Edição 196 | 18 Setembro 2006

Os jesuítas e as ciências

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IHU Online

O padre jesuíta português Alfredo de Oliveira Dinis é diretor da Faculdade de Filosofia de Braga, Portugal, desde junho de 2005, e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências Cognitivas. É licenciado em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e em Filosofia e Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga É mestre pela Universidade de Cambridge (Inglaterra) com a dissertação Heliocentrism and the Bible from Copernicus to Galileo, e doutor pela mesma universidade com a tese The Cosmology  of Giovanni Baptista Riccioli.

Entre seus livros publicados, citamos Para Onde vai a Cultura Portuguesa? (org.). Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 2001 e Consciência e Cognição (co-organizado com J.M. Curado). Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 2004.

Confira, a seguir, a entrevista que Dinis concedeu, por e-mail, para a IHU On-Line, adiantando o tema que desenvolverá no Seminário Internacional A Globalização e os Jesuítas, que acontecerá na Unisinos ,de 25 a 28 de setembro. No evento, ele falará sobre a Contribuição da Companhia de Jesus para a renovação científica da Idade Moderna.

IHU On-Line - Qual e o papel do cristianismo e da Companhia de Jesus no surgimento da modernidade?

Alfredo Dinis
- A idéia geral muito difundida, sobretudo desde o processo instaurado pot Galileu  no século XVI, é a de que o cristianismo, em geral, e a Companhia de Jesus, em particular, não só em nada contribuíram para o surgimento da modernidade como ainda se opuseram decididamente a ela, defendendo a tradição filosófico-teológica herdada da Idade Média e, com base nela, lutando contra tudo o que fosse inovação quer em filosofia, quer em teologia, quer ainda em questões científicas que contrariassem aquela tradição.

Nas últimas duas décadas, tem havido uma significativa mudança desta perspectiva, sobretudo porque se começou a refazer a história do início da modernidade com base na leitura direta de textos filosóficos, teológicos e científicos até há pouco tempo ignorados. Além disso, um conhecimento mais objetivo e isento de preconceitos ideológicos do contexto cultural da Europa do Renascimento permitiu compreender que a situação intelectual dos cristãos, em geral, e dos jesuítas, em particular, era muito mais complexa e diversificada do que se acreditou durante séculos. É verdade que a Igreja Católica se encontrava em situação de ruptura com a corrente protestante, e isso criou nela um clima defensivo de oposição a idéias inovadoras em geral. Mas este clima teve mais a ver com posições oficiais do que com a prática de muitos católicos individualmente considerados.

A relação com o protestantismo

Os protestantes aparecem neste contexto como mais abertos e modernos, dado que defendiam, por exemplo, a liberdade individual de cada cristão poder ler e interpretar diretamente a Sagrada Escritura sem necessidade de obedecer à interpretação oficial de qualquer igreja. No entanto, as principais autoridades do protestantismo, a começar por Lutero, opuseram-se à idéias inovadoras no campo científico, como o heliocentrismo proposto por Copérnico. Apesar disso, os grandes nomes dos fundadores da modernidade (Copérnico , Kepler , Galileu, Descartes , Newton  etc) eram todos cristãos, católicos e protestantes, e nunca consideraram que a ciência nascente se opunha ao cristianismo. É evidente que, quando se fala de fundadores da modernidade, não se pode, de modo nenhum, desvalorizar a importância de muitos intelectuais, entre os quais muitos jesuítas, que contribuíram com o seu trabalho para que esses fundadores emergissem. Também neste aspecto tem havido uma grande mudança no modo de compreender os inícios da modernidade. Os intelectuais deste tempo estavam em contato permanente entre si, quer por meio de publicações e correspondência, quer por meio de contatos pessoais. Galileu é, a este respeito, um caso paradigmático, uma vez que manteve intensos e constantes contatos com os seus contemporâneos que conduziam investigações no campo científico, entre os quais os jesuítas. Este fato só recentemente começou a ser conhecido, sobretudo a partir de estudos de William Wallace , Ugo Baldini , Edward Grant e Mordechai Feingold, entre outros.

IHU On-Line - Em que sentido Inácio de Loyola contribuiu para que fosse possível encarar a crítica e a mudança de concepções tradicionais no intuito de chegar a uma inovação na construção do saber?

Alfredo Dinis
- Inácio de Loyola fundou a Companhia de Jesus num ambiente de defesa da Igreja Católica contra a corrente Protestante. Os jesuítas deveriam estar disponíveis para as missões que o Papa lhes quisesse confiar. Isso teve certamente. uma influência considerável no modo como Inácio de Loyola concebeu a nova ordem religiosa. No entanto, essa influência não se verificou apenas num sentido conservador. Antes de tudo, ele criou uma nova forma de vida religiosa. Precisamente porque deveriam estar constantemente disponíveis para partir em missão, os jesuítas não celebravam em comum a Liturgia das Horas , uma inovação que levantou na época não poucas resistências. Entretanto, não só o próprio Inácio de Loyola estudou sete demorados anos na Universidade de Paris, como determinou que a formação dos jesuítas tivesse uma consistente estrutura intelectual. Os jesuítas necessitavam ter uma formação sólida não só em filosofia e em teologia como também em ciência, não apenas para poderem defender mais eficazmente a Igreja Católica e desempenharem as missões que o Papa lhes confiasse, mas também para lecionarem nos colégios que começaram a ser fundados em crescente número, desde o início da Companhia de Jesus, com a aprovação do seu fundador. O Colégio de Jesus em Coimbra foi um dos primeiros a ser fundado, em 1542. O Colégio Romano, hoje Universidade Gregoriana, foi fundado em Roma, em 1551. Neste Colégio, teve Galileu importantes contatos com os Jesuítas com os quais manteve também uma assídua correspondência. Empenhados em missões que exigiam uma sólida formação intelectual, os primeiros jesuítas estavam, por isso mesmo, em contato com as idéias inovadoras da época.

As Constituições da Companhia

Nas Constituições da Companhia de Jesus, redigidas por Inácio de Loyola, várias passagens determinavam que os jesuítas não se afastassem da filosofia de Aristóteles  nem da teologia dos Padres da Igreja  e de S. Tomás de Aquino. No entanto, essas mesmas passagens referiam que a fidelidade à tradição devia ser mantida tanto “quanto possível”, prevendo que os jesuítas se afastassem de algum elemento tradicional sempre que houvesse razões suficientes para isso. Esta flexibilidade introduzida por Inácio de Loyola nas Constituições marcou, desde o início da Companhia de Jesus, um estilo de fidelidade à tradição e, simultaneamente, de abertura à mudança, o que tornou possível que eles discutissem livremente idéias novas e fizessem opções nem sempre convergentes. A necessidade de estabelecer no interior da Companhia de Jesus uma censura prévia aos livros a serem publicados, se por um lado significa que a liberdade de expressão dos jesuítas era limitada, testemunha, por outro lado, que existiam, de fato, membros da Companhia de Jesus que se aventuravam a discutir e, por vezes, a defender idéias novas.

IHU On-Line - Como acontece o diálogo fé e ciência na Companhia de Jesus? Ele faz parte do carisma de Inácio?

Alfredo Dinis
- O diálogo fé e ciência começou praticamente desde o início da Companhia de Jesus, tendo como primeiro ponto de referência o Colégio Romano. Ali se ensinava e discutia filosofia, ciência e teologia. As implicações teológicas do sistema heliocêntrico, por exemplo, eram bem conhecidas dos jesuítas que ensinavam no Colégio, o mais célebre dos quais foi Cristóvão Clávio . Não só o movimento da Terra, como também as manchas solares, as montanhas na Lua e os satélites de Júpiter, levavam a uma profunda revisão da cosmologia geocêntrica herdada da Idade Média. Dado porém que a cosmologia estava intimamente relacionada com pressupostos e concepções metafísicas e teológicas, incluindo o modo como eram interpretadas algumas passagens bíblicas relacionadas com a natureza, os jesuítas estavam muito empenhados na discussão das implicações que tinham para a fé as novas propostas vindas sobretudo do campo científico. Essas implicações levavam a pôr em causa o sistema cosmológico-metafísico-teológico herdado da Escolástica. Nos contactos que tiveram com Galileu até ao primeiro processo que lhe foi movido, os jesuítas não lhe manifestaram, porém, qualquer oposição significativa. Esta posição mudou um pouco depois da condenação de Galileu, no segundo processo, mas houve sempre jesuítas que aceitaram o sistema galilaico, embora nem sempre o tenham expresso publicamente. Outros jesuítas afirmaram nas sua obras que o heliocentrismo contradizia a Sagrada Escritura e, em virtude disso, não podia ser aceito.

Hoje os jesuítas europeus que trabalham em ciência constituem um grupo de reflexão denominado Jesuits in Science que se reúne de dois em dois anos, sendo a relação entre ciência e fé um dos temas principais de debate. O Observatório Astronômico de Castelgandolfo (Itália), confiado pelo Papa aos jesuítas é um dos pontos de referência dos membros da Companhia de Jesus na sua reflexão sobre as implicações teológicas da ciência contemporânea.

IHU On-Line - Qual é a principal contribuição dos jesuítas para a ciência? Em que sentido eles renovaram a ciência da Idade Moderna?

Alfredo Dinis
- Os jesuítas contribuíram desde o início da Companhia de Jesus para a renovação da ciência da Idade Moderna, participando na investigação e no debate sobre novas idéias que, sobretudo a partir do século XVI, circulavam por toda a Europa. Os próprios jesuítas circulavam um pouco por todo o lado, faziam observações e medições em astronomia, geografia etc., e enviavam os resultados desse trabalho para os que se dedicavam à investigação em vários países, sobretudo europeus.

Os jesuítas não só adquiriram uma formação sólida em filosofia, teologia e diversas ciências, como formaram gerações de intelectuais, muitos dos quais se tornaram investigadores de primeira linha. Eles tornaram-se também interlocutores privilegiados de diversos investigadores famosos como Galileu e Descartes. No século XVIII, o jesuíta Roger Boscovich  (1711-1787) propôs uma teoria unificada da física que não foi imediatamente compreendida, e só muito mais tarde, em pleno século XX, Boscovich acabou por ser considerado um grande físico na linha de Newton e Einstein. Mas também aqui a historiografia contemporânea não atribui os grandes avanços científicos da ciência moderna a figuras isoladas, mas sim a comunidades científicas, em que os jesuítas nunca deixaram de estar presentes, e no interior das quais emergiram os autores que hoje são mais conhecidos.

IHU On-Line - Os jesuítas têm um modelo particular de construir o saber? Como ele se caracteriza?

Alfredo Dinis
- O modelo de saber que os jesuítas adotaram desde o início foi a harmonização de três grandes áreas: filosofia, teologia e ciência. No início da modernidade, as novas idéias que surgiram, sobretudo com base na observação e experimentação científicas, tornaram difícil manter a coerência global do paradigma herdado da Escolástica Medieval , mas os jesuítas tentaram sempre defender essa coerência, ainda que isso não os tenha impedido de se manterem atualizados em todos os níveis do saber.

Atualmente, os Jesuítas procuram construir um modelo de saber baseado na coerência entre fé e cultura, sendo a promoção da justiça uma pedra fundamental neste modelo. Trata-se de um paradigma menos teórico e abstracto, mais relacionado com a experiência humana concreta. É por esta razão que há algumas décadas a Companhia de Jesus tomou a decisão, sob o impulso do Superior Geral Padre Pedro Arrupe, de dedicar-se ao serviço dos refugiados. Em países onde os regimes políticos oprimem os seus povos, os jesuítas sofrem perseguição e, por vezes, até mesmo a morte. Este modo de proceder, de implicações económicas e políticas, reflecte um novo paradigma de construção do saber que foi sendo elaborado sobretudo a partir de meados do século passado.

IHU On-Line - Como seria um modelo de saber, fundamentado em uma perspectiva filosófico-teológica?

Alfredo Dinis
- Um modelo de saber, fundamentado em uma perspectiva filosófico-teológica de inspiração cristã procura interpretar a experiência humana, pessoal e coletiva, com base no Evangelho de Jesus Cristo e no exercício da razão e da inteligência humanas. Mas não se trata apenas de uma interpretação acadêmica e teórica, ela deve ser realizada no contexto da vida concreta das pessoas e dos povos e levar a decisões corajosas que transformem essa vida tornando-a mais humana. Assim sendo, a perspectiva filosófico-teológica de inspiração cristã impede que nos resignemos a paradigmas pragmatistas e relativistas que subordinem a compreensão da experiência humana a conveniências e interesses particulares, imediatos e pouco ou nada refletidos. Uma perspectiva filosófico-teológica deve enfrentar a complexidade da existência humana, renunciando a reduzi-la a um modelo qualquer simplista e superficial que pretenda ignorar essa complexidade e propor soluções fáceis para questões difíceis.

IHU On-Line - Como se caracteriza o olhar dos Jesuítas sobre as inovações científicas e tecnológicas atuais, principalmente no campo da genética e da agricultura?

Alfredo Dinis
- A perspectiva actual dos jesuítas sobre os progressos científicos e tecnológicos contemporâneos é simultaneamente de abertura e de crítica, uma vez que tais progressos têm sempre implicações éticas que os interesses econômicos e políticos pretendem, muitas vezes, esconder ou ignorar. O campo da genética em geral abre certamente novos horizontes para a compreensão do ser humano e para a melhoria das suas condições de vida, sobretudo na procura de novas terapias para o tratamento de doenças que até há pouco pareciam incuráveis. No entanto, a manipulação genética pode também trazer problemas que ainda se desconhecem em grande parte.

Os problemas específicos que se levantam no campo ético têm que ser compreendidos e resolvidos, tendo em conta a totalidade do ser humano, irredutível a um mero conjunto, estruturado de células. Desse modo, os jesuítas têm-se dedicado nos últimos anos ao estudo aprofundado das questões de bioética sobretudo em universidades, publicações e conferências. Mas este interesse dos jesuítas pela genética e pelas questões éticas que lhe estão associadas não é totalmente novo. Em Portugal, para só citar um exemplo, o Pe Luís Archer foi pioneiro dos estudos de genética neste país, tendo publicado nas últimas décadas inúmeros livros e artigos de grande nível científico e ético, pelos quais tem recebido prêmios e distinções.

A genética na agricultura

No campo da aplicação genética à agricultura, alguns jesuítas têm tomado posições críticas no que se refere à manipulação genética de plantas dado que os seus efeitos não são ainda suficientemente conhecidos. O episódio mais significativo acerca do envolvimento dos Jesuítas no debate sobre os alimentos geneticamente modificados tem a ver com a crítica por eles feita recentemente a esta nova tecnologia aplicada à agricultura na Zâmbia. A crítica foi expressa num documento produzido conjuntamente pelo Kasisi Agricultural Training Centre e pelo Jesuit Centre for Theological Reflection, ambos funcionando naquele país. Nesse documento, os jesuítas teceram uma dura crítica ao desenvolvimento no país de uma agricultura baseada em plantas geneticamente modificadas. A sua posição foi rejeitada por alguns cientistas americanos e europeus que os acusaram de assumirem uma posição política e não científica, e de provocarem a fome no pai, dado que a agricultura tradicional não consegue alimentar a população zambiana. Os jesuítas, também eles apoiados por cientistas, defendem que uma agricultura industrializada em grande escala não só iria tornar a Zâmbia dependente de grandes interesses multinacionais como iria ainda inviabilizar o trabalho de agricultores individuais cuja produção agrícola cobre 80% do consumo nacional, aumentando, assim, o desemprego em larga escala. A mesma agricultura industrializada iria provavelmente ter efeitos altamente negativos a médio e longo prazo, incluindo uma diminuição acentuada da produtividade agrícola bem como da biodiversidade. O governo da Zâmbia acabou por decidir recusar a oferta de milho geneticamente modificado feita pelos Estados Unidos, distribuído pelo World Food Programme. Os jesuítas do Canadá dirigem uma Comunidade (Community Shared Agriculture) que pratica uma agricultura de base orgânica e apóia também pequenos agricultores, permitindo-lhe praticar este mesmo tipo de agricultura. A comunidade  procura, assim, promover a responsabilidade das pessoas pela terra e pelo ambiente, propondo também uma espiritualidade que encoraja a relação das pessoas entre si e com a natureza. 

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