Edição 375 | 03 Outubro 2011

Arqueologia da mídia: preocupação com os estudos da técnica

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Thamiris Magalhães

Mais que abordar os conteúdos da comunicação, os estudos da arqueologia da mídia preocupam-se com a história dos aparatos tecnológicos, pondera Fabrício Lopes da Silveira

“Trata-se de uma abordagem muito rica, interessante, mas que tem ainda que dizer a que veio”. Esse é o posicionamento do professor do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos Fabrício Lopes da Silveira, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line. Para ele, a arqueologia da mídia é uma abordagem nova “que traz um frescor para a área e desafios novos para a pesquisa em comunicação”. Além disso, o docente destaca que essa área de estudos busca outras saídas para pensar a comunicação na contemporaneidade. “Acredito que estamos muito marcados por uma tradição hermenêutica dos estudos de comunicação. As pesquisas semióticas são assim; análise de conteúdo. Então, o que esses autores estão procurando é outra via. Ou seja, não interessa tanto esses assuntos, os conteúdos, mas justamente essa ambientação midiática e o modo como ela impacta sobre as dinâmicas sociais, sobre os próprios assuntos”, enfatiza.

Fabrício Lopes da Silveira graduou-se em jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Durante o mestrado, realizado na UFRGS, focou suas pesquisas em etnografia e estudos de recepção da televisão. Na Unisinos, concluiu seu doutorado intitulado Situacionalidades televisivas. Comunicação, consumo e cultura material. É professor dos cursos de Comunicação Social, além do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos, trabalhando com as disciplinas de Teorias da Comunicação e Pesquisa em Comunicação. Atualmente, ministra, junto com a professora Adriana Amaral, a disciplina de Tópicos de Comunicação e Cultura Pop. É autor de O parque dos objetos mortos. E outros ensaios de comunicação urbana (Ed. Armazém Digital, 2010) e Pequenas crises. Pesquisa em comunicação e experiência estética (Ed. Modelo de Nuvem, 2011), organizado pelo docente, com contribuições de vários alunos do PPGCC.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual seria a definição mais clara da arqueologia da mídia?

Fabrício Lopes da Silveira –
É uma vertente de trabalho, um nicho de estudos, digamos assim, no campo da comunicação, que vem procurando discutir a técnica por um viés histórico, da história da cultura. Não dá para dizer ainda que seja uma teoria acabada, já bem construída. Creio que seja um tipo de abordagem nova para a questão da técnica, que tenta pensar um desenvolvimento tecnológico que não aconteceu. A arqueologia da mídia indaga: onde poderíamos estar hoje caso os desdobramentos da mídia e suas linguagens tivessem adotado outro rumo? Há uma área, a arqueologia do cinema, que tem trabalhos bem interessantes nessa corrente e eu acho que isso foi ganhando uma projeção de tal forma que esses estudos estão dando conta de outras mídias, oferecendo elementos para que possamos pensar em mídias de uma forma geral, do ponto de vista do potencial tecnológico que, às vezes, não se consumou. Trata-se de uma perspectiva de trabalho que me parece uma novidade; é uma maneira nova de olhar para a comunicação. Além disso, não tem muito pesquisador que trabalhe com esse assunto e esses estudos ainda estão começando a aparecer no Brasil. Há poucos textos publicados aqui no país, traduzidos já para o português. O próprio Zielinski tem o livro A arqueologia da mídia que, creio, ser o principal trabalho que talvez melhor represente essa vertente, mas é um trabalho, por enquanto. Além desses, o que nós temos são estudos um pouco pontuais, isolados, que apareceram e podem ser organizados. Caso venham a ser sistematizados por alguém, podem dar uma visibilidade maior para essa perspectiva de trabalho.


IHU On-Line – Qual a relevância do conceito para os estudos da mídia na atualidade?

Fabrício Lopes da Silveira –
Creio que renova muito a área. É importante porque é uma abordagem da técnica, e não dos conteúdos da comunicação. Creio que seja um tipo de trabalho sobre as formas midiáticas que, de certa forma, traz um ganho ou equilibra esses estudos mais frequentes na nossa área, que são muito de conteúdo. Creio que essa vertente de pesquisa é bastante atual para o campo da comunicação, por trazer uma abordagem nova.


IHU On-Line – Então, não trata a técnica como um simples instrumento neutro?

Fabrício Lopes da Silveira –
Não. E isso é interessante, até porque este ano estamos comemorando o centenário do McLuhan e ele de certa forma foi um autor que contribuiu para essa perspectiva, sendo citado e reaparecendo nos trabalhos dessas pessoas que hoje estão formulando e oferecendo elementos para a discussão da arqueologia da mídia. Que é justamente isso: o desafio de pensar o meio exatamente e sua constituição histórica, bem como o impacto que as mídias, enquanto aparatos materiais, têm na cultura e sobre as nossas relações sociais. Então, creio que é relevante o estudo porque recoloca e reformula o olhar para a técnica. Até porque, na comunicação, somos muito assombrados pelo fantasma da novidade tecnológica. Parece que a tecnologia surge e não tem história. Que tudo é muito novo e tudo reconfigura tudo. E o que esses autores estão tentando mostrar é o contrário: que há processos históricos, tecnológicos profundos. Isso que Zielinski chama de “tempo profundo da mídia”. Então, é justamente tentar pensar essa continuidade e, nesse caso, é a própria distinção entre mídias digitais e analógicas com a qual trabalhamos hoje que acaba sendo muito criticada por ele. O que Zielinski tenta mostrar é que muitas das características que a gente vê hoje, na cultura digital, na verdade não são de hoje, mas têm um processo histórico de maturação que ele procura pontuar. Para esse autor, especificamente, essa distinção tão marcada entre digital e analógico não tem muito sentido.


IHU On-Line – Por que poucas pessoas no Brasil e exterior querem estudar a arqueologia da mídia?

Fabrício Lopes da Silveira –
Acredito que estamos muito marcados por uma tradição hermenêutica dos estudos de comunicação. As pesquisas semióticas são assim – análise de conteúdo. Então, o que esses autores estão procurando é outra via. Ou seja, não interessa tanto esses assuntos, os conteúdos, mas justamente essa ambientação midiática e o modo como ela impacta sobre as dinâmicas sociais, sobre os próprios assuntos. É uma tradição muito forte, em que se produziu muita pesquisa e que, de certa forma, eles estão tentando simplesmente encontrar outra via, para complementar essa abordagem hermenêutica, com estudos que poderíamos chamar de não hermenêuticos.


IHU On-Line – Acredita que com os estudos da arqueologia da mídia seria possível “desenterrar caminhos secretos na história”, como disse Zielinski? E isso poderia nos ajudar a encontrar nosso caminho para o futuro? Por quê?

Fabrício Lopes da Silveira –
Eu acredito, sim. Mas acho que, primeiro, devemos entender esse processo histórico, o que certamente nos dá condições de pensar o presente e projetar o futuro. Porém, não sei se é algo tão aplicável assim, porque também esses estudos têm uma espécie de romance da técnica. São estudos inventivos, de certo modo. Eles vão cogitar caminhos que, na verdade, não aconteceram; que foram soterrados ou inviabilizados, às vezes por questões culturais e econômicas principalmente. Então, são essas determinações, culturais, sociais, econômicas, que vão bloqueando certas potencialidades técnicas. De certa forma, o que eles pretendem é imaginar, ficcionalmente quase, de um modo até literário, romanceado, o que poderia ter sido caso o caminho fosse outro. É quase como quando há uma esquina e optamos por esse caminho ou aquele e o que teria acontecido se tivéssemos ido por outra via, onde teríamos chegado. Do ponto de vista da pesquisa e até metodológico, acho interessante essa abertura que a referida corrente de trabalho traz para o elemento, inclusive, inventivo. Claro que não se trata de uma ficção, mas é um esforço de também trazer, em alguma medida, uma elaboração ficcional para essa leitura da história, para a leitura desses dados históricos, dessas informações com as quais esses autores irão procurar trabalhar.


IHU On-Line – De que forma os estudos da arqueologia da mídia podem nos oferecer subsídios para compreendermos melhor a comunicação no futuro?

Fabrício Lopes da Silveira –
Clareando esses processos históricos. Talvez, com isso, nós tenhamos elementos para imaginarmos para onde pode ir o avanço tecnológico ou que sentido tem esse progresso tecnológico; que implicações irá trazer.


IHU On-Line – Quais as relações existentes entre mídias antigas e atuais, digitais?

Fabrício Lopes da Silveira –
Na verdade, essas lógicas estão se recolocando no ambiente digital. Elas não são inventadas, mas estão sendo readequadas. Por exemplo, muitas coisas que vemos hoje na internet, como a cultura hacker. Esse tipo de contracultura, de atitude, não é própria desse meio. Então, essas ações só se atualizam em processos, tensões e hábitos que são anteriores. Claro, ganham outro formato, mas a questão é entender o que tem de realmente novo nesse processo e o que não é tão novo assim, como acreditamos.


IHU On-Line – Então, a arqueologia da mídia prega a continuidade dessas mídias?

Fabrício Lopes da Silveira –
Sim. Os autores que estudam a arqueologia da mídia enfatizam muito essa questão da continuidade. Não há um salto, embora exista uma ideologia da novidade, que cerca a área da comunicação. O que esses estudiosos vão tentar mostrar é que as coisas não são assim. Eles estão muito mais interessados em mostrar que há continuidade e não rupturas nesse desdobramento histórico.


IHU On-Line – De que maneira o conceito pode nos ajudar a entender melhor as mídias atuais?

Fabrício Lopes da Silveira –
Esclarecendo e oferecendo uma compreensão melhor do que é novo ou não. Se se muda, muda-se o que? Acredito que, talvez, a vantagem desses estudos seja um pouco isso: frear o oba-oba, essa coisa da moda da tecnologia pelo avanço da técnica pela técnica. E o que a arqueologia da mídia prega é um olhar talvez um pouco menos seduzido pela técnica, pelo avanço tecnológico por ele próprio.


IHU On-Line – Podemos dizer que existem pessoas que acreditam na “técnica pela técnica”? Não seria o conteúdo que está nela? Ou acredita que os indivíduos se importam hoje com o aparato tecnológico?

Fabrício Lopes da Silveira –
Acredito que ainda há hoje, sim, um culto da técnica pela técnica. Para os autores que estudam a arqueologia da mídia o foco é a técnica, mas nesse sentido de desencantamento e recuperação desse elemento histórico, constituinte da tecnologia, que não pode ser esquecido. Só que isso não é um passe de mágica. Trata-se de todo um processo que tem que ser recuperado na cultura.


IHU On-Line – Como podemos tensionar a arqueologia da mídia com a ideia de amnésia histórica, apregoada pela pós-modernidade?

Fabrício Lopes da Silveira –
Acredito que os estudos da arqueologia da mídia batem de frente com a ideia de amnésia histórica, porque eles investem justamente em uma recuperação dessa história. Mas uma coisa que é interessante: não é essa história linear e não se trata de uma história oficial. Trata-se justamente de procurar a história que não aconteceu. Benjamin, por exemplo, é um autor que também é recuperado nesse contexto de trabalhos. Ele fala na história dos vencidos. Seria um pouco isso: tentar imaginar o que seria a história da técnica que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido. Seria restituir, por esse exercício de imaginação histórica, essas formas midiáticas e averiguar os caminhos que elas tomaram em função dos que foram deixados para trás. McLuhan e Benjamin são autores que estão sempre presentes, servindo de base para outros, como Zielinski e Kittler, que são os pesquisadores mais identificados na linha de frente, hoje, que têm aparecido para nós aqui no Brasil com a ideia de arqueologia da mídia. Ou seja, Benjamin, McLuhan, Flusser, Zielinski e Kittler são os principais estudiosos do tema. E isso é uma corrente, tradição, de algumas teorias alemãs de mídias contemporâneas que vêm construindo, pouco a pouco, essa perspectiva de trabalho. A minha expectativa é ver justamente como isso vai se definir. Trata-se de uma abordagem muito rica, interessante, mas que tem ainda que dizer a que veio. Vamos ver até que ponto esses trabalhos vão, de fato, render na área da comunicação no Brasil; até que ponto irão inspirar estudos e ser continuados; e que tipo de pesquisa vai começar a aparecer com esses autores. No Brasil, ainda são poucos os trabalhos que se dedicam a isso. É uma abordagem nova, que traz um frescor para a área e desafios novos para a pesquisa em comunicação.


IHU On-Line – Qual a contribuição dos estudos da arqueologia da mídia para o campo comunicacional?

Fabrício Lopes da Silveira –
Pode, muito bem, renovar o campo. Agora, vamos ver como isso vai acontecer. E, as pessoas que forem se interessando pelo assunto, até aonde irão levar. Como conseguirão trabalhar, produzir boas pesquisas, defender suas teses, produzir, enfim, dentro dessa perspectiva de trabalho. Creio que cabe a nós ficarmos atentos, acompanhando, para ver, nos próximos anos, que rosto a pesquisa irá ganhar e como essa perspectiva será recebida aqui no Brasil; se se vai começar a circular mais ou não.


IHU On-Line – Mais que um simples dispositivo tecnológico, a internet representa um “novo modo de ser no mundo”?

Fabrício Lopes da Silveira –
A comunicação digital eu teria a tendência em dizer que não. Não configura um novo modo de ser no mundo. Mas a comunicação sim. Parece-me que a comunicação digital só torna mais evidente coisas e processos sociais, em que a mídia passa a ter importância, mas não porque são das mídias digitais, mas sim porque são das mídias. Não há um digital puro. O que está na cultura digital está na midiática. A cultura digital está muito relacionada com outras mídias analógicas. Então, não consigo ver a cultura digital sozinha, instituindo um novo modo de ser no mundo. O que eu acho que instaura um novo modo de ser no mundo é a cultura midiática (mais abrangente) e, dentro da cultura midiática, a cultura digital. O digital isolado, eu tenho dúvidas se teria esse protagonismo para além do midiático ou sozinho.


IHU On-Line – De que maneira a comunicação midiática representa um novo modo de ser no mundo?

Fabrício Lopes da Silveira –
Acredito que principalmente em função do modo como reconfigura nossas experiências de tempo e espaço. E como eu passo a atuar no mundo, me relacionar com o outro, lidando com uma multiplicidade de tempos e espaços, com outro modo de me relacionar, de ocupar e dividir o meu tempo e espaço com esse outro. Então, passamos a nos relacionar socialmente, mas em outro regime espacial e temporal, que é esse que as tecnologias e esses ambientes midiáticos trazem.


IHU On-Line – Mas o tempo e espaço não são proporcionados pelo digital?

Fabrício Lopes da Silveira –
Sim. Acredito que o digital acelera isso. Amplifica essa alteração. Mas ele sozinho não causou a mudança. Só a radicaliza, de certa forma.

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