou que “não há futuro sem Marx”. Ainda que concordando com Ahmad, para quem o Marx evocado por Derrida é um Marx muito particular, talvez se possa dizer que a afirmação categórica de Derrida subentenda que a humanidade não tem futuro sem a autoreflexão sobre suas circunstâncias, sobre sua história, representada pela obra marxiana.

IHU On-Line – Onde se localiza os Grundrisse no contexto da obra de Marx? Qual a importância do estudo dos Grundrisse para se entender O capital?

Mario Duayer – Já se disse que Marx só tem obras incompletas e que talvez sua única obra completa sejam os Grundrisse, precisamente no sentido de que ali Marx oferece os elementos e as categorias básicas para que se possa entender, em sua totalidade, as relações sociais presididas pelo capital, sua dinâmica e as possibilidades que abre para um futuro possível. A desvantagem dos Grundrisse é que não são estruturados como O Capital. Do ponto de vista metodológico, em O Capital a descrição e a exposição do objeto vão sendo feitas sem nenhum pressuposto, a não ser a circulação de mercadoria generalizada, ponto de partida da análise, e daí Marx vai expondo e reconstruindo o objeto em toda a sua complexidade. Os Grundrisse não possuem essa estrutura já acabada. Por outro lado, e por isso mesmo, apresentam riquíssimas digressões que não estão presentes em O Capital.

IHU On-Line – O que está nos Grundrisse, mas que não entrou em O Capital?

Mario Duayer – Por exemplo, as formações econômicas pré-capitalistas não aparecem em O Capital, ainda que possam ser insinuadas em algumas partes.

IHU On-Line – Quais são os principais elementos da crítica de Marx à economia política presentes nos Grundrisse?

Mario Duayer – O principal elemento da crítica é a descrição do objeto em sua estrutura e dinâmica. É mostrar que o mundo que nós construímos, na verdade, nos subordina. Nós estamos sempre sujeitos à dinâmica do nosso produto; é o que Marx denomina de estranhamento. Em grande parte das interpretações marxistas costuma-se destacar quase exclusivamente o papel fundamental da exploração dos trabalhadores na teoria marxiana. É claro que não se pode negar a exploração, mas, do meu ponto de vista, o elemento fundamental na crítica da economia política de Marx é o caráter estranhado do nosso produto, do resultado da nossa prática: uma sociedade que funciona fora de nós, estranha, e que nos subordina com sua dinâmica enlouquecida, sempre para cima, mais, mais e mais, e o sentido do “mais” está perdido para nós. Nós nos organizamos nessa sociedade trocando coisas, vendendo e comprando. A nossa sociabilidade se arma reduzindo-nos meramente a trabalhadores, sujeitos cuja relação social consiste em trocar o produto de seus trabalhos.  Vivemos para trabalhar e só podemos viver se trabalhamos, mas o sentido do nosso trabalho está perdido para nós, pois o sentido é o sentido do capital, de nosso trabalho passado estranhado de nós. O produto de nosso trabalho passado como capital implica uma produção sempre crescente, de um sentido cada vez mais questionável e duvidoso, seja do ponto de vista humano ou ecológico.

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