Edição 378 | 31 Outubro 2011

A trilogia “Homo Sacer”, de Agamben

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Selvino Assmann

Encerrou-se, no dia 24 de outubro, o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”. Ministrado pelo professor Castor Bartolomé Ruiz, do PPG em Filosofia da Unisinos, o curso teve como objetivo estudar o pensamento de Giorgio Agamben na sua trilogia Homo Sacer. A revista IHU On-Line publicou uma série especial com artigos inéditos do professor Castor sobre os temas trabalhados nos oito encontros (acompanhe nos links ao final deste artigo). Para encerrar o curso, publicamos nesta edição a tradução da apresentação do novo livro de Giorgio Agamben, publicado na Itália em setembro de 2011: AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita. Homo sacer IV, 1. [Altíssima pobreza. Regras monásticas e forma de vida]. Vicenza, Neri Pozza, 2011 , realizada pelo professor Selvino Assmann, do Departamento de Filosofia da UFSC. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Imaculada Conceição, de Viamão, e em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Selvino Assmann é mestre em Teologia por essa mesma instituição. É mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense com a tese A Filosofia da História de Leopoldo Zea - A América Latina e a História. Um de seus livros é Filosofia e ética (Florianópolis-Brasília: UFSC/CAPES-UAB, 2009). Eis o texto, apontado como subsídio de estudo.

Orelha do livro
O que é uma regra, se ela parece confundir-se sem resíduos com a vida? E o que é uma vida humana, se em cada gesto seu, em cada palavra sua, em cada silêncio seu, já não consegue ser distinta da regra?
É a estas perguntas que o novo livro de Agamben procura dar uma resposta, através de uma apaixonada releitura do fenômeno fascinante e interminável que é o monasticismo ocidental, desde Pacômio  até S. Francisco . Se o livro reconstrói nos seus detalhes a vida dos monges na sua obsessiva atenção à escansão temporal e à regra, às técnicas ascéticas e à liturgia, a tese de Agamben consiste, porém, em que a verdadeira novidade do monasticismo não reside na confusão entre a vida e a norma, mas sim na descoberta de uma nova dimensão, na qual, talvez pela primeira vez, a “vida” como tal se afirma na sua autonomia e a reivindicação da “altíssima pobreza” e do “uso” lança para o direito um desafio com que o nosso tempo ainda deve fazer as contas.
Como pensar uma forma de vida, ou seja, uma vida humana totalmente subtraída à tomada pelo direito e um uso dos corpos e do mundo que não se substancie jamais numa apropriação? Como pensar a vida como aquilo de que nunca se dá propriedade, mas apenas um uso comum.

Prefácio
O objeto desta investigação é a tentativa – feita no caso exemplar do monasticismo – de construir uma forma de vida, ou seja, uma vida que se vincule tão estreitamente à sua forma a ponto de resultar inseparável dela. É nessa perspectiva que a investigação se confronta, sobretudo, com o problema da relação entre regra e vida, que define o dispositivo através do qual os monges tentaram realizar o seu ideal de uma forma de vida comum. Tratava-se não tanto – e não só – de investigar o complicado acúmulo de minuciosos preceitos e de técnicas ascéticas, de claustros e horologia, de tentações solitárias e de liturgias corais, de exortações fraternas e de punições ferozes mediante os quais o cenóbio se constitui, tendo em vista a salvação em relação ao pecado e ao mundo, como uma “vida regular”, quanto de compreender, antes de tudo, a dialética que dessa maneira se instaura entre os dois termos “regra” e “vida”. Tal dialética é tão densa e complexa que, aos olhos dos estudiosos modernos, às vezes parece resultar numa perfeita identidade: vita vel regula [vida ou regra], segundo a introdução à Regra dos Padres, ou, nas palavras da Regula non bullata [Regra não ornada com bula] de Francisco: haec est regula fratrum minorum [esta é a regra dos frades menores]... Aqui, no entanto, preferiu-se ao vel e ao et toda a sua ambiguidade semântica, a fim de olhar para o cenóbio muito mais como a um campo de forças percorrido por duas intensidades contrapostas e, ao mesmo tempo, entrelaçadas, em cuja recíproca tensão algo de inaudito e de novo, ou seja, uma forma de vida, obstinadamente se aproximou da sua própria realização e, com idêntica obstinação, veio a falhar. A grande novidade do monasticismo não é a confusão entre vida e norma, nem uma nova declinação da relação de fato e de direito, mas sim a identificação de um plano de existência, impensado e talvez ainda hoje impensável, que os sintagmas vita vel regula, regula et vita, forma vivendi, forma vitae buscam com esforço nomear, e nos quais tanto a “regra” quanto a “vida” perdem o seu significado familiar para apontar em direção a um terceiro, que se trata precisamente de trazer à luz.

Contudo, no decurso da investigação, aquilo que apareceu como obstáculo para a emergência e para a compreensão deste terceiro não foi tanto a insistência sobre dispositivos que podem parecer jurídicos para os modernos, como acontece com o voto e a profissão, quanto um fenômeno absolutamente central na história da Igreja e ao mesmo tempo opaco para os modernos, que é a liturgia. A grande tentação dos monges não foi aquela que a pintura dos século XV fixou nas figuras femininas seminuas e nos monstros informes que importunam Antônio no seu eremitério, mas a vontade de construírem a sua vida como uma liturgia integral e incessante. Por isso a investigação, que inicialmente se propunha definir, através da análise do monasticismo, a forma de vida, teve que haver-se com a tarefa, de forma alguma óbvia e, pelo menos aparentemente, desviante e estranha, de uma arqueologia do ofício (cujos resultados são publicados em volume separado sob o titulo Opus Dei. Archeologia dell’ufficio).
Só mesmo uma definição preliminar do paradigma ontológico e prático ao mesmo tempo, tecido conjuntamente de ser e de agir, de divino e de humano, que a Igreja nunca parou de modelar e articular no decurso de sua história, desde as primeiras e incertas prescrições das Constituições Apostólicas até a minuciosa arquitetura do Rationale divinorum officiorum  de Guilherme de Mende (séc. XIII) e à calculada sobriedade da encíclica Mediator Dei (1947), poderia de fato permitir que se compreendesse a experiência, ao mesmo tempo muito próxima e remota, que estava em questão na forma de vida.
Se a compreensão da forma de vida monástica podia ocorrer unicamente como persistente contraponto ao paradigma litúrgico, o experimento talvez crucial da investigação não poderia deixar de se situar na análise dos movimentos espirituais dos séculos XII e XIII, que culminaram no franciscanismo. Enquanto já não situam a sua experiência central no plano da doutrina e da lei, mas no da vida, os mesmos se apresentam, sob essa perspectiva, como o momento de toda forma decisivo na história do monasticismo, em que a sua força e a sua fraqueza, os seus sucessos e os seus fracassos alcançaram a sua tensão extrema.

O livro encerra-se, por isso, com uma interpretação da mensagem de Francisco e dos teóricos franciscanos sobre a pobreza e sobre o uso, que, por um lado, uma precoce lenda e uma interminável literatura hagiográfica recobriram com a máscara humana demais do pazzus [louco] e do giullare [menestrel] ou com aquela, não mais humana, de um novo Cristo, e, por outro, uma exegese atenta mais aos fatos do que às suas implicações teóricas fechadas nos confins disciplinares da história do direito e da Igreja. Em ambos os casos, o que continuava desconsiderado era o legado talvez mais precioso do franciscanismo, com o qual, sempre de novo, o Ocidente deverá voltar a medir-se como se fosse sua tarefa indeferível: como pensar uma forma de vida totalmente subtraída à prisão do direito e um uso dos corpos e do mundo que não acabe sempre numa apropriação? Ou seja, ainda pensar a vida como aquilo de que nunca se dá propriedade, mas apenas um uso comum.
Tal tarefa exigirá a elaboração de uma teoria do uso a respeito da qual faltam, na filosofia ocidental, os princípios mais elementares, e, a partir dela, uma crítica daquela ontologia operativa e governamental que, sob os disfarces mais diversos, continua determinando os destinos da espécie humana. Isso fica reservado ao último volume de Homo Sacer (p. 7-10).

Limiar
O que faltou à doutrina franciscana do uso é precisamente a tentativa de pensar o nexo com a ideia de forma de vida, que o texto de Olivi  parece implicitamente exigir. É como se a altíssima pobreza, que deveria definir, segundo o fundador, a forma de vida franciscana como vida perfeita (e que noutros textos, como no Sacrum commercium Sancti Francisci cum Domina Paupertate , tem de fato esta função), vinculando-se ao conceito de usus facti, perdesse sua centralidade e acabasse caracterizando-se apenas de forma negativa com relação ao direito. Certamente, graças à doutrina do uso, a vida franciscana pôde afirmar-se sem reservas como a existência que se situa fora do direito, ou seja, que, para ser, deve abdicar do direito – e este certamente é o legado que a modernidade se mostrou incapaz de enfrentar e que o nosso tempo nem sequer parece capaz de pensar. Mas o que é uma vida fora do direito, se ela se define como a forma de vida que faz uso das coisas sem nunca delas se apropriar? E o que é o uso, se cessamos de o definir apenas negativamente com respeito à propriedade?

É, pois, o problema do nexo essencial entre uso e forma de vida que nesta altura se torna inadiável. Como pode o uso – ou seja, uma relação com o mundo enquanto inapropriável – traduzir-se em um ethos e em uma forma de vida? Quais são a ontologia e a ética que corresponderão a uma vida que, no uso, se constitui como inseparável da sua forma? A tentativa de responder a estas perguntas exigirá necessariamente um confronto com o paradigma ontológico operativo em cuja moldura a liturgia, através de um processo secular, acabou por prender a ética e a política do Ocidente. Uso e forma de vida são os dois dispositivos através dos quais os franciscanos procuraram, de maneira certamente insuficiente, quebrar essa moldura e confrontar-se com aquele paradigma. Mas é certo que só a partir da retomada do confronto numa perspectiva nova que se poderá eventualmente decidir se e em que medida aquela que se apresenta em Olivi como a extrema forma de vida do Ocidente cristão ainda tem, para isso, um sentido, ou se, pelo contrário, o domínio planetário do paradigma da operatividade exige que se desloque o confronto decisivo para um outro terreno (p. 177-178).

Leia mais...
>> Confira os outros artigos de Castor Bartolomé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”
* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011, disponível em http://bit.ly/naBMm8.
* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011, disponível em http://bit.ly/nPTZz3;
* O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011, disponível em http://bit.ly/nsUUpX;
* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011, disponível em http://bit.ly/pDpE2N;
* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011, disponível em http://bit.ly/q84Ecj;
* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011, disponível em http://bit.ly/qQHeua.

Confira, também textos publicados nas Notícias do Dia sobre Giorgio Agamben
* Giorgio Agamben: Política da profanação versus religião do consumo. Notícias do Dia 19-10-2011, disponível em http://migre.me/61Mul
* Em que cremos? Redescubramos a ética. Entrevista com Giorgio Agamben. Notícias do Dia 02-05-2011, disponível em http://migre.me/61Mya
* Em ''O Reino e a Glória'', Agamben analisa liturgias do poder. Notícias do Dia 26-04-2011, disponível em http://migre.me/61MAC

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