Edição 196 | 18 Setembro 2006

"Lula, uma oportunidade desperdiçada?"

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A macroeconomia neoliberal continua sugando o sangue do povo, enquanto, seletivamente, atende apenas as exigências de uma pequena porção da população. Assim os operadores da macroeconomia tranqüilizam sua má consciência e, ao mesmo tempo, Lula se mostra fiel a algumas raízes de sua biografia pessoal.


É difícil imaginar que, em seus 67 anos de idade e com toda uma exuberante história pessoal de reflexão e prática, faça concessões. Nem à situação política brasileira, nem à gestão de seu amigo Lula, nem às limitações próprias de um tíbio processo de reformas em marcha. Leonardo Boff, teólogo franciscano e militante social há décadas, tampouco restringe seu olhar às fronteiras do Brasil. Desde cada passo da construção cotidiana do movimento popular, até a denúncia de um sistema mundial hegemônico, que conduz irremediavelmente à autodestruição do planeta. E não duvida, inclusive, em lançar um grito de alarme: "Não terá, por acaso, chegado o momento de desaparecer e deixar a terra livre desse câncer que somos nós?"

Traduzimos e publicamos a entrevista com Leonardo Boff, publicada na página www.lahaine.org, 4-9-2006. A entrevista foi veiculada nas Notícias Diárias da página do IHU no dia 12-9-2006.

Já são quase quatro anos do governo Lula, com as próximas eleições presidenciais em vista...O que é deixado por esta experiência?

Fui um dos mais entusiastas, quando se deu a eleição de Lula. Escrevi mais de dez artigos sobre a revolução brasileira que seria inaugurada por ele. Foi uma ilusão e desilusão. Tive que confrontar-me com o "realismo" da política do possível, no quadro histórico em que se move a sociedade brasileira.

Nunca se deve esquecer que estamos sentados sobre o passado colonial, sobre o genocídio dos indígenas - eram seis milhões quando chegaram os portugueses, hoje são apenas oitocentos mil -, sobre o escravismo (doze milhões de negros foram violentamente arrancados da África e trazidos ao Brasil, e hoje são sessenta milhões de afro-descendentes); e sobre uma elite que tem, segundo dados do Banco Mundial, os mais altos níveis de acumulação do mundo. Ao lado de tudo isto, existe uma massa enorme de "empobrecidos", que somente a partir da metade do século passado conseguiu organizar-se em movimentos sociais e sindicatos livres, que foram acompanhados por setores importantes da Igreja Católica. Ela inventou e promoveu as comunidades de base e as pastorais sociais da terra, teto, saúde, educação, direitos dos pobres e outras iniciativas similares.

Mudar esta realidade histórica tão condicionante exigiria uma revolução. Lula, ao meu juízo, não tinha a consciência suficientemente clara de sua missão histórica. Sua preocupação inicial foi a de salvar o país de um desastre econômico iminente, em detrimento das grandes reformas estruturais que poderiam, estas sim, salvar a nação do desastre. Desperdiçou-se uma oportunidade. Ele pertence à parte mais esquerda do sistema imperante, porém não deixa de ser um elemento do sistema. Por isso, os grandes organismos econômicos mundiais e os principais Chefes de Estado estão tão felizes com ele. Se propôs a tão temida revolução a partir da periferia...

"Desvinculou-se dos Movimentos Sociais"

Esta reflexão implica um balanço mais negativo que positivo?

Apesar destes limites, Lula fez o que nenhum governo havia tentado anteriormente: dar muito mais ênfase aos temas sociais. Nesta esfera, de fato, o Governo foi inovador com a "Bolsa Família", "Luz para todos", o apoio à agricultura familiar e outros projetos sociais. Com estes planos se beneficiaram perto de onze milhões de famílias, o que equivale a uns quarenta milhões de pessoas.
Mas, é preciso ver este avanço no contexto da política global. Enquanto transfere dez bilhões de reais - um dólar equivale a 2,12 reais - aos projetos sociais, outorga cento e quarenta bilhões de reais ao sistema financeiro, que lhe empresta o dinheiro necessário para levar adiante sua política e lhe permite pagar as contas governamentais. Esta contradição é dolorosa e mostra como a macroeconomia neoliberal continua sugando o sangue do povo, enquanto, seletivamente, atende somente às exigências de uma pequena porção da população. Assim os operadores da macroeconomia tranqüilizam sua má consciência, e, ao mesmo tempo Lula se mostra fiel a algumas raízes de sua biografia pessoal.

Saindo do plano estritamente brasileiro e tendo em conta as enormes expectativas que o Governo do Partido dos Trabalhadores (PT) criou em amplos setores do continente: Em que medida uma experiência desta natureza fortalece ou debilita o movimento social em seu conjunto, em suas apostas estratégias de mudança?

Ao meu juízo, uma das limitações do Governo Lula foi desvincular-se dos movimentos sociais que eram sua base real de sustentação e apoio. Preferiu optar por uma base de apoio parlamentar, articulada com partidos que não tinham nada a ver com o ideário do PT. É preciso reconhecer que Lula não criminalizou os movimentos sociais, como se fazia sistematicamente antes, embora não lhes tenha dado a importância que lhes correspondia, por considerar que já estavam de seu lado.

Entre eles, havia muita decepção e mesmo raiva. Porém, têm inteligência política. Dizem: "Lula é nosso, vem do nosso lado, conhece nossas tribulações". Por mais erros que tenha cometido, não vamos entregá-lo à burguesia. Ao invés disso, vamos pressioná-lo para que se reconverta aos seus antigos sonhos e, como o filho pródigo do Evangelho, redescubra o caminho de retorno aos movimentos sociais. Estes votarão por Lula, porém com o propósito de cobrar-lhe as antigas promessas e, de algum modo, atenuar ou mudar a proposta macroeconômica do Governo.

"A Lula faltou valentia"

Um balanço tão mitigado da parte dos atores e movimentos sociais confronta-nos com a pergunta de fundo sobre a viabilidade de mudanças profundas na América Latina, marco de um sistema de democracia formal parlamentar...

Objetivamente, do que se necessita é de uma revolução. Porém sabemos que o tempo das revoluções clássicas passou. Quer dizer que a revolução possível, no quadro globalizado da política mundial sob o império norte-americano, implica colocar, lentamente, cunhas nas brechas do sistema. Isto o entendeu o presidente da Argentina, Nestor Kirchner. Não disse ao sistema financeiro mundial e a Bush: "não vou pagar a dívida". O que constituiria um atentado contra o sistema e sua lógica. Disse: "eu pago; porém, por cada dólar pagarei somente dez centavos". E tiveram que contentar-se com isto.
Lula tinha muito mais autoridade moral para fazer algo parecido e talvez, até, mais radical. Mas, faltou-lhe valentia, a capacidade de captar a potencialidade de uma situação e atuar correlatamente com determinação. Foi outra ocasião desperdiçada. Agora temos que contentar-nos com reformas que aliviam os problemas, perpetuando-os, sem mudar a estrutura de base, o que significaria uma revolução, ou o começo da mesma.

"João Paulo Ii decapitou Os Profetas"

Os teólogos progressistas, a Igreja progressista, têm nesta etapa uma palavra/reflexão profética, para relançar a esperança no Brasil? O que realmente seria preciso inventar nesta etapa para alentar a esperança?
A atuação conservadora do Papa João Paulo II decapitou os profetas. Para a política na América Latina, quer dizer, para a prática da Igreja na sociedade e seu enraizamento popular, esse papado foi um flagelo. Teria sido outra coisa, se o Papa houvesse tido uma iluminação espiritual mínima e uma sensibilidade pastoral para com a dolorosa paixão do povo latino-americano, cristão e explorado. Se tivesse apoiado as comunidades eclesiais de base - e a dimensão libertadora da fé, com sua reflexão chamada de teologia da libertação -, sustentando-as nas conferências nacionais de bispos, em vez de submetê-las a pesada vigilância, levando-as até, em alguns casos, a uma verdadeira desmoralização. Se tudo tivesse sido de outra maneira, diversa seria a situação política da América Latina. Sua cegueira anticomunista o impediu de ver o novo que nascia nesta parte do continente, que não tem nada a ver com o marxismo, porém sim, muito a ver com uma alternativa viável ao capitalismo selvagem imperante.

Portanto, outra ocasião desperdiçada. Vivemos, nos últimos vinte anos, perdas irreparáveis e um inverno espiritual implacável. Recém começamos a refazer-nos. Surgem alguns profetas e se reanimam as comunidades, não por contar com o apoio de Roma, e sim porque querem dar uma resposta apropriada, a partir do Evangelho, à miséria, a que estão submetidos tantos milhões de seres humanos.

A experiência brasileira atual nos indica um certo esgotamento das formas tradicionais de fazer política. Ou, da política como mecanismo "tradicional". A partir de onde seria preciso destravar e superar este freio?
É voz corrente que a forma de representação social mediante os partidos está absolutamente obsoleta. É enganadora e permite a reprodução das condições de desigualdade e de injustiça social. A convicção que cresce nos movimentos sociais como o dos "Sem Terra", que acompanho, é que este tipo de democracia é bom para manter a situação, porém inadequado para fazer as necessárias mudanças que respondam às demandas fundamentais do povo.

O que se está pensando, é dar um caráter político aos movimentos sociais que até agora tinham apenas um perfil social. Ou seja, transformar o poder social acumulado em um poder político acima dos partidos, ou atravessando os partidos, criando articulações com setores de partidos que se proponham mudanças substanciais na sociedade. Esta iniciativa está amadurecendo em vários movimentos sociais no Brasil e já se estão articulando neste sentido para, eventualmente, fazer sua aparição oficial ainda nestas eleições presidenciais do outubro. Eu não sei qual é o caminho. Porém estou convencido que o mesmo se faz caminhando.

Ou caminhamos, ou morremos como espécie

Ao mesmo tempo em que "se desperdiçam oportunidades", os grandes poderes econômicos não duvidam um segundo. As grandes empresas transnacionais avançam, massacrando espécies e biodiversidade. Não é quase dramática esta complementação entre gestão política decepcionante e destruição abusiva do planeta?

Este é um tema que tem me ocupado bastante nos últimos anos, escrevendo, falando, tentando influenciar politicamente setores do Governo Lula. Com exceção da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que pensa como nós, este discurso é considerado como discurso de loucos numa sociedade pretendidamente de bem pensantes. Todos falam de crescimento. Lula é quem mais fala. Todos os administradores do mundo, desde os Governos até as corporações mais simples, se propõem crescer mais e mais. Infeliz do país que não apresente porcentagens importantes de crescimento a cada ano.
Porém, este objetivo é suicida. A Terra não agüenta o tipo de produção e consumo que supõe e que propõe explorar sistematicamente todos os recursos disponíveis da natureza. China e Índia vão fundir a humanidade, porque são como uma esponja que chupa todos os recursos possíveis do planeta. E ambos têm uma classe média de trezentos milhões de pessoas - equivalente a toda a população da Europa - que quer consumir a classe média ocidental.

Esta lógica leva-nos ao abismo. Não sou eu quem o diz, senão os grandes nomes da ecologia ou da astrofísica, como o astrônomo inglês Martin Rees, em seu livro A hora final, ou o promotor da teoria Gaia, James Lovelock, em seu recente livro A vingança de Gaia. Eles nos anunciam cenários dramáticos para os próximos anos. Estou convencido da teoria que diz que o ser humano não aprende nada da história, porém aprende tudo do sofrimento. Isto é trágico, porém parece ser o caminho infalível da aprendizagem. Ou mudamos, ou morremos como espécie.

A terra em crise, ameaçada por um sistema. De onde virão as forças para poder estruturar uma proposta alternativa diferente, para frear essa tendência?

Penso que a crise é tão global que já não funcionam políticas convencionais, nem extraordinárias. Somente uma coalizão de forças, baseadas numa ética mínima fundamental, em outros valores que ponham a vida, a Terra, a humanidade e a natureza no centro. Esta coalizão poderá oferecer uma alternativa que nos possa salvar. A cada ano desaparecem, naturalmente, no processo da evolução, trezentas espécies de seres vivos. Com a agressão sistemática dos humanos, desaparecem cerca de três mil. Isto equivale a uma verdadeira devastação.

Pergunto: será que não chegou o momento de desaparecer e deixar a terra livre desse câncer que somos nós, permitindo que siga o processo da evolução com a aparição de outras formas de vida e com outro sentido de cooperação de todos com todos?

Já que o espírito e a consciência estão primeiro no cosmo e somente depois em nós, este desaparecimento da espécie humana não seria uma tragédia absoluta.
Dentro do processo da evolução, o princípio de inteligibilidade e amor reapareceriam em seres complexos e de uma ordem mais alta. Espero que com mais compaixão e ternura do que nossa espécie...

A vida da terra continua sendo um de teus temas principais de reflexão. Continua sentindo-se sobretudo teólogo, ou "simples enfermeiro" da Pachamama?

As religiões podem ter uma função pedagógica muito grande no processo de respeito, salvaguarda e veneração do que é criado. Todas elas dão centralidade à vida. Mais que falar de natureza, falam de criação que saiu das mãos do Criador. Elas podem educar as pessoas a cuidarem desta herança que nos foi entregue por Deus. Devemos compreender-nos, e isto está no capítulo segundo do Gênesis - como jardineiros e cuidadores do Jardim do Éden. Esta é a nossa missão: cuidar, regenerar o deteriorado e permitir que todos possam conviver. Melhor ainda: não permitir que a seleção natural, que privilegia os mais aptos e fortes, prevaleça no processo de evolução.

Nossa missão deve ser a de salvar os débeis, permitir que sigam dentro do processo que já tem pelo menos 13 bilhões de anos de existência. O propósito da evolução não se resume em privilegiar os mais fortes, senão em permitir que cada ser, também os mais débeis, mostrem novas possibilidades da natureza, revelem dimensões novas que vêm do Abismo alimentador do Todo (o vazio quântico, como o chamam os cosmólogos) e que prefiro chamar de a Fonte originária de todo o ser, numa palavra, a reverência ou Deus.

 

 

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