Edição 374 | 26 Setembro 2011

A função-educador e a educação desviante

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Márcia Junges

Barrar a singularidade dos sujeitos é o principal empecilho para constituir sujeitos ativos, emancipados e críticos, acentua Alexandre Filordi. “Vestibularização” da existência precisa dar lugar a uma educação que dê voz às discursividades marginais e infames, como diria Foucault

Foucault e a função-educador. Sujeição e experiências de subjetividades ativas na formação humana (Ijuí: Unijuí, 2010)

“Dar voz às discursividades que são marginais, pontuais, específicas e, como diria Foucault, infames nos vários contextos da experiência com a educação”. É isso que pretende a função-educador, explica Alexandre Filordi, na entrevista que concedeu por Facebook à IHU On-Line. Em sua opinião, um dos grandes desafios enfrentados atualmente pelos educadores é “abrir mão de seus dogmas, tanto epistêmicos como empíricos. Vivemos um momento de intensa ruptura de práticas e de referências, dada a intensidade das transformações tecnológicas, sociais, simbólicas”. Aperceber-se das subjetividades dos educandos é um dos primeiros passos do educador na condição de função-educador para não “planificar, hierarquizar, comparar ou disciplinarizar os comportamentos, as atitudes, as posições intelectuais”, frisa. E completa: “Toda prática pedagógica que questione, que indague e que se interponha a qualquer estratégia normativa é desviante. A norma fixa os alvos. Ela é uma concepção a priori das prioridades. É a ‘vestibularização’ da existência”.

Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul – SPS, em Campinas, e em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Filordi é um dos integrantes do Grupo de Estudos sobre Diferenças e Subjetividades – DiS/Unicamp. Cursou mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, doutorado em Filosofia pela USP e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp com a tese Da sujeição às experiências de si na função educador: aproximações foucaultianas. Docente de Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, possui diversas publicações em revistas especializadas e capítulos em livros organizados com temáticas foucaultianas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pode ser definida a função-educador em Foucault?

Alexandre Filordi – Inspirada na noção função-autor de Michel Foucault, a noção função-educador pretende ser um intercessor, no sentido que Deleuze  propõe, para se pensar, tanto conceitualmente como nas experiências com a educação, modos de educar que intercedam por uma produção de subjetividade ativa. Isto quer dizer que a função-educador tenta convidar os educadores a se colocarem na posição de rompimento com as séries de jogos sujeitantes que silenciam as potencialidades das diferenças e das singularidades dos educandos. Procura também não bloquear possibilidades de acontecimentos na educação, pois a função-educador é antinormativa. Acontecimento é toda dinâmica que quebra com um estado pré-definido e pré-desejado de finalidades. Assim é possível produzir acontecimentos com o pensamento, com as ações, com a organização do trabalho pedagógico, etc. O acontecimento é da ordem da criação do novo. Finalmente, apesar de não pretender inaugurar nenhuma discursividade original, como faz a função-autor, a função-educador pretende dar voz às discursividades que são marginais, pontuais, específicas e, como diria Foucault, infames nos vários contextos da experiência com a educação. Em outras palavras, a função-educador pretende ser um diagnóstico das múltiplas maneiras de se educar, de forma a não reproduzir condições de sujeições quando se ensina, se educa e se constrói uma relação intersubjetiva entre quem educa e quem é educado.

IHU On-Line – Em que aspectos um educador é, também, um aprendiz de si?

Alexandre Filordi – Na medida em que um educador, na posição da função-educador, toma consciência de que cada subjetividade deve ser respeitada em sua singularidade, as suas ações empíricas não vão no sentido de planificar, hierarquizar, comparar ou disciplinarizar os comportamentos, as atitudes, as posições intelectuais, por exemplo. Mas para tanto, ele deve perceber que isto se deve ao próprio fato de ele possuir uma subjetividade que lhe é singular. Ver-se como um sujeito ativo é notar que o seu modo de ser deve ser respeitado. Se ele aprende isso consigo ele se torna um aprendiz de si. E, talvez, seja nesta proporção que ele opere no sentido de não querer bloquear a subjetividade de outrem.

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios dos educadores dada a conjuntura tecnológica crescente, inclusive nas práticas pedagógicas, como em experiências do tipo do Ensino a Distância – EAD, por exemplo?

Alexandre Filordi – Creio que um dos maiores desafios dos educadores na atualidade é o de abrir mão de seus dogmas, tanto epistêmicos como empíricos. Vivemos um momento de intensa ruptura de práticas e de referências, dada a intensidade das transformações tecnológicas, sociais, simbólicas, etc. Na função-educador, somos convidados a atentar paras as rupturas históricas das quais fazemos parte e, ao mesmo tempo, produzimos. Não é nos portando como “apocalípticos”, como diria Umberto Eco , que poderemos avançar no sentido de experimentar o novo. É nos integrando àquilo que passa a compor as dimensões condicionantes de nosso próprio modo de ser neste tempo, nesta sociedade, nesta história. Se precisamos mudar algo em nossa sociedade, precisamos usar também as ferramentas que são produzidas nela e por ela.

IHU On-Line – Como podemos compreender o aprendizado na construção coletiva do conhecimento? Estão borrados os limites entre o educador e o educando? Podemos falar numa construção-desconstrução do conhecimento tradicionalmente concebido?

Alexandre Filordi – É difícil mapear o que é uma relação de educação tradicionalmente concebida. Talvez, numa breve virada de tempo social, tudo o que façamos hoje pode se tornar tradicional, no sentido ao que se opõe ao mais emergente ou ao mais novo. Parece-me que a questão atual é de referência. Os espaços virtuais, como bem apontou Pierre Lévy , são mais “reais” do que supomos. Neles há uma concepção de construção coletiva do conhecimento que não se pode ignorar. Apesar disto, esta espacialidade está incorporada à nossa tradição atual de se pensar, de se mover, de se relacionar e de visar o mundo. A meu ver, esta dimensão não borra certo limite entre o educador e o educando, mas inaugura outra espacialidade, outra perspectiva, outra dimensão de experiência, que deve e pode ser explorada. Imaginemos nós como deve ser cansativo para um aluno, estimulado o tempo todo por uma oralidade e uma riqueza pictórica totalmente dinâmica, acompanhar uma aula esboçada no fundo verde monótono de uma lousa. Isso não é pouca coisa!

IHU On-Line – O que é uma educação heterotópica? Em que medida ela é possível?

Alexandre Filordi – Uma educação heterotópica é aquela que permite uma circulação de experiências de aprendizagens, de constituição de subjetividades, de relação com o conhecimento e de posicionamentos de comportamento que não sejam estritamente normativos. O heteros é tudo o que assinala para a diferença em certos topoi, ou seja, em certos lugares. Uma das maiores dificuldades que a educação formal tem, a meu ver, é a de respeitar os mais diferentes lugares dos sujeitos na instituição escolar, que é essencialmente normativa e disciplinarizadora.

IHU On-Line – Numa sociedade ao mesmo tempo tão livre e tão controlada quanto a nossa, quais são os maiores desafios em se constituir sujeitos ativos, emancipados e críticos?

Alexandre Filordi – Esta questão se relaciona com a possibilidade de uma educação heterotópica. O que mais impede, a partir da educação escolar, portanto institucional, a constituição de sujeitos ativos, emancipados e críticos, a meu ver, é a barragem das singularidades dos sujeitos. Talvez precisemos repensar o que venha a ser “organização” na escola, prestar “atenção”, “comportar-se”. O medo de errar, tão presente nos modos pelos quais se educa, muitas vezes contribui para a posição de um sujeito barrado, inseguro, com temor de se expor. Na posição heterotópica, consideraríamos distintas maneiras de conceber os lugares e as posições dos sujeitos em qualquer forma de educar, o que vale tanto para quem educa para quem é educado. É por isto, também, que o educador necessita se tornar um aprendiz de si; indagar-se o tempo todo: “quando faço algo visando uma finalidade, o que é que estou a reproduzir?”. Não seria isto que está em jogo?

IHU On-Line – Em que aspectos é possível haver práticas pedagógicas desviantes? O que elas trariam de novidade ao ensino e à autonomia do sujeito?

Alexandre Filordi – Toda prática pedagógica que questione, que indague e que se interponha a qualquer estratégia normativa é desviante. A norma fixa os alvos. Ela é uma concepção a priori das prioridades. É a “vestibularização” da existência. Desviar é permitir, como sugeriu Guattari , um “caos criativo”, ou seja, é quebrar as serializações, as redundâncias, os esquematismos repetitivos; é abrir o cotidiano para o impensado, para um devir sem barreira. As escolas são estruturas em rituais extremamente conhecidos e previsíveis. É muito penoso aprender algo novo por fórmulas que se repetem ad nauseam. A pergunta que temos de fazer é a seguinte: o que mudou na escola dos nossos avós, de nossos pais, para esta de nossos filhos, em termos de práticas pedagógicas?

Leia mais...

Alexandre Filordi
já publicou artigos na IHU On-Line

* Foucault e a questão da crítica em torno da biopolítica. Artigo publicado na edição 203 da revista IHU On-Line, de 06-11-2006;
* Do gozo Ubu ao gozo degenerado: a afirmação de sexualidades heréticas a partir de Foucault. Artigo publicado na edição 335 da revista IHU On-Line, de 28-06-2010.

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