Edição 374 | 26 Setembro 2011

A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin

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Castor Bartolomé Ruiz

Força de lei é o tema do evento desta semana, que norteia o artigo do seu conferencista, o filósofo espanhol Castor Bartolomé Ruiz

“A exceção desmascara o soberano que tem o poder de decidir sobre a ordem e, como consequência, tem a potência de capturar a vida humana como vida sem direitos, um homo sacer”. A afirmação faz parte do artigo a seguir escrito por Castor especialmente à IHU On-Line, adiantando aspectos que irá tratar na conferência Força de lei, dentro da programação do evento Tópicos Especiais II: Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III . A exceção jurídica e o governo da vida humana”, nesta segunda-feira, dia 26-09-2011. Confira a programação completa do evento em http://bit.ly/qQ7NQp.

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006); Os Labirintos do Poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

Confira o artigo.

Giorgio Agamben , em sua obra Estado de exceção – Homo sacer II, desenvolve seu estudo sobre esta figura jurídico-política remarcando que ela representa uma zona de indistinção que está dentro e fora do direito. Nela a vida humana é capturada como mera vida nua. Ao ser suspendido o direito, a vida fica desprotegida como pura vida natural. Mas a captura da vida humana na exceção revela também a potência da vontade soberana que tem o poder de suspender os direitos e, como consequência, a ordem jurídica. A exceção desmascara o soberano que tem o poder de decidir sobre a ordem e, como consequência, tem a potência de capturar a vida humana como vida sem direitos, um homo sacer.

Agamben destaca que o interesse contemporâneo por esta temática tem muito a ver com o eficiente papel político que desenvolveu na implementação dos fascismos e do nazismo na Europa. Ao que poderíamos acrescentar sua importância para a implantação das ditaduras latino-americanas de toda índole, em particular as que se impetraram durante a segunda metade do século XX. Agamben destaca que o debate contemporâneo sobre o estado de exceção remete a dois autores principais: Carl Schmitt  e Walter Benjamin . O paradoxal destas referências é que Schmitt é um teórico do autoritarismo que contribuiu amplamente para legitimar juridicamente o regime nazista, enquanto Benjamin é um radical militante antifascista que pagou com a própria vida seu compromisso intelectual contra o nazismo.
Agamben destaca o diálogo explícito e encoberto que ambos os autores sustentaram a respeito do estado de exceção como chave hermenêutica para entender algumas consequências genealógicas. Schmitt escreveu em 1921 sua obra Die Diktatur; nela faz uma distinção entre ditadura comissária e ditadura soberana. Na ditadura comissária o estado de exceção visa defender ou restaurar a constituição vigente e, para tanto, suspende seu efeito. Na ditadura soberana anula-se a ordem jurídica existente, mas em seu lugar não fica o vazio do poder, a anarquia, senão que vigora o estado de exceção em que a vontade soberana é lei para a nova ordem.
Em 1922 Schmitt escreveu uma segunda obra Politische Theologie, na qual não mais relaciona o estado de exceção com as diversas formas de ditadura, mas introduz a decisão como figura política da soberania. Nos dois livros Schmitt se propõe mostrar que o estado de exceção pertence a uma forma de ordem jurídica e não de anarquia. Embora reconheça que tal articulação é controvertida, uma vez que aquilo que deve ser inscrito no direito, a exceção, é algo extrínseco ao próprio direito. Nessa última obra Schmitt destaca a importância da decisão (soberana) como a garantia última do direito e da ordem. Ao suspender a ordem, a exceção revela um elemento formal e jurídico: a decisão. Nessa obra a doutrina da exceção se torna a base da teoria da soberania.

Walter Benjamin escreveu no ano 1921 seu ensaio: Zur Kritik der Gewalt (Crítica da violência: crítica do poder). O ensaio foi publicado na revista Archiv fUr Sozialwissenschaften und socialpolitik, n. 47, da qual Schmitt era leitor assíduo e também colaborador. O ensaio de Benjamin inicia com a ambiguidade do próprio título em que o termo Gewalt pode significar, indistintamente, poder e violência. Essa ambiguidade será mantida de forma deliberada (ou não?) ao longo de toda a obra, de forma que o leitor é induzido a ler violência quando em muitos casos pode significar poder, e vice-versa. Ainda cabe questionar se a unificação em Gewalt de poder e violência obedece ao princípio de que todo poder é violento e toda violência é poder. Temos neste conceito o primeiro elemento de debate e questionamento pois nem todo poder é violento. Hannah Arendt, em sua obra Sobre a revolução, propôs-se a fazer distinções conceituais mostrando que o sentido positivo do poder inerente à ação política. Foucault desenvolveu mais amplamente as pesquisas sobre o poder mostrando que o poder deve ser entendido como potência. Há muitas formas de poder como potência, inclusive pode ter um sentido positivo: poder salvar, poder curar, poder ajudar, poder ensinar.... O poder é inerente à relações humanas e não deve ser confundido como a mera violência. Mas o ensaio de Benjamin mantém deliberadamente a indistinção o que obriga a todos os intérpretes a acrescentar mais esta dificuldade.

Diferentes violências

Benjamin faz nesse ensaio uma diferença entre violência que institui e conserva o direito, que seria uma violência mítica, e a violência que depõe o direito, que seria uma violência divina. Esta se traduziria politicamente por uma violência revolucionária. O direito não pode admitir que exista uma violência fora do direito, por isso tende a deslegitimar toda violência contra a ordem como ilegítima. Recordemos que a greve foi declarada, ainda nos tempos de Benjamin, como uma violência inadmissível contra a ordem. Na atualidade ela está regulamentada por direito e se decretam como ilegítimas outras formas de luta social (ocupação de terras, moradias, etc.) acusando-as de violência fora do direito. O objetivo de Benjamin é provar que há uma violência (poder?) fora do direito que não se limita a criar novo direito nem a conservá-lo, mas que pode instaurar uma nova época histórica.

Embora Benjamin não mencione em seu ensaio sobre a Crítica da violência, 1922, o conceito de exceção, sua tese questiona radicalmente a de Schmitt na sua obra Die Diktatur, 1921, daí que seja legítimo pensar que a obra do ano seguinte Politische Theologie, seja uma espécie de resposta não declarada ao ensaio de Benjamin. Schmitt tenta mostrar que não é possível uma violência fora do direito, pois na exceção que suspende o direito a violência se encontra incluída por sua própria exclusão. Para Schmitt a vontade soberana concentra a potência de toda violência, negando a tese de Benjamin, segundo a qual é possível uma violência pura, fora do direito e não reconhecida como proveniente de uma decisão, mas originária de uma ação humana inteiramente anônima.
Em 1928 Benjamin escreve sua obra Origem do drama barroco. Conserva-se uma carta de Benjamin a Schmitt de dezembro de 1930 em que Benjamin afirma o reconhecimento e a influência que a obra de Schmitt teve no desenvolvimento do conceito de estado de exceção na Origem do drama barroco. Agamben desafia a fazer uma leitura crítica (quase irônica) do texto de Benjamin como sendo uma resposta ao modelo de exceção defendido por Schmitt. Benjamin em seu texto introduz uma ligeira mais decisiva modificação a respeito da relação do soberano barroco com o estado de exceção. Para Benjamin, a concepção barroca de soberania desenvolve-se a partir do debate sobre o estado de exceção e se atribui ao príncipe o cuidado de excluí-lo. O príncipe barroco tem como atribuição excluir o estado de exceção e não decidir sobre ele. Isso altera nos fundamentos a concepção de Schmitt sobre a relação entre soberania e exceção. A tese de Benjamin é que o soberano não pode decidir sobre a exceção incluindo-a na ordem, mas excluindo-a de toda ordem. Deve deixar a exceção fora da ordem.

Esta leve (e aguda) modificação de Benjamin leva-o a formular uma teoria da indecisão soberana. Se para Schmitt o que vincula a soberania à exceção é a decisão, Benjamin mostra que o soberano barroco está permanentemente impossibilitado de decidir. Desta forma tão sutil Benjamin estaria respondendo as teses de Schmitt na obra Politische Theologie, que por sua vez pretenderia criticar o ensaio de Benjamin Por uma crítica da violência.

A conclusão de Benjamin é ainda mais extrema. O deslocamento sobre o paradigma da exceção não mais conduzirá ao milagre, como preconizava Schmitt, mas que levará inexoravelmente para a catástrofe. Tal catástrofe é decorrência de uma convicção escatológica do barroco. Um tempo que produz um eschaton vazio, sem redenção, e permanece imanente ao tempo. A escatologia que não tem um além redimido, mas que entrega a terra a um céu vazio, configura o estado de exceção como catástrofe. O estado de exceção não aparece mais em Benjamin como o limiar que articula o dentro e o fora do direito e da soberania. Ele é uma zona de indeterminação em que a criação e a própria ordem jurídica são arrastadas para a mesma catástrofe. Na tese IX Sobre o conceito de história, Benjamin desenvolverá a categoria de catástrofe. Enquanto a modernidade vê o progresso como uma lei inexorável dos vencedores, o anjo da história olha para trás e percebe que esse progresso está fabricado sobre multidões de vítimas da história. “Onde vemos acontecimentos, ele vê uma catástrofe única”. O anjo gostaria de voltar e ajudar os vencidos da história, mas um vento impetuoso (o progresso) o impede. A leitura da história desde os vencidos levará Benjamin a exclamar, na tese eficiente VII dessa obra, que “nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”.

Um outro capítulo deste debate, o último e decisivo para Benjamin, se encontra na VIII Tese sobre o conceito de história. Nela Benjamin afirma explicitamente: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos se tornou a regra. Devemos chegar a um conceito de história que corresponda a este fato. Teremos então como tarefa a produção de um estado de exceção efetivo; e isso fortalecerá nossa posição contra o fascismo”. A primeira parte da tese, que o estado de exceção se tenha tornado regra, resulta compreensível, especialmente no apogeu dos fascismos desse momento. Contudo, ela ainda tem uma outra leitura, para os excluídos sociais que vivem privados de direitos fundamentais, a exceção que suspende de fato (ainda que não de direito) esses direitos, tornou-se a norma de sua vida. Para os excluídos a exclusão é seu modo normal de vida. Vigora sobre suas vidas a suspensão de determinados direitos fundamentais, o que torna suas vidas vulneráveis e as condena a zonas de indignidade.
O que Benjamin (d)enuncia em sua tese VIII é que a exceção e a normalidade se tornaram indiscerníveis. Exceção e regra se fundiram ao ponto de agir de forma unitária. Nesse caso a distinção entre violência e direito desaparece, propiciando o aparecimento de uma zona de anomia em que age uma violência sem roupagem jurídica. Benjamin desmascara a pretensão estatal de querer anexar-se a tal zona de anomia através do estado de exceção. Benjamin se propõe pensar uma exceção que esteja livre do direito. Uma zona de anomia em que a vida humana não caia nas malhas da violência soberana. O que ele denomina de verdadeiro estado de exceção contra o fascismo, poderia ser entendido como uma exceção da exceção. Uma suspensão da violência sobre a vida humana exercida como violência mítica do direito que a captura sob uma ordem e a mantém nela. Enquanto Schmitt se esforça ao máximo por reinscrever toda violência no contexto jurídico, Benjamin procura assegurar uma “Gewalt pura” além do direito, que possibilitaria à vida humana existir por si mesma sem submissão à violência institucional.

Esta tese de Benjamin aparece como o enigma da esfinge que, se não se decifra corretamente, te devora. Apelar para o conceito de reine Gewalt (poder ou violência pura) como recurso para defender a vida da violência e além do direito, resulta quase um aforismo délfico. Agamben chama atenção para o conceito puro (reine). Para Benjamin, o puro não reside na essência das coisas, mas na relação que as constitui: “não origem da criatura não está a pureza, mas a purificação”. O que desloca o debate sobre a diferença entre violência pura e violência mítica para uma relação com algo exterior. Tal relação foi delimitada por Benjamin no início do seu ensaio Por uma crítica da violência, quando afirma que a crítica da violência há de ser definida em sua relação com o direito e a justiça. Para o direito, a violência está sempre envolvida na lógica de fins e meios. Para o jusnaturalismo a violência se legitima pelo fim justo; para o positivismo a legitimidade da violência está nos meios pelos quais se torna legítima. Em ambos os casos, a violência é um meio para um fim: a defesa do direito e a ordem social. Nessa lógica a vida humana fica capturada pela ameaça da violência e portanto deve ser manter submissa ao direito e a ordem para não sofrê-la.

Vida enclausurada

Schmitt pretende enclausurar a vida no direito; pretende identificar o direito com ordem, sendo a decisão soberana quem estabelece e garante a ordem jurídica. Esta se baseia, em última instância, no dispositivo da exceção que tem por objetivo tornar a norma aplicável, suspendendo provisoriamente sua eficácia. Benjamin se propõe a pensar uma vida fora do direito, uma justiça não mítica nem contaminada pela lei, que ele denominará de justiça divina. Que justiça é esta e como pode se relacionar com uma violência pura que redime a vida de toda violência? A violência divina, sem dúvida, faz referência à relação implícita da teologia com a política. Algo que a modernidade sempre quer esconder ou pretende desconhecer. Os laços que vinculam ambas as dimensões são muito mais estreitos do que podemos imaginar. No caso que nos ocupa, a exceção jurídica, temos que realocar o debate no campo linguístico para entender seu real significado político e teológico.
A exceção opera como dispositivo jurídico político que suspende a lei deixando-a em vigor, porém sem validade. É uma lei sem valor mas que vigora. Ela tem uma vigência sem significado. Na exceção opera um dispositivo que reduz a lei a uma vigência sem significado. Os direitos estão formulados e se consideram vigentes, porém não têm validade porque estão suspensos. Ainda quando ocorre a exceção soberana, que anula toda ordem jurídica, opera um mecanismo inverso, a lei, que não existe mais (não vigora) porque foi anulada, tem validade plena no arbítrio da vontade soberana. Na exceção plena a vontade soberana é lei, nesse caso a lei que não vigora (porque não está formulada juridicamente) se aplica imediatamente no arbítrio soberano.

A lei que vigora sem significado é amplamente representada por Kafka em sua obra O processo. Uma lei vazia, que vigora como lei mas que não se aplica como solução para a vida. A fórmula da exceção que suspende a aplicação da lei, mantendo a sua vigência, atinge diretamente a vida humana. O que se suspende da lei é aquilo que favorece a vida humana, os direitos que possibilitam sua defesa e emancipação. É uma lei vazia, que reconhece os direitos, mas que não os aplica. Kafka denuncia tal vazio como elemento constitutivo do sistema jurídico e Benjamin o estende para a compreensão do direito como instrumento da imposição da ordem. A conexão desta problemática com a teologia aparece nítida na tese de São Paulo sobre a lei em relação à salvação e vida. A lei, para São Paulo, é um artifício que não consegue dar a plenitude da vida. Ela vigora sem significar. Representa um paliativo para a vida, porém a vida para atingir sua plenitude, a salvação teológica, terá que se libertar da lei. São Paulo, principalmente na carta aos Romanos, é enfático em afirmar que a lei existe como meio para culpar a vida. Sem lei não há culpa. A verdadeira vida existe além da lei.

Benjamin contra Schmitt se propõe a pensar uma vida além do direito, uma vida que não seja coagida pelo direito e que para viver em plenitude possa até prescindir do direito. Este é o verdadeiro estado de exceção que ele preconiza. A verdadeira exceção (uma exceção da exceção) dispensaria o direito porque o tornaria desnecessário. Agamben destaca que é neste sentido que Foucault também afirmaria a tese de que é necessário pensar um novo direito livre de toda disciplina e de toda relação com a soberania. Como pode ser pensada uma vida sem direito? Agamben destaca que esta questão foi explicitamente formulada primeiramente pelo cristianismo primitivo, e depois pela tradição marxista. O cristianismo primitivo, especialmente o pensamento de São Paulo, colocou a questão de viver numa ordem social (o império), porém com a urgência de pensar a nova ordem (a Parusia). Na nova ordem a vida humana estaria plenamente libertada da lei. É uma ordem pleromática em que a salvação se realiza pela plenitude da vida e por isso mesmo torna desnecessária a lei. A vida plena suspende definitivamente a lei. Seria o estado de exceção verdadeiro. São Paulo é ciente da tensão que supõe viver na ordem do império, com a lei, mas na expectativa da nova ordem da vida salva, sem lei. Por isso propõe uma relação agonística diacrônica com o império e a lei. Ele aconselha a todos os cristãos a viverem na ordem social numa tensão do já sim mas ainda não. Estar na ordem sem se acomodar a ela. Esta é uma formula política da compreensão messiânica da histórica. Na confiança de que a nova ordem virá, é necessário não se submeter docilmente à ordem do império. Para tanto São Paulo ainda formula que a melhor forma de tornar inválida a lei do império para os cristãos é superá-la com a vida. Os cristãos não devem se submeter às leis e serem obedientes porque estão decretadas; eles devem superá-las, ir além das leis, invalidá-las por práticas que as tornem fúteis e desnecessárias. Neste ponto São Paulo aposta no amor como prática que supera a lei. Ainda está por se desenvolverem as potencialidades políticas do amor como categoria que invalida a lei.

Um anão feio

Agamben destaca que foi na tradição marxista que esta problemática da verdadeira exceção tornou-se um problema político central. O ideal da sociedade comunista em que cada um dá segundo suas possibilidades e recebe segundo suas necessidades (fórmula literal das comunidades cristãs primitivas nos Atos dos Apóstolos) dispensa o Estado e seus dispositivos jurídicos de poder/violência (Gewalt). O anarquismo é a corrente política que mantém aceso o problema como um tema político de primeira ordem. Na tradição marxista o problema criado é que, para se chegar à sociedade sem classes, que dispensa a violência do direito, pensou-se numa fase de transição através da ditadura do proletariado.Justamente aquilo que se pretendia suspender, a exceção, é proposta com fórmula política. A ditadura do proletariado é o estado de exceção pensado de forma transitória, embora historicamente nunca realizou tal transição. O que tornou a exceção a regra de governo. O cristianismo viveu sua própria decepção, uma vez que, em vez de manter a tensão do já sim mas ainda não, proposta por São Paulo, assimilou-se à ordem imperial instalando-se dentro do poder com um aparato jurídico próprio.

Contudo, a tese que Benjamin se propõe a pensar sobre a possibilidade de uma vida além do direito remete diretamente às potencialidades teológicas da política. Há uma aposta messiânica de Benjamin que pensa a história como possibilidade de ruptura a qualquer momento. Ele define o messias como o instante em que a ruptura pode acontecer. Não se resigna a uma concepção mecânica do progresso histórico e pensa a história como acontecimento. O que abre a possibilidade de uma passagem para a justiça não é a anulação do direito, mas a sua atual desativação de modo que possa dar lugar a um outro uso. A justiça divina é a que consegue anular todo direito fazendo que a vida humana possa viver plenamente sem a violência da lei. A justiça divina é a exceção definitiva, a exceção da exceção. Ainda podemos pensar que se a exceção jurídica, tal e como a formula Schmitt, tem por objetivo suspender a vigência do direito para capturar a vida humana, não é a mera norma, que regula o que pode ou não ser feito, a que realiza a vida humana. Pelo contrário, a biopolítica moderna mostra que a norma é o instrumento pelo qual a vida é apreendida como objeto de adestramento utilitarista. A vida normatizada é controlada como recurso produtivo e governada como bem útil a serviço de outros fins. A exceção jurídica não se neutraliza com a norma, pois ambas capturam a vida humana, cada uma a seu modo, com o objetivo de instrumentalizá-la.
Embora Agamben não desenvolva o tema, cabe pensar na condição agônica do ser humano que lhe permite tensionar a realidade, aceitando sua contingência. Se a lei não é o que realiza a vida, a exceção é o dispositivo que permite condená-la a um controle extremo. Nesse caso, a potência teológico-messiânica da política a deixa inconformada com a submissão da vida à ordem jurídica e torna inaceitável a exceção como dispositivo de controle. Porém, cabe pensar em que a verdadeira exceção, aquela que torna desnecessário o direito para a vida, tem uma outra vertente prática na gratuidade. Os atos de gratuidade dispensam a lei. O que se faz de graça anula a norma que obriga a fazer. A gratuidade supera toda lei, suspende sua validade tornando-a desnecessária. As condutas de gratuidade desconhecem a lei porque sua relação não é com a norma mas com a vida. O específico da gratuidade é que não cumpre a norma que manda fazer algo; pelo contrário, relaciona-se diretamente com a vida do outro. O que se faz de graça tem como referência direta a vida e não a lei. A lei não pode mandar fazer de graça. A graça é que invalida toda lei. Ao agir por e com gratuidade tem-se como referência a relação com o outro, sua realização. A lei que pretender normatizar a gratuidade a anulará. A essência da gratuidade é a dispensa total da norma e do direito. A vida que se realiza pela gratuidade realiza-se além do direito. De alguma forma implementa a plenitude do direito porque o dispensa, o torna desnecessário. Na medida em que a gratuidade diminui, o direito aumenta. Quanto menos gratuita é uma ação, mas tem que ser normatizada. A suspensão do direito pela gratuidade é o ato de poder (Gewalt) supremo que não nega vida, mas que a realiza. O poder da gratuidade é superior ao do direito no que se refere à realização da vida humana. Isso torna o poder (Gewalt) da graça um poder puro porque está em relação à vida humana, a vida do outro.

Talvez este breve exemplo possa nos mostrar que as potencialidades políticas da teologia não estão ainda totalmente exploradas. Remetemos à metáfora que Benjamin utiliza em sua I Tese sobre o conceito de história, em que representa a teologia como um anão feio e escondido debaixo do tabuleiro da história, que ninguém vê, mas que maneja os fios da política. O objetivo da teologia na política não é sedimentar a ordem jurídica que normatiza a vida, mas pensar a possibilidade de uma vida política que se realiza além da normatização biopolítica ou do controle violento da exceção jurídica.   

Leia mais...

Castor Ruiz já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line:

* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011;

* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011;

* “O campo não foi inventado pelos nazistas. Eles só levaram a suas últimas consequências a figura política da exceção”. Notícias do Dia 26-07-2011;

* Esquecer a violência: uma segunda injustiça às vítimas. Notícias do Dia 17-04-2011;

* Alteridade, dimensão primeira do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 334, de 21-06-2010;

* A exceção jurídica na biopolítica moderna, Revista IHU On-Line, edição 343, de 13-09-2010;

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