Edição 374 | 26 Setembro 2011

A síntese e a vivência de quatro razões

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Márcia Junges

Obra de Lima Vaz está enraizada nas tradições clássica e escolástica, além de se confrontar com temas da filosofia moderna, em autores como Kant e Hegel, principalmente, aponta Marly Carvalho Soares

“Um coração de homem, uma mente de filósofo e um espírito de Deus”. Essa é a definição de Marly Carvalho Soares sobre o mestre e amigo Henrique Cláudio de Lima Vaz, de quem foi orientanda. “Indivíduo histórico”, o jesuíta “soube perscrutar a história sem desfalecer diante das irracionalidades que ora campeiam os rumos da nossa civilização invadida por uma onda de violência e de ceticismo”. Seu maior legado foi “a síntese e a vivência de quatro razões que foram configurando os caminhos da sua existência: a razão escatológica, a razão teológica, a razão mística e a razão filosófica”, aponta. A pesquisadora comenta, também, o diálogo entre o sistema vaziano e a tradição clássica e escolástica, além da resolução da aporia kantiana entre o empírico e o racional, o natural e o transcendental: “O âmago dessa aporia é ter colocado o sujeito como causa sui, suprimindo qualquer comunidade analógica com o Absoluto transcendente, colocando sobre a pessoa humana o enorme peso ontológico de ser a criadora de si mesma e de seu mundo de verdade e de bem, dos valores e dos fins”. A respeito da influência de Hegel no pensamento de Lima Vaz, Marly observa: “Em Hegel, Lima Vaz identifica tanto a validade e o uso do procedimento dialético como o renascer de um novo paradigma no pensamento ocidental, considerando-o, por isso mesmo, um clássico inaugural”.

Marly Carvalho Soares é professora titular da Universidade Estadual do Ceará – UECE. É graduada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza, em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas e em Pedagogia pela UECE. Na Universidade Federal do Ceará – UFC cursou especialização em Filosofia Política, e na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, realizou mestrado em Filosofia com a tese Direito e sociedade civil segundo Hegel (2ª ed. Fortaleza: EdUECE, 2009), sob orientação de Lima Vaz. Doutorou-se em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoria – PUG, em Roma. Escreveu O filósofo e o político segundo Éric Weil (Roma: Editrice Gregoriana, 1993).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual o maior legado deixado por Lima Vaz?

Marly Carvalho Soares – O maior legado de Lima Vaz foi a síntese e a vivência de quatro razões que foram configurando os caminhos da sua existência: a razão escatológica, a razão teológica, a razão mística e a razão filosófica. Isto é, todo o seu ser foi plasmado por um Absoluto humano e divino que permeou o seu refletir e o seu agir, dando-lhe um coração de homem, uma mente de filósofo e um espírito de Deus. A razão escatológica, porque sempre viveu para o reino definitivo, afastando do homem a tentação de absolutizar o mundo criado e sensível. A razão teológica, enquanto optou pelo primado do Absoluto no seguimento de Jesus Cristo. A razão mística, enquanto fez de sua vida um ato contínuo de liturgia numa doação livre na missão da Igreja, na ação popular e no exercício de seu magistério nas várias universidades e institutos de formação. Enfim, a razão filosófica, que a fez brilhar, apesar da sua modéstia e despretensão, no horizonte acadêmico de debates, diálogos, investigações e pesquisas numa constante busca de verdade conciliando a história e a transcendência. Todo o seu labor filosófico-teológico foi perscrutar e investigar as coordenadas do encontro do universo natural-humano com o Absoluto.

IHU On-Line – Como podemos compreender a antropologia e a ética na filosofia desse pensador?

Marly Carvalho Soares – Reconhecemos que a melhor contribuição filosófica de Lima Vaz nos foi dada no campo da metafísica, da antropologia e da ética quando une estas três disciplinas com o intuito de fundamentar e buscar orientações para implantar uma nova humanidade centrada numa nova subjetividade criadora e numa outra sociedade, proporcionando assim o aparecer de uma globalização humanizadora, cujo objetivo é desvendar o fenômeno e o mistério da pessoa humana e construir uma comunidade ética. O cerne da questão gira em torno de recuperar certa ideia unitária do ser humano que foi posta em crise com o desenvolvimento das chamadas ciências do homem e com as profundas modificações sofridas desde então pelas sociedades ocidentais. O fenômeno humano pode ser reduzido somente à natureza material, ou por outro lado, acentuando o ser cultural, ou ainda um puro sujeito?
No movimento do pensamento vaziano há uma interconexão da antropologia, da ética e da metafísica, formando uma unidade ontológica na qual o ser humano possa estabelecer uma conexão na sua estrutura, nas suas relações e realizações em busca de uma totalidade de sentido na globalidade da vida. De tal maneira que a ideia de indivíduo seja superada pela ideia de pessoa, que é um conjunto de presenças: das coisas, do outro e do espírito. Daí que a estrutura do ser do homem se mediatiza através de três componentes que numa construção dialética integra o ser homem na sua individualidade, ou seja, no seu ser em si: a categoria da corporeidade, a categoria do psiquismo e a categorial do espiritual. Na dialética das relações que constitui o espaço de abertura do ser humano à realidade na qual se encontra situado: na esfera da relação de objetividade (ser-no-mundo), na esfera da relação de intersubjetividade (ser-com-o outro) e na esfera da relação de Transcendência (ser-para-o-Absoluto).

IHU On-Line – Em que aspectos Lima Vaz dialoga com a tradição filosófica, sobretudo com os idealistas, como Kant  e Hegel?

Marly Carvalho Soares – O diálogo com a tradição clássica e escolástica é uma constante no pensamento de Lima Vaz, o que influenciou o caráter sistemático do seu modo de pensar filosófico e onde ele reflete os fundamentos do saber ético. Podemos constatar esta afirmação tanto em seu percurso biográfico como em seu percurso filosófico. Inicialmente dedicou-se com afinco à leitura do Comentário de Santo Tomás à metafísica de Aristóteles, e posteriormente, O problema da beatitude em Aristóteles e Santo Tomás, na qual fez uma releitura da Ética a Nicômaco e das primeiras questões da Secunda Secundae, de S. Tomás de Aquino. Com efeito, em todo o seu discurso, Lima Vaz vai interagindo com a Ética a Nicômaco, reatualizando, assim, a tradição socrático-platônica em que a práxis é analisada não segundo a contingência da physis, mas conforme o finalismo imanente da razão (logos) e, com Tomás de Aquino, pela síntese que fez entre a ética grega e a ética cristã que marcou determinantemente essa cultura como uma cultura ética, em seguida, De Dialectica et Contemplatione in Platonis Dialogis (Sobre a contemplação e a dialética nos diálogos de Platão), na qual tratou do problema das relações entre intuição e dialética das ideias, destacando o caráter profundamente intelectual da contemplação platônica e interpretando a nóesis em Platão como “um resultado intrinsecamente ligado ao caminho dialético, e não como uma intuição inefável e quase mística”. Com efeito, esses três filósofos destacaram-se na história da filosofia pela importância de seus pensamentos na construção simbólica da civilização ocidental, até o advento da modernidade.

Diálogo com Kant

A vinculação à metafísica clássica e tomista, no entanto, não lhe inibiu o interesse pelo pensamento moderno que emerge no espaço mental da Ilustração guiada pelas ideias diretrizes codificadas nas palavras: humanidade, civilização, tolerância e revolução, onde o homem ocupa o centro e irradia as linhas de inteligibilidade de toda a realidade. Nasce, assim, a antropologia como ciência do homem que engloba os vastos campos de investigações e sistematizações que se desenvolveram no século XVII. Sua investigação filosófica passa a concentrar-se mais efetivamente na apropriação de elementos significativos da filosofia moderna, através do estudo de seus principais representantes, cujo maior expoente será Kant, reconhecendo os seus questionamentos e, sobretudo, os de caráter metodológico e prático.
Na passagem da Idade Clássica para os tempos modernos, o fundamental não é uma mudança nos termos do pensamento filosófico, mas, acima de tudo, uma transformação na própria forma de pensamento, ou seja, no horizonte a partir do qual se move esse pensamento, o que significa uma reviravolta fundamental na compreensão do sentido da realidade e, consequentemente, na compreensão do homem. O conhecimento, a sociedade e a história começam a ser vistos como produtos da subjetividade: objetos da sua teoria e da sua ação.
Além dessa nova forma de pensar, Lima Vaz continua a investigar as duas linhas de desenvolvimento da concepção kantiana do homem, que ele chama: uma linha propriamente antropológica, cujo objeto é o estudo empírico do homem e outra linha, considerada crítica, que abrange as três atividades superiores do homem: a razão teórica, a razão prática e a faculdade de julgar, remodelando a imagem do homem transmitida pelo racionalismo clássico. Essa separação, ou seja, uma base empírica do homem objeto da antropologia e outra que pretende definir a essência verdadeira do homem faz com que essa ciência seja subordinada à Metafísica dos costumes ou à ética. São dois planos epistemológicos sobre os quais se edifica a concepção kantiana do homem: o plano de uma ciência da observação que utiliza o procedimento analítico para unificar os dados da observação por meio de uma teoria das faculdades; e o plano de uma ciência a priori que situa no campo da ética ou da Metafísica dos costumes a possibilidade de determinação da essência do Homem (Vaz, 1991, p. 97).

A ideia do homem em Kant pode ser considerada uma síntese construída pela linha da estrutura sensitivo-racional, que acompanha o homem como ser cognoscente, cujo resultado é o desenvolvimento da relação entre “ser da natureza”, situado no espaço-tempo do mundo, e do ser racional, capaz de formular o ideal da Razão pura e as ideias transcendentais: (o mundo, a alma e Deus); a linha da estrutura físico-pragmático-prática que acompanha o homem como ser natural ou mundano, designando aqui o que a natureza opera no homem e o que o homem faz de si mesmo, e prática que acompanha o homem como ser livre e capaz de responder, fundando-se no fato da razão e a linha da estrutura histórica ou do destino do homem que obedece as duas direções fundamentais: religiosa que aponta para o fim último do homem, onde se apresenta a doutrina sobre o mal radical e sobre sua superação pelo princípio do bem, e apresenta as condições para a implantação do reino de Deus na terra; e a pedagógica-política, que Kant desenvolveu nos seus numerosos opúsculos sobre a filosofia da história, política e pedagógica, em que aparece a formação do indivíduo, a educação da humanidade, o regime político e a liberdade no indivíduo e na comunidade exposta na Metafísica dos costumes.

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