Edição 373 | 12 Setembro 2011

Cidadania: caminho para a concretização das igualdades sociais

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Graziela Wolfart, Rafaela Kley e Thamiris Magalhães

A cidadania se concretizará quando os direitos e deveres dos indivíduos forem transformados em mecanismos de proteção social às necessidades sociais, afirma Sonia Fleury

“A ideia da cidadania supõe uma inserção dos indivíduos na esfera pública através de um conjunto de direitos e deveres e de benefícios que se transformam na área social em benefícios sociais.” A afirmação é de Sonia Fleury. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, a pesquisadora afirma que “a cidadania é um principio de igualdade”. E completa: “na medida em que se criam sistemas libertários de política para que todos possam ter, de acordo com a sua situação, acesso a esses benefícios, há uma materialização da cidadania. A ideia da igualdade é aquela de que, diante da lei, as pessoas terão direitos e deveres conformados e que isso se transformará em mecanismos de proteção social para as necessidades sociais, de acordo com as políticas públicas”. Essas seriam, segundo Fleury, formas de materialização da cidadania. “É claro que ela envolve um componente físico, que é o componente da cidadania participativa em ação. No caso da sociedade brasileira, nós inovamos muito em relação à concepção de cidadania tradicional”, diz. 

Pesquisadora na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Sonia Fleury é doutora em Ciência Política e mestre em Sociologia pelo IUPERJ, além de bacharel em Psicologia pela UFMG. Membro da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), no período de 2006 a 2008. Pesquisadora Titular Aposentada (1995) da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, onde coordenou centro de pesquisas em políticas e reformas de saúde. Foi presidente do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (CEBES), na gestão 2006-2009.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como pode ser caracterizada a Seguridade Social no Brasil hoje?

Sonia Fleury – Desde a Constituição de 1988, houve uma mudança muito grande na maneira de tratar a proteção social no Brasil. Até esta Constituição, os direitos previdenciários e o direito à saúde eram ligados à condição de trabalhador no mercado formal. Não havia cobertura para quem não estava no mercado formal. O direito social era ligado à condição de trabalho. Não existia nem na Constituição um capítulo “ordem social”. Os direitos trabalhistas apareciam como direito social dentro da ordem econômica. Não estavam ligados à condição universal de cidadania. Então, a primeira grande mudança na Constituição é criar um capítulo específico da ordem social, em que entram várias questões, como a seguridade social, o ambiente, a educação e outras que fazem parte da área social. Essa foi uma grande mudança no sentido de ter no mesmo grau de importância a ordem social e a ordem econômica. A segunda mudança é que os direitos sociais passam a ser vinculados não à condição de trabalho, mas à condição de ser cidadão. E isso na seguridade social, que reuniria ações integradas de saúde, previdência e assistência. A assistência não constava das constituições brasileiras, com exceção da de 1934, mas como cuidado com os desvalidos e não como direito de cidadania. Pela primeira vez, a assistência entra como direito de cidadania. Há uma universalização dos direitos e uma integralidade da atenção. É claro que a previdência é diferente da saúde e da assistência, porque na previdência há uma contribuição ou da própria pessoa ou de outro por ela. No caso da saúde, isso não é necessário, pois ela é totalmente integral, e no caso da assistência é preciso que a pessoa prove que ela não tem condições de se sustentar; há uma série de requisitos para que ela receba os benefícios. Mas todos esses três estão hoje ligados à condição de cidadania com a perspectiva de universalização. Então, desvincula a ideia de que o beneficio social é só daquele que já pagou por ele. É claro que a política social tem um custo e alguém tem que pagar, mas na seguridade social se diz que não precisa ser a própria pessoa a pagar. A sociedade como um todo vai se solidarizar para isso.

IHU On-Line - Em que medida a Seguridade Social auxilia na diminuição da pobreza e das desigualdades sociais?

Sonia Fleury – Em primeiro lugar, o fato de que foi estabelecido na Constituição que nenhum benefício poderia ser menor do que salário mínimo. Antes, tínhamos benefícios, como os rurais, que eram ¼ do salário mínimo. Este, por exemplo, foi multiplicado por quatro a partir da Constituição. O atrelamento dos benefícios ao salário mínimo reduziu muito a pobreza no meio rural no Brasil. Nos últimos anos, o salário mínimo está crescendo acima da inflação. E toda vez que isso acontece temos mais redistribuição através de todos os benefícios sociais que são atrelados ao salário mínimo, como grande parte das pensões, das aposentadorias e também dos benefícios assistenciais como, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Este não é um programa de governo igual ao Bolsa Família. Ele é um benefício de direito de cidadania. Há uma diferença entre programas e direitos. O BPC é um benefício que tem condições muito restritas. As pessoas que se enquadram nas exigências podem automaticamente pleitear o BPC. A partir daí surgiram várias outras políticas, que são mais focalizadas, são programas, não ligados a sistemas universais. No caso da saúde, surgiu o programa Saúde da Família, focalizado em certas áreas, mas que se inclui dentro de um sistema universal. E apareceu toda essa política de combate à pobreza através de vários programas que depois foram unificados no programa Bolsa Família. Nesse caso, a condição para ingresso, para ter acesso, é uma renda familiar de até meio salário mínimo. As condições de ingresso são muito melhores do que o BPC, mas as condições do beneficio são muito piores, porque o valor máximo não alcança a metade do salário mínimo. Além disso, o Bolsa Família não é um direito constitucional. Se mudar de governo, se mudar de programa, pode acabar. Então, a partir das características da seguridade social que apontei, a pobreza foi particularmente reduzida, principalmente, pela aposentadoria rural, pelo fato de que os benefícios são atrelados ao salário mínimo, pelo valor crescente do salário mínimo, pelo BPC e pela Bolsa Família.

IHU On-Line – Podemos afirmar que a Seguridade Social é uma concretização da participação política da sociedade?

Sonia Fleury – A seguridade social, do ponto de vista da democracia, além dos benefícios, fez duas mudanças fundamentais no desenho do sistema político brasileiro, portanto, da institucionalidade democrática brasileira. A primeira é um pacto federativo. É a primeira vez, a partir da seguridade social, que se cria um modelo pactuado de federalismo, através de comissões bipartites, tripartites, em que os três níveis de governo deverão negociar e pactuar as relações entre os poderes da federação. Este é um novo desenho importante da democracia brasileira e de participação também, porque é uma forma de participação dos poderes subnacionais nas decisões do poder nacional. Há uma questão da participação que é relativa no interior do estado, do nível central para o nível local, envolvendo o nível estadual e como eles vão interagir através de fóruns que foram criados para a negociação. Esse é um modelo de participação intergovernamental. Outra coisa é o modelo de participação entre Estado e sociedade, que também foi criado na seguridade social através de dois mecanismos: a criação de conselhos em todos os níveis de governo nas políticas sociais e a criação das conferências. O mecanismo do conselho é um modelo institucionalizado de participação através de uma representação da sociedade civil e do Estado no processo de controle social e o outro modelo das conferências, que é mais de mobilização social, para a discussão de certos temas e para a criação de uma agenda política nova para o governo vinda de uma discussão com a sociedade. São inovações muito importantes em termos de concretizar a participação. No entanto, essa participação não segue o modelo deliberativo, que supõe que as decisões tomadas nessas instâncias obrigatoriamente deveriam ser transformadas pelo governo em políticas públicas. Não é o caso. O orçamento participativo é um modelo deliberativo de participação, ou seja, a partir daquelas decisões é que se mostra como vai ser aplicado e o governo segue aquilo à risca. No caso dos conselhos, há um debate, a aprovação de contas, uma série de prerrogativas que a lei concede aos conselhos, mas não é deliberativo no sentido de que a decisão tomada pelos conselhos seja necessariamente vinculante a uma dada política pública.

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