Edição 375 | 03 Outubro 2011

“Estudar a história dos tempos profundos da imagem significa também buscar raízes da própria escrita”

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Márcia Junges e Thamiris Magalhães

As pesquisas que investigam uma arqueologia da mídia englobam naturalmente os estudos sobre a comunicação visual, diz Norval Baitello Junior

“Sabemos que a comunicação imagética precede à comunicação alfabética, o que confere à imagem algo como uma paternidade sobre a escrita. Estudar a história dos tempos profundos da imagem significa também buscar raízes da própria escrita”, assevera Norval Baitello Junior, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, temos uma relação complexa com a imagem, “pois somos geradores compulsivos delas”. E completa: “elas não apenas nos afastam das coisas, como também nos aproximam, paradoxalmente. E as imagens nascem no trânsito entre os ambientes endógeno e exógeno”. Tal trânsito, para Norval, constitui a alma e o poder das imagens para os seres humanos. “Elas nos capturam o olhar porque nasceram na escuridão de nossas ‘cavernas’, os sonhos e a imaginação. Por isso, quando as imagens se proliferam nos ambientes externos, como inflação de imagens exógenas, somos coagidos a restringir o acesso a nossas próprias imagens endógenas, deixando progressivamente de exercer a capacidade de imaginação”.

Norval Baitello Junior é doutor em Ciências da Comunicação e em Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim, com pós-doutorados no Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Berlim e no Centro Internacional de Pesquisas em Ciências da Cultura – IFK, em Viena. É professor titular da PUC-SP, atuando na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. É pesquisador do CNPq. Fundou e dirige o Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia – CISC desde 1992. É professor visitante das Universidades de Viena e Sevilha. É coordenador de área (Comunicação e Ciências da Informação) na Fapesp desde 2007. É autor, dentre outros, de A serpente, a maçã e o holograma - esboços para uma teoria da mídia (Ed. Paulus, 2010), La era de la iconofagia (Ed. Sevilha, 2008) e Os meios da incomunicação (São Paulo: Annablume, 2005).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Em que aspectos a arqueologia da imagem tem conexões com a arqueologia da mídia?

Norval Baitello Junior -
Os estudos que investigam uma arqueologia da mídia englobam naturalmente as pesquisas sobre a comunicação visual. Sabemos que a comunicação imagética precede à comunicação alfabética, o que confere à imagem algo como uma paternidade sobre a escrita. Estudar a história dos tempos profundos da imagem significa também buscar raízes da própria escrita.


IHU On-Line - Partindo da obra Die Antiquiertheit des Menschen , como analisa a obsolescência da vida, do corpo e do homem diante das estratégias midiáticas cuja principal ferramenta é a imagem?

Norval Baitello Junior -
Anders  falou, em sua notável e pioneira obra, de um fenômeno que ele mesmo denominou “iconomania”, uma mania dos ícones, das figuras, da comunicação visual, algo como uma adoração obsessiva pela imagem visual. Isto significa que espaços antes ocupados pela presença física, pela conversa e pela voz, pelo gesto vivo, passam a ser ocupados por registros artificiais - animados ou inanimados - fotos ou filmes. E que tais registros passam a ocupar cada vez mais espaços em todos os ambientes humanos. Ora, se compreendemos que uma imagem é a presença de uma ausência, temos que concordar com Anders que o humano desaparece progressivamente dando espaço a traduções bidimensionais, despidas de corporeidade, calor, vida e presença física.


IHU On-Line - Como podemos compreender os limites e possibilidades que se descortinam para o sujeito a partir da sua relação com a imagem?

Norval Baitello Junior -
Temos uma relação complexa com a imagem, pois somos geradores compulsivos delas. Elas não apenas nos afastam das coisas, como também nos aproximam paradoxalmente. E as imagens nascem no trânsito entre os ambientes endógeno e exógeno. Tal trânsito constitui a alma e o poder das imagens para os seres humanos. Elas nos capturam o olhar porque nasceram na escuridão de nossas “cavernas”, os sonhos e a imaginação. Por isso, quando as imagens se proliferam nos ambientes externos, como inflação de imagens exógenas, somos coagidos a restringir o acesso a nossas próprias imagens endógenas, deixando progressivamente de exercer a capacidade de imaginação.


IHU On-Line - Nesse sentido, como podemos compreender as “máquinas de imagem” às quais se refere Zielinski?

Norval Baitello Junior -
Sempre foi um sonho do homem atingir a animação do inanimado. A imagem estática sempre esteve associada ao retrato dos mortos (imago para os romanos era máscara mortuária). Assim, desde muito cedo se buscava inventar um meio para mover a imagem, como resgate da vida perdida na fixação (por meio do desenho ou da pintura). A invenção de aparatos que ofereciam a ilusão do movimento às imagens, portanto, sempre esteve presente e quando tais aparatos, em suas formas primordiais, mesmo que toscas, surgiram, tiveram um grande impacto sobre o imaginário.


IHU On-Line - Por que se pode falar de uma crise da visibilidade, com uma hegemonia da visão e uma sedação dos sentidos? O que tal constatação demonstra sobre a mídia no século XXI?

Norval Baitello Junior -
Cada espécie animal possui sua especificidade no uso dos sentidos. Em algumas predomina o olfato; em outras, a audição; outras, a visão. Porém, há tal desenvolvimento e hipervalorização da visão que, por excesso de estímulo, passa a não mais enxergar ou a enxergar seletivamente. Onde predomina um sentido, os outros se retiram ou se retraem. Essa retração dos outros sentidos sobrecarrega ainda mais a visão em nossa civilização ocidental moderna. Uma visão sobrecarregada pode trazer uma crise da percepção visual.


IHU On-Line - Olhar para o passado a fim de compreender melhor o presente. Estaria aí um dos pontos fulcrais da arqueologia da mídia? Por quê?

Norval Baitello Junior -
Vilém Flusser foi um dos primeiros pensadores do século XX a alertar para um novo ramo da investigação científica que surgia e se tornava cada vez mais necessário: as ciências arqueológicas. Tais ciências são aquelas que lidam com o “lixo” ou o descarte avassalador de coisas que perderam sua função primordial. Nestas coisas é que pode estar o sentido de nossas vidas, digo assim genericamente. Por isso nasceram tantas novas ciências que têm como meta a escavação e o resgate: a arqueologia, a etologia, a história, a psicanálise etc.

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