Edição 378 | 31 Outubro 2011

Uma visão sintética do “estado da arte” da implementação do SUS

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Nelson Rodrigues dos Santos

Dando continuidade ao debate levantado na IHU On-Line número 376, de 17-10-2011, publicamos, nesta edição, o artigo que segue, enviado pelo professor Nelson Rodrigues dos Santos, da Unicamp. Ele escreveu este texto inspirado pelas perguntas enviadas pela redação da IHU On-Line. Com a finalidade de contribuir para a reflexão sobre a complexidade sociopolítico-econômica que envolve o desenvolvimento do SUS, e que usualmente são expostas à opinião pública sob ângulos parciais ou unilaterais, Nelson propõe cinco questões centrais, “polêmicas para os gestores e o controle social, e que são usualmente expostas à opinião pública sob ângulos unilaterais, o que limita e fragiliza o debate democrático e a mobilização da sociedade”.

Nelson Rodrigues dos Santos é professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas -Unicamp, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – Idisa e consultor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – Conasems.

Confira o artigo.

Todos sabemos que é responsabilidade constitucional do poder Executivo implementar o disposto na Constituição e na Lei e, para tanto, valer-se da prerrogativa de formular e realizar as estratégias necessárias. Sabemos também da grande conquista democrática das entidades e movimentos sociais na saúde, da criação, pela lei n. 8142/90, das Conferências e Conselhos de Saúde, esses tendo como primeira atribuição legal atuar na formulação de estratégias. Desde então, os colegiados de gestores e os conselhos de saúde formulam estratégias decisivas para o bom desenvolvimento do SUS, congruentes com os princípios e diretrizes constitucionais, como intensiva criação e funcionamento dos conselhos e conferências de saúde nos municípios e estados, a criação dos colegiados intergestores nacional e estaduais, a pactuação de normas básicas ordenadoras da descentralização, a surpreendente produtividade da gestão descentralizada que incluiu, em uma década, metade da população antes excluída, a efetivação da direção única em cada ente federado com extinção do Inamps, a criação dos fundos de saúde nos entes federados e o repasse fundo a fundo, a contínua e acentuada elevação da parcela municipal no financiamento do SUS, revelando que somente os municípios rompem com a cultura de adotar o “mínimo” como “teto”, a assunção da Atenção Básica como a grande estratégia para efetivação da universalidade, integralidade e equidade com qualidade em todo o sistema, e mais recentemente, a criação dos colegiados regionais, hoje, as comissões intergestores regionais.

Torna-se inabdicável o reconhecimento de que nesses mais de 20 anos foram formuladas e vêm sendo realizadas outras estratégias, incongruentes com os princípios e diretrizes constitucionais, como a contínua e pronunciada retração da parcela federal no financiamento do SUS, os fortes e contínuos subsídios federais aos planos e seguros privados de saúde, hoje equivalentes a mais de 40% do orçamento do Ministério da Saúde e 25% do faturamento das respectivas operadoras privadas, a resistência pétrea à reforma democrática da estrutura administrativa do Estado, adequando-o ao atendimento eficiente, qualitativo e eficaz das demandas sociais na saúde, e a imutabilidade na relação público/privado antirrepublicana, promíscua e antissocial vigente.

Por fim, não há como não reconhecer que o imbricamento das estratégias congruentes e incongruentes com os princípios e diretrizes do SUS, além da grande tensão e angústia dos gestores e conselhos de saúde, vão deixando um saldo amargo: toda a classe média e todos os trabalhadores privados e públicos da economia formal afiliam-se aos planos privados e usam complementarmente o SUS; a Atenção Básica não consegue apontar rumo à universalidade, à alta resolutividade, à porta de entrada preferencial e à estruturação/ordenação do conjunto do sistema; a inclusão social (inabdicável) processa-se sob a vigência e hegemonia do modelo “da oferta” e não das necessidades e direitos da população.

Com a finalidade de contribuir para a reflexão sobre a complexidade sociopolítico-econômica que envolve o desenvolvimento do SUS, e que usualmente são expostas à opinião pública sob ângulos parciais ou unilaterais, seguem-se cinco questões centrais, polêmicas para os gestores e o controle social, e que são usualmente expostas à opinião pública sob ângulos unilaterais, o que limita e fragiliza o debate democrático e a mobilização da sociedade. Após as cinco questões centrais, seguem-se seis recomendações de ação política pelo SUS, iniciando pelas relações dos conselhos de saúde com as entidades e movimentos da sociedade.

Cinco questões polêmicas e centrais para os gestores e o controle social no SUS

I. Ênfase nos valores - Na divulgação dos gastos públicos na saúde, chama atenção a ênfase dada aos valores numéricos – milhões e bilhões de reais que, apesar do impacto na opinião pública, pouco revelam e mobilizam sobre sua suficiência perante a capacidade arrecadatória do Estado e as necessidades da população. Novas ênfases e novas questões centrais devem estar nas divulgações e nos debates como:

I.1. Per capita anual dos recursos públicos com base na comparação internacional por meio do dólar padronizado pelo poder e compra (OMS) - O Brasil está em torno de 340 dólares públicos, enquanto a média dos países mais ricos e os europeus com os melhores sistemas públicos de saúde está em torno de 2 mil dólares públicos. Na América do Sul, temos a Argentina, Chile e Uruguai com per capita público para a saúde acima do nosso. A Argentina, 42% acima e Chile 27% acima.

I.2. Crescimento da capacidade de arrecadação - Nossa capacidade arrecadatária vem crescendo acentuadamente: em pesquisa de 1995 a 2004, a Receita Corrente da União cresceu de 19,7% para 26,7% do PIB, mantendo a curva de crescimento até o momento, apesar da extinção da CPMF no final de 2007. No mesmo período da pesquisa (1995 a 2004), os gastos do Ministério da Saúde caíram de 9,6% para 7,5% da mesma Receita Corrente da União, tendência que também continua.

I.3. Porcentagem do PIB com gastos em saúde - os gastos totais (públicos e privados) oscilam entre 9 e 10% nos países mais desenvolvidos, incluindo os que apresentam os melhores sistemas públicos de saúde, e esta porcentagem vem refletindo o limite de sustentabilidade pelas respectivas sociedades. No Brasil estamos com 8,4% próximo a esse limite, mas o centro da questão está nos gastos públicos que compõem estas porcentagens: nos referidos países estão entre 6 e 8% do PIB, enquanto o Brasil está com 3,5%, abaixo da Argentina, Chile, Uruguai e Costa Rica. Para nos equipararmos à Argentina e Chile, precisaríamos um acréscimo de 45 bilhões de reais no orçamento do Ministério da Saúde, bem acima dos 32,5 bilhões estimados pelos 10% da Receita Corrente Bruta, um dos pleitos da regulamentação da EC-29.

II. Instalação de recursos novos - A ênfase dada para um salto na capacidade gestora e gerencial com base nas tecnalidades produtivistas de custo/efetividade, no âmbito do modelo de atenção hoje predominante, com porta de entrada preferencial nos serviços assistenciais de média densidade tecnológica -eletivos e de urgência - onde predomina o pagamento por produção em rede laboratorial e hospitalar privada complementar, implementa na prática outro sistema público anti-SUS. Mas o centro da questão do imprescindível e inadiável salto deve enfatizar a adequação e realização das referidas tecnalidades, com exclusividade à cobertura da Atenção Básica à Saúde, conferindo-lhe prerrogativas para o ordenamento das linhas de cuidado integral e na construção da regionalização. Valiosíssimos projetos elaborados pelas comissões intergestores ao nível nacional, estadual e regional encontram-se em plena fase de pactuação, além do Pacto de Fev./2006, do Decreto 7508/2011 e da Lei N. 12.466/2011. Por isso, torna-se inequívoca a imperiosa a alocação de recursos novos, volumosos o necessário para impactar, por etapas e estratégias definidas junto aos conselhos de saúde, a retomada do rumo da universalidade, integralidade, equidade, incluindo gestão pública do pessoal de saúde com participação e adesão de todos os trabalhadores de saúde. Vale ressaltar que o acréscimo de 32,5 bilhões de reais correspondentes a 10% da RCB aos valores atuais colocará nosso país em patamar de quase 500 dólares públicos habitantes-ano e pouco mais de 4% do PIB para o setor público de saúde, ainda muito baixo, porém seguramente suficiente para a retomada do rumo constitucional do desenvolvimento do SUS aqui exposto.

III. Tamanho da carga tributária (porcentagem do volume da arrecadação no PIB) - encontra-se no Brasil, por volta de 35,5% e objeto de permanente crítica e pressão de setores empresariais e da elite social, e seus agentes na mídia, como excessiva e antissocial. Quais os destinos dos gastos públicos consequentes à arrecadação. Informação: pesquisa do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário em 2009 analisou o Canadá, Inglaterra, Espanha, Itália, França e Dinamarca em 2007, com cargas tributárias entre 33,3% e 48,9% dos seus PIBs, e que dispõem a toda a população, sistemas públicos de qualidade e gratuitos de saúde, educação e previdência, segurança pública e ausência de pedágio, e sem carga tributária na agenda dos pleitos da sociedade. No Brasil, por comparação, a população com renda mensal entre 3 e 10 mil reais, trabalhou em 2008, em média, 117 dias para poder adquirir no mercado aquela relação de serviços básicos, e reformar nosso sistema tributário, que recolhe 54% da renda familiar dos que recebem até dois salários mínimos mensais, e 29% dos que recebem acima de 30 salários-mínimos, além de penalizar a produção e folha em 25,3% e a renda e patrimônio em apenas 7,9%.

IV. Peso da “fatia” saúde no Orçamento Geral da União – OGU - é apresentado pelo atual “pensamento econômico” e seus agentes na mídia, como privilegiado por comprimir os orçamentos de outras áreas, como educação, assistência social, transporte, segurança pública, energia, saneamento, etc., estimulando, inclusive, disputas orçamentárias entre esses setores. As respectivas porcentagens podem criar essa falsa ideia quando avaliadas isoladamente. Em 2010, foram: 3,9%, 2,8%, 2,7%, 0,7%, 0,5%, 0,04% e 0,04%. Acima desses setores básicos, estão a Previdência com 22,12% e as transferências obrigatórias aos estados e municípios, também básicas. Porém, acima de todas, está a dívida pública com 44,93% (juros, amortizações, refinanciamento e outros serviços financeiros), totalizando em 2010, 635 bilhões, dos quais, por volta de 200 bilhões só de juros. A nova ênfase deve ser na democratização da informação e do debate sobre os critérios de por que e como os setores são básicos ou não, e quem comprime quem.

V. Regulamentação da EC-29 - além do grande avanço na definição do que são as ações e serviços de saúde a serem financiados pelo SUS, formulado pelo Conselho Nacional de Saúde e encampado e aprimorado no Congresso Nacional, o debate econômico encontra-se centrado na criação ou não de novo imposto ou contribuição social, quando deveria ser decorrência ou na sequência. A questão central está na inflexibilidade da política de Estado de não vincular porcentagem da arrecadação à saúde, demonstrada na rejeição dos 30% do OSS (1990), na retirada da contribuição previdenciária da base de cálculo para o SUS (1993), na imposição de caráter substitutivo à CPMF (1996), na “virada” de última hora das negociações de 10% de cada esfera pela EC-169, impondo 15% aos municípios, 12% aos estados e a VNP à União (2000), o que significou na prática, prosseguir retraindo a parcela federal, que caiu de 75% em 1980 para 44% em 2010, tendência que permanece. E, por final, o desafio da regulamentação desde 2003. Merece lembrar que esta mesma política de Estado é responsável também pelo crescimento ininterrupto, há mais de 20 anos, de várias formas de subsídios públicos às empresas operadoras de planos e seguros privados de saúde, e hospitais de grande porte por elas credenciados, estimados hoje em mais de 25% do faturamento anual do conjunto dessas empresas. Essa questão é a central e estruturante porque expõe um forte indicador de responsabilidade na política pública: qualquer que seja o tamanho da arrecadação, esse critério é definidor por si, o que é testado na prática pelos municípios, estados e Distrito Federal desde 2000.
O escalonamento anual da aplicação dos 10% da Receita Corrente Bruta e a introdução de medidas incrementadoras da arrecadação podem e devem ser negociadas e pactuadas, mas sem constituírem condições sine qua non para a regulamentação com os 10% da RCB, com pena da política pública constitucional continuar refém do equívoco estrutural de onde está a questão central.

Exemplos de medidas incrementadoras da arrecadação a serem negociadas e pactuadas em curto e médio prazos:

— Incremento da taxação sobre itens danosos à saúde ou que geram alto custo para o SUS.
— Redução efetiva e parcelada dos gastos tributários (renúncias fiscais) e demais formas de subsídio público ao mercado na saúde.
— Tributar os jatinhos, helicópteros, iates e lanchas de luxo, hoje isentos, sob o mesmo critério do IPVA para os carros.
— Redução da taxa de juros da dívida pública (cada 1% que cai corresponde a 10 bilhões de reais ganhos no OGU).
— Vinculação prospectiva de recursos como os do pré-sal.
— Obrigar em Lei que o valor declarado da terra para pagamento do ITR seja o valor assumido pela União nos processos de desapropriação.
— Tributar a remessa de lucros ao exterior, hoje isenta. Somente em agosto/2011, foram remetidos mais de 5 bilhões de reais.
— Tachação das grandes fortunas.
— E criação de uma contribuição social para o Sistema Público de Saúde.

Desafio

Vale lembrar que o projeto de n. 121/2007 do ex-senador Tião Viana, que contempla o critério dos 10% da RCB, com acréscimo de 32,5 bilhões de reais e implementação escalonada, iniciando com 16,9 bilhões no primeiro ano, representa a vitória do critério de cálculo e de nova responsabilidade da política pública de Estado, significando certamente uma postura “estadista” dos atuais poderes legislativo e executivo. Por outro lado, o projeto n. 306/2008, oriundo do projeto inicial n. 01/2003, dos ex-deputados Roberto Gouveia e Guilherme Menezes, mas revertido posteriormente para a continuidade do critério VNP, acrescentará somente 8,2 bilhões de reais, caso aprovada a CSS (sem o Fundeb e com a DRU), e perderá 7 bilhões (sem o Fundeb), sem aprovação da CSS. Diferentes alternativas poderão ser propostas e negociadas. Mas, para a sua avaliação e posicionamento, permanece o desafio de qual é a questão central.

Leia mais...

Confira outras edições da Revista IHU On-Line sobre o SUS:
* Sistema Único de Saúde. Uma conquista brasileira. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011;
* SUS: 20 anos de curas e batalhas. Revista IHU On-Line, edição 260, de 02-06-2008;
* Saúde Coletiva. Uma proposta integral e transdisciplinar de cuidado. Revista IHU On-Line, edição 233, de 27-08-2007. 

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