Edição 375 | 03 Outubro 2011

Abolicionismo, vida e tempo

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Graziela Wolfart

Marco Antonio Scapini defende que o abolicionista exige radicalmente a mudança, o novo, o respeito à diferença, à multiplicidade em todos os sentidos

O abolicionismo nos dias de hoje, é tema que estará em debate no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quinta-feira, 06-10-2011, no evento IHU ideias, Marco Antonio Scapini, que é mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e integrante do Instituto de Criminologia e Alteridade – ICA. O tema da conferência é “Nas fronteiras da lei: o abolicionismo de Louk Hulsman”.

Ela será proferida e debatida das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.

Marco Scapini concedeu a entrevista a seguir, por e-mail, onde explica que “o abolicionismo (...) emerge justamente de uma repulsa frente à injustiça em todos os sentidos possíveis e imagináveis”. Dessa maneira, continua ele, é a “indignação contra toda e qualquer forma de injustiça o fio condutor de toda prática abolicionista, daí porque podemos dizer que o principal debate abolicionista é a vida”. E define: “o abolicionismo é uma escolha, uma indignação que se dá na prática contra toda e qualquer forma de violência”.

Marco Antonio de Abreu Scapini é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, especialista em Ciências Penais e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que questões envolvem o debate sobre o abolicionismo hoje?

Marco Antonio de Abreu Scapini –
É muito interessante a forma como colocaste a pergunta, direcionando para a atualidade do debate sobre o abolicionismo na atualidade. Além disso, também é pontual a ausência da palavra (penal) após abolicionismo na pergunta. Pontual na medida em que o abolicionismo – talvez pudéssemos escrever com A maiúsculo – não se limita a questões penais, apesar de muito dos seus temas envolverem diretamente ou não coisas referentes à lei. Em linhas gerais, podemos dizer que as questões atuais do abolicionismo permanecem praticamente as mesmas das que motivaram esse movimento, ou como diz Edson Passetti: “um discurso estratégico composto de forças libertadoras e libertadoras das práticas punitivas modernas”. A partir deste pequeno fragmento, podemos dizer que o abolicionismo, seja o que esta palavra signifique, emerge justamente de uma repulsa frente à injustiça em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Desta maneira, é a indignação contra toda e qualquer forma de injustiça o fio condutor de toda prática abolicionista. Daí porque podemos dizer que o principal debate abolicionista é a vida. O resgate e a exigência desta dimensão vital, que jamais pode ser esquecida em qualquer debate ou construção acadêmica, parecem-me ser o que há de mais central em todo debate abolicionista. Não por outra razão busca-se a libertação das práticas punitivas modernas que, evidentemente, não pode ser entendida apenas como libertação da estrutura penal moderna. Mas esta é apenas uma das questões em debate. Ou seja, queremos dizer que o abolicionismo enfrenta questões fundamentais da cultura, da política, da ética, em todos os níveis da estrutura social, criada como se já fosse dada, pronta, estabelecida ou natural, se quisermos utilizar essa palavra. Nesse sentido, podemos dizer que o tempo também é ponto central e fundamental no debate e na prática abolicionista. Isto porque o abolicionista, se algo como tal existir, exige radicalmente a mudança, o novo, o respeito à diferença, à multiplicidade em todos os sentidos. A partir dessas duas dimensões, vida e tempo, é que se abre o debate do abolicionismo, enfrentando, aí sim, com maior ou menor ênfase as camadas textuais das questões referentes à linguagem, à violência, à democracia, ao ensino, ao sistema judicial, à punição, ao crime, ao criminoso e às instituições em linhas gerais. Por fim, podemos dizer que por este breve esboço, provavelmente injusto com o abolicionismo, trata-se de ponta a ponta um direcionamento à justiça, nos termos de Jacques Derrida .
 

IHU On-Line – O que podemos entender por abolicionismo penal?

Marco Antonio de Abreu Scapini –
Toda a resposta anterior está diretamente relacionada a esta pergunta. Não temos como demarcar um limite para o abolicionismo (penal). Esta é para mim a grande possibilidade da própria crítica do abolicionismo, ou seja, justamente transbordar o limite, ir além, querer o impossível. A transgressão do limite é a chance para o novo, para a vida como já dissemos acima. Gostaria de pontuar uma questão que para mim é das mais relevantes; o que não podemos entender por abolicionismo penal. Por isso o abolicionismo exige de nós uma leitura cautelosa, paciente e aberta a novos caminhos. E justamente por tocar em questões fundamentais da vida, o abolicionismo pode ser perigoso demais no melhor dos sentidos, é claro. E, sabemos bem, tudo o que é “perigoso”, que propõe e exige uma mudança radical das estruturas das instituições sociais, pode fazer aparecer inimigos-fantasmas, pretendendo neutralizar o que de mais potencialmente rico pode ter o abolicionismo. Por isso queremos dizer que não podemos cair em erro e pensar o abolicionismo como um delírio ou como uma utopia no pior sentido desta palavra. A utopia é justamente o “ainda não” de que nos falou Ernst Bloch , o que nos faz andar para o novo. Não podemos ainda cair no erro da fetichização do abolicionismo ou afirmá-lo como algo irracionalista. Não faltam exemplos deste tipo de prática que pretende justamente neutralizar o potencial de críticas realmente radicais.
Todavia, para não parecer distante da pergunta, entendo o abolicionismo como uma prática desconstrucionista das instituições, uma prática-limite que coloca em xeque a legitimação do poder, a aplicabilidade da lei, ou da força de lei, se quisermos citar indiretamente Jacques Derrida. O que justifica a aplicação do Direito? Haveria algo anterior capaz de justificá-lo? Para mim estas são questões importantes e fundamentais à prática do abolicionismo penal, questões que remetem à origem da lei, da violência, mas que nos farão chegar à ponta do iceberg, como o grande encarceramento, por exemplo.
É evidente que a minha resposta poderia parecer insuficiente para alguém que desejasse uma afirmativa direta do que é o abolicionismo penal. Mas é justamente por não poder dizê-lo que não o faço. O abolicionismo, à maneira como o penso, não se presentifica numa presença. Está sempre por vir, sempre em realização, jamais poderá ser lido como uma teorização pronta e acabada. Nesse sentido, o abolicionismo é como uma aporia, um não-caminho. Além disso, gostaria de terminar dizendo que o abolicionismo é uma escolha, uma indignação que se dá na prática contra toda e qualquer forma de violência.
 

IHU On-Line – Em que consiste a ideia abolicionista de Louk Hulsman?

Marco Antonio de Abreu Scapini –
Louck Hulsman foi realmente extraordinário, um ser humano que deve ser admirado. E sua obra consiste justamente numa espécie de convite à humanidade, no melhor dos sentidos. Respondo à indagação a partir de sua obra Penas perdidas – o sistema penal em questão; o que certamente limita as minhas possibilidades de análise. Em linhas gerais, teve diversas e ricas experiências em tribunais, no Ministério da Justiça e na docência acadêmica como professor. Da experiência jurídica, vamos dizer assim, viu de perto as práticas burocráticas das instituições e a maneira pela qual se produziam e se aplicavam as leis, percebendo que, em verdade, nada funciona conforme os modelos propostos e que o sistema penal jamais funciona como pretendem legitimar seus princípios. A aproximação com as ciências sociais o fez ter mais claro a importância do vivido; também o fez perceber uma lógica própria do funcionamento da instituição jurídica, funcionando apesar da vida. Não faz vilões, ao descrever experiências pelas quais passou; refere que em julgamentos do sistema penal o acusado não consegue falar e, tampouco, o juiz ou policial, que, mesmo querendo escutá-lo, não são capazes de fazê-lo. Aponta para a desumanidade desta relação instituída. Percebeu ainda que, por vezes, reformas bem intencionadas para diminuir ou pôr fim às injustiças acabam por voltar contra o próprio projeto, reafirmando a violência, a repressão, ou seja, acabam neutralizados pelo sistema. Por estas e outras razões, propõe práticas desinstitucionalizantes e descentralizadoras da máquina institucional. Para Hulsman, a única maneira de deter a doença institucionalizante, fazendo retomar a dimensão do relacionamento social é pela perspectiva abolicionista. A partir de pontos-chave para a construção da prática abolicionista formula sua crítica à instituição, retomando e problematizando questões que se direcionam à solidariedade e à igualdade. Em outras palavras, exige um salto mortal, como ele mesmo diz, em relação à compreensão da realidade e, nesse sentido, a conversão da prática decorrente deste salto. Segundo Hulsman, o abolicionismo pode se dar em dois níveis: pessoal e coletivo. Para a abolição do sistema penal, é necessário a conversão coletiva, caso contrário, o abolicionista viverá a angústia de sua solidão.
O abolicionismo de Hulsman consiste em uma crítica radical às representações das instituições, ao maniqueísmo que se dá dividindo as pessoas entre os bons e os maus, à burocracia no funcionamento das instituições. “Ninguém dirige a máquina penal” diz Hulsman, mas ela está aí funcionando a todo vapor. É, deste modo, que Hulsman, com uma delicadeza e pontualidade incríveis, expõe os horrores do sistema penal. Para o autor que estamos falando, este sistema fabrica seus criminosos; a cifra-negra de sua operacionalidade aponta o quanto é desprezível a atuação do sistema. Assim, a abolição do sistema penal é um imperativo; não há discurso capaz de legitimá-lo; tudo que prometeu resolver jamais cumpriu. Aliás, prometeu resolver o que ele mesmo criou. Na perspectiva de Hulsman, “abolir o sistema penal significa dar vida às comunidades, às instituições e aos homens”. Evidentemente, a proposta de Hulsman possui uma riqueza inesgotável para análise crítica da sociedade de uma maneira geral. O que tentamos fazer é esboçar alguns pontos específicos para a resposta desta questão. Certamente muitos estudos ainda virão e Hulsman permanecerá vivo entre nós.


IHU On-Line – O abolicionismo pode ser considerado como uma solução viável para a redução da criminalidade?

Marco Antonio de Abreu Scapini –
Como vimos, a criminalidade é uma criação legal: existe a partir de um critério jurídico quando há a criminalização de condutas, produzindo, portanto, o sistema penal seus culpados. O abolicionismo é radical em sua proposta, exige uma nova leitura da realidade, o que fará com que, talvez, sequer pudéssemos falar em crime, criminoso, criminalidade, etc. Estamos instituídos numa linguagem carregada de um potencial estigmatizante muito violento. Entre outras coisas, o abolicionismo se opõe a isso também. Necessitamos de uma compreensão de mundo diferida da que temos. Por isso a importância da desinstitucionalização. Não por outra razão podemos ler em alguns abolicionistas a nomenclatura “situação-problema” para aquilo que, em princípio, entenderíamos crime. Este é um ponto bastante delicado que mereceria maior atenção, mas neste momento, o que podemos dizer é que é tarefa extremamente difícil este exercício ou prática. Significa se abrir em direção a um outro mundo. De todo modo, com auxílio de textos abolicionistas algumas práticas têm aparecido com bastante enfrentamento desta questão, como os ciclos de Justiça Restaurativa, por exemplo. O cuidado que se deve ter é aquele que Hulsman nos disse, não fazer o sistema neutralizar o projeto. Nesse sentido, o abolicionismo, por seu potencial crítico, pode contribuir e muito para a redução da violência, mas sempre exigirá uma radicalidade no tratamento da questão. Em relação à viabilidade das propostas e práticas abolicionistas, isto dependerá do quanto estamos dispostos a nos abrir para a vida, desinstitucionalizando-se desta máquina penal.


IHU On-Line – Como você analisa o sistema prisional no Brasil, de forma geral?

Marco Antonio de Abreu Scapini –
Vejo de forma absolutamente cruel com as vidas depositadas nestes estabelecimentos. No meu entender, não há nada que justifique ou legitime tamanha crueldade. E a tendência é ficar cada vez pior, cada vez mais presos, cada vez mais mortes, cada vez mais o encarceramento da miséria. Mas ao meu modo de enfrentar a questão da punição, o presídio é a ponta do iceberg como já dissemos aqui. Existem razões que sustentam esta prática punitiva, e o problema deve ser enfrentado desde esse ponto. Defender o desencarceramento é tarefa extremamente difícil, mas um imperativo ético no meu modo de ver. Nesse sentido, esse problema envolve todas as questões de que falamos até o momento. O que há é um genocídio diário, como disse certa vez Zaffaroni .


>> Saiba mais sobre Louk Hulsman:

O criminólogo holandês Louk Hulsman, professor emérito da Universidade de Roterdã (Holanda), é um crítico do sistema penal. Radical para uns, delirante e romântico para outros, ele nega esse sistema e diz que deve ser abolido. Para isso, estudou-o profundamente, revelou suas fraquezas e vem demonstrando sua irracionalidade, apregoando a devolução do conflito à sociedade, para que esta encontre formas de solucioná-lo.

Nascido em 1923, numa região dos Países-Baixos que, de um lado, fazia fronteira com a Alemanha e, do outro, com a Bélgica, Hulsman cresceu católico. Viveu em internatos por vários anos durante sua infância e adolescência, porque "meus pais me achavam terrível e pensavam que era bom para a minha educação". No último ano de internato - ele fugiu de lá aos 15 anos - tomou a iniciativa de começar a estudar teologia moral. Depois, veio a Segunda Guerra Mundial, que o levou a participar da Resistência contra a ocupação nazista. Foi preso pela polícia holandesa por estar com documentos falsos e mandado para um campo de concentração. "Eu usava documentos falsos para não ter de ir trabalhar na Alemanha. Foi chocante ser preso pela polícia de meu próprio país, mas me fez perceber a falsidade do discurso oficial. Entendi que a as leis e a estrutura estatal, feitas para, em tese, proteger o cidadão, sob determinadas circunstâncias podem voltar-se contra ele", diz.

Foi, portanto, no internato e no campo de concentração que ele começou a questionar os discursos oficiais da Igreja e do Estado, questionamento esse que o levou a defender a abolição do sistema penal. Mas isso ocorreu bem mais tarde, quando ele já se tornara professor de Direito Penal na Universidade de Roterdã, cargo que passou a ocupar em 1964. "Descobri que, a não ser excepcionalmente, o sistema penal jamais funciona como querem os princípios que pretendem legitimá-lo", diz.

Dentre seus escritos citamos Louk H.C. Hulsman/Jacqueline Bernat de Celis. Peines Perdues. Le système pénale en question (Paris: Editions du Centurion, 1982).

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