Edição 370 | 22 Agosto 2011

O acontecer na clínica

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Graziela Wolfart

No ponto de inflexão entre uma produção ética e uma produção moral é que podemos pensar o sentido do fazer clínico na atualidade, pontua Mário Francis Petry Londero

No próximo dia 25 de agosto, durante o evento IHU ideias, o psicólogo Mário Francis Petry Londero falará sobre o tema “O acontecer na clínica: quando o criar resiste à normatização do cotidiano”. Ele adianta, na entrevista a seguir, concedida por e-mail, aspectos do que será debatido na palestra, que acontece das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Em suas respostas, explica que “a clínica é desafiada a intervir nesse contexto social no qual o humano se vê paralisado em suas angústias protagonizando apenas flutuações entre as diversas ofertas de consumo que o anestesiam para o viver”. E continua: “a clínica, então, se coloca numa posição estratégica de acolher a angústia do humano para daí produzir novos sentidos, no tempo necessário de maturação que precisa existir para haver uma transformação criativa no indivíduo. Um tempo para a angústia, para, a partir dela, advirem maneiras criativas de transpor as adversidades da vida”.

Graduado em Psicologia pela Unisinos, é mestrando do Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional e graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É residente em Psicologia na Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição, com ênfase em saúde mental.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual é o lugar, o papel e a importância da clínica psicanalítica no contexto atual da sociedade?

Mário Francis Petry Londero –
Existe uma clínica que se faz importante e preenche um papel fundamental em termos de normatização da vida. É uma espécie de clínica que propõe respostas em vez de problematizações, trata de dizer o que seriam bons costumes, como viver de maneira regrada, como se manter em equilíbrio, mesmo que isso se conquiste a partir de medicamentos cada vez mais numerosos que surgem na indústria farmacêutica. Uma clínica ligada a uma moral do cotidiano com pouco espaço para um pensamento ético. Podemos vê-la em revistas, jornais, televisão e em muitos espaços propriamente clínicos. Tome isso para se concentrar; aquele outro para ficar calmo; este para dar um aceleramento; evite isso; faça aquilo; drogas, nem pensar... Depois reclamam do uso abusivo de determinadas drogas em nossa sociedade que o que mais faz é ofertar anestesiamentos e que pouco incute uma proposta de desenvolver pensamentos. É uma clínica voltada ao controle dos “impulsos”, que rechaça qualquer possibilidade de desvio de rota, feita para evitar sofrimentos, angústias ou quaisquer movimentos que instiguem o humano a pensar. Nesse caso, uma clínica que intenciona adestrar o humano para que ele possa viver em “paz” junto à sociedade que não suporta diferenças.



A clínica do homem em construção

Ao contrário dessa clínica “formatadora de almas” que tem grande importância para uma sociedade de controle, podemos pensar em uma outra que se lança ao inusitado, ao impensável das relações e que, justamente por isso, resiste a certo padrão normatizador que os mecanismos de controle tentam ordenar. Tal clínica se faz importante ao produzir uma escuta que dá vazão a sentidos prenhes de novidade, que anuncia um homem em plena construção de si e do mundo, ao contrário do humano que apenas repete incessantemente o que lhe foi forjado como verdade e norma. É uma clínica que oferta a possibilidade de criar mundos a partir de sua função ética de problematizar o que está posto, deflagrando assim, tanto no sujeito como na própria clínica, uma postura política de resistência frente ao que parece ser uma verdade estanque que burocratiza o amanhã em suas possibilidades de invenção.


IHU On-Line – Qual o sentido do fazer clínico numa sociedade de controle na qual cada indivíduo tem em si um modus operandi capaz de controlar, prever e cotidianizar cada ato de sua vida?

Mário Francis Petry Londero –
No livro Microfísica do poder, Foucault comenta que, para efetivar uma resistência frente aos mecanismos de controle produzidos pela sociedade capitalista, seria preciso primeiramente combater o próprio controle já instalado em cada indivíduo. Para Foucault, os jogos de poder produzem mecanismos de controle via socius, os quais variam de acordo com as tecnologias e com o próprio contexto social em que se está inserido. Nesse sentido, nossa sociedade produziu mecanismos de controle pós-disciplinares nos quais o controle se efetiva de maneira contínua e intrínseca aos corpos de cada indivíduo. O homem está sempre alerta a si mesmo, endividado em seu próprio controle. Não à toa Foucault se direciona aos gregos em suas pesquisas ao final de sua vida para pensar a relação do homem consigo mesmo – as práticas de si – e suas questões éticas e morais. Para Foucault, a partir de uma genealogia das práticas de si, pode-se perceber que há uma variação que nos leva tanto para uma produção moral como para uma produção ética. Nesse ponto de inflexão entre uma produção ética e uma produção moral, podemos pensar o sentido do fazer clínico na atualidade.


A produção de questionamentos éticos

Como comentei acima, podemos pensar uma clínica “ortopédica” em sintonia com operações que normatizam o sujeito, enquadrando-o num funcionamento adequado frente a uma sociedade de controle, que o remete a se relacionar com o social de maneira a seguir os códigos vigentes sem a possibilidade de questionamento e de criação. No caso, essa clínica se volta a uma produção moral em seu sentido relativo à obediência dos costumes: como se deve viver, o que se deve consumir, etc. Numa perspectiva inversa, temos a possibilidade de instalar uma clínica que se direcione a problematizar tais costumes dados, impostos ao sujeito e que enfraquecem possíveis criações do homem junto ao mundo que o cerca. É uma clínica que se detém a produzir questionamentos éticos ao buscar atos criativos nas relações, intencionando criar modos inéditos de viver e conviver em sociedade ao potencializar a própria vida, borrando os limites postos pelos mecanismos de controle. Em Espinoza, essa ética buscada pela clínica consiste em criar circunstâncias que aumentem a potência de agir e de pensar, produzindo alegria e libertando o indivíduo das determinações alheias. O sentido buscado por tal clínica na atualidade parece ser o de refletir/possibilitar/acompanhar atos criativos que resistam aos fluxos em sua cotidianização de toda e qualquer ação dos indivíduos em sociedade a fim de controlá-los. É um fazer clínico conectado aos imprevistos, ao que insurge como ato fora do que se encontra burocratizado nos processos de vida.


IHU On-Line – Neste panorama contemporâneo, como entender a questão da criatividade dos indivíduos? Há uma dificuldade em criar outros cenários possíveis? Como a clínica psicanalítica se insere neste contexto?

Mário Francis Petry Londero –
Na dissertação trabalhei com o livro Admirável mundo novo, de Huxley, para problematizar o estado atual da sociedade e suas possibilidades de invenção no que se refere aos indivíduos que nela estão inseridos. É incrível como a arte, nesse caso, a literatura, muitas vezes transmite em suas obras uma possível realidade. Digo isso porque me parece que Admirável mundo novo retrata muito bem o que produzimos em termos de lógica social na atualidade. O livro conta a história de uma civilização absolutamente estabilizada por conta de seus mecanismos de controle, na qual os solavancos de uma resistência perante tal sistema ganhavam um tom ridículo, caindo num sem sentido. Toda tentativa de diferir era vista como inadequada, pois persistia apenas a ideia de uma existência programada e adaptada ao sistema posto, no qual cada indivíduo e casta cumpria determinada função. Numa padronização dos movimentos da vida, que em sua lógica dominante vendia um ideal de bem-estar e liberdade, mas que, porém, só admitia tal oferta se estivesse de acordo com as escolhas oferecidas e criadas junto à própria produção. Dessa forma, uma liberdade que imprimisse o novo, ou seja, um deslocamento no que tangia à lógica de controle instalada era logo rechaçada e coibida. Nesse cenário apresentado outros possíveis não vingavam, sendo impedido à própria processualidade da sociedade e do humano no que diz respeito à produção de movimentos. Sociedade e humanos que se faziam estáveis, com a vida destinada a seguir certo trajeto cotidianizado. Vida que imprimia uma eterna nulidade em termos de inusitados perante um amanhã burocratizado – eternulidade, como diria Pelbart.


A vitalidade capitalística

Não muito diferente disso é o que parecemos vivenciar em nossa sociedade capitalista, a qual absorve qualquer tentativa de resistência frente a sua lógica. A vitalidade capitalística é tamanha que aquilo que outrora fora inventado como máquina de guerra resistente a sua lógica, logo vira um bem de consumo rentável para o sistema. Nesse panorama contemporâneo no qual o capitalismo captura qualquer tentativa de contestação padronizando a tudo via consumo, outros cenários possíveis ficam esvaziados, tornando-se um desafio produzir deslocamentos que permitam, ao menos por alguns instantes, uma diferença. O indivíduo assujeitado por tal sistema vive um mundo de consumo, uma avalanche de ofertas que nem mesmo ele sabe se fazem sentido ou não para si. Para cada problema que se instala na vida do indivíduo se apresenta um leque de bens de consumo para solucionar e apaziguar o sentimento de angústia que poderia vir a sentir. O consumo se torna fluxo de imagens que dão ao homem um valor, um pertencimento a tal marca que, ao menos por instantes, produz um sentimento de paz frente aos “tensionamentos” da vida. Como na sociedade do admirável mundo novo, o indivíduo não sai do lugar, pois o que transita são as imagens ofertadas pelo consumo, empobrecendo o humano no que ele tem de repertório criativo para enfrentar crises e angústias advindas de transformações próprias da vida. O indivíduo não se transforma; o consumo que se adapta em velocidade infinita às angústias produzidas pela dinâmica social capitalista. Nesse sentido, a partir de uma perspectiva na qual a saúde é processo de vida em movimento e a doença os pontos de parada nos quais o indivíduo não consegue transpor, podemos pensar que a clínica é desafiada a intervir nesse contexto social no qual o humano se vê paralisado em suas angústias protagonizando apenas flutuações entre as diversas ofertas de consumo que o anestesiam para o viver. A clínica, então, se coloca numa posição estratégica de acolher a angústia do humano para, daí, produzir novos sentidos, no tempo necessário de maturação que precisa existir para haver uma transformação criativa no indivíduo. Um tempo para a angústia, para, a partir dela, advirem maneiras criativas de transpor as adversidades da vida.


IHU On-Line – Como definir os conceitos de individuação, ato criativo e acontecimento nesse debate sobre a clínica psicanalítica?

Mário Francis Petry Londero –
Esses três conceitos atravessaram toda minha dissertação. Na verdade, nenhum deles tem origem na clínica, sendo os três ligados à filosofia. Cada qual em sua especificidade junto a minha pesquisa se costurou com o outro. Hoje, olhando o resultado do texto produzido na dissertação, vejo o quanto estão conectados. De maneira que, para haver uma individuação no ser, é preciso que exista um acontecimento e para se produzir um acontecimento, é necessário um ato criativo, bem como se faz importantíssimo o ato criativo no processo de individuação. Os três conceitos estão situados na dissertação para sustentar um entendimento clínico sobre o processo saúde/doença. No caso, a produção de saúde se dá nos movimentos de criação do ser junto às dificuldades que o afetam ao longo de seu viver, ou seja, em sua travessia diante da processualidade da vida. Ao contrário da doença que é parada de processo, a saber, que emperra passagens de vida produzindo estados no qual o processo é interrompido como diria Deleuze. Nesse sentido, a clínica pode auxiliar uma pessoa em seus momentos de parada, nesses pontos de fragilidade do humano nos quais não consegue por suas relações reagir e criar passagens que o coloque em movimento. O conceito de individuação trabalhado pelo filósofo Gilbert Simondon é propriamente este movimento que acabei de comentar acima. Podemos considerar que todo o organismo vivo defasa a si mesmo ao relacionar-se com seu ambiente. Processo de defasagem que diz respeito às passagens de fase – uma seguida da outra para dar conta da problemática do viver –, imprimindo no ser um movimento de desatualização/tensão/atualização de si e do mundo. Nesse caso, o ser que se encontra estabilizado, que não se defasa, fica adoecido, pois não se atualiza junto ao mundo que está em relação. Em razão disso, se faz necessário ao organismo vivo, até mesmo para a sobrevivência, que esteja em constante processo de defasagem, a saber, neste movimento de desatualização/atualização que o vigora perante o mundo que o cerca e que lhe coloca em tensão.


O ato criativo

Nesse limiar entre desatualização/atualização do humano em vida, trago para pensar o conceito de ato criativo, pois me parece que ele sustenta esse processo, ou seja, é a potência em criar outras formas, impensáveis, ou mesmo deformar o que até então era vislumbrado pelo ser humano como uma identidade posta, que se trata propriamente a individuação. Nela, o indivíduo se vê problematizado, tensionado pelas forças do mundo que o cerca a efetivar um ato criativo em si mesmo e no que com ele se afeta para sobreviver de maneira saudável, a saber, para se sustentar como organismo vivo em constante metaestabilidade. O ato criativo, então, irrompe com uma lógica cotidianizada ao forjar outros possíveis no humano, o qual ao produzir tal ação atualiza a si e ao mundo numa condição de invenção do futuro, em vez de apenas repetir de maneira burocrata e previsível os próximos passos em vida. O sujeito passa enquanto produtor do ato criativo a desburocratizar o amanhã, ou seja, se esquece, ao menos por instantes, dos caminhos já sabidos, traçados e que pouco produz novidade e força de invenção. A desburocratização do amanhã produzido a partir do ato criativo abre brechas para o acontecimento, já que ele expressa, justamente, o impensável da vida, dando ao futuro sua característica de indeterminação e, por isso, permitindo inventá-lo. Derrida comenta que o acontecimento se faz possível quando o impossível se efetiva na vida, interrompendo um tipo de história que até o momento transcorria de maneira linear e sem sobressaltos.


IHU On-Line – Em que sentido se pode construir um olhar sobre a clínica enquanto ato de resistência?

Mário Francis Petry Londero –
O ato de resistência na clínica está, justamente, na produção do acontecimento em vida, no que ele expressa de impensável, no que produz de embaralhamento aos códigos vigentes que tentam a tudo limitar em sua padronização. Nesse sentido, a clínica produz uma escuta que propõe a transformação do indivíduo e do mundo a partir do que, até então, era visto como fora da lógica vigente, ao contrário de um outro tipo de clínica que apenas adapta o indivíduo a determinada lógica de mercado, trabalho ou escola. É a proposta de sair dos trilhos que sempre levam ao mesmo lugar para, daí, poder seguir novos roteiros de vida.


IHU On-Line – Dado esse cenário de autonomia e relativismo dos indivíduos, quais os principais desafios para os terapeutas do século XXI?

Mário Francis Petry Londero –
Parece-me que estar atento ao contexto social com o qual se está em constante tensão e invenção é um primeiro desafio, já que, por vezes, vemos a clínica se fechar em si mesma, parecendo que o indivíduo se produz apenas por ele mesmo. Também é importante estar calcado pela ética de olhar a própria clínica como eternamente aberta, em questão, invenção e devir, como nos comenta Aragon, para que ela se metamorfoseie ao longo de sua própria prática que a exige atualizada para com o mundo. Em relação à clínica e o que ela se propõe junto aos indivíduos em sofrimento que a procuram, creio que acompanhá-los em seus percursos de vida, abrindo brechas inusitadas que ampliem o olhar sobre a vida seja um bom começo.


IHU On-Line – A partir da sua pesquisa, que exemplos de análises de práticas clínicas e pensamentos oriundos de produções de obras de arte podem ser citados para compreender o tema em debate?

Mário Francis Petry Londero –
Minha pesquisa se desenvolveu a partir de relatos de experiências clínicas com os quais tive contato ao longo da minha caminhada profissional como psicólogo. Dentre as principais, elenquei para o estudo alguns atendimentos com grupos e acompanhamentos terapêuticos para pensar a clínica como resistente ao cotidiano a partir de atos criativos. As relações que trouxe do plano da arte junto ao fazer clínico foram para ilustrar a potência inventiva que tal área do conhecimento humano nos proporciona. Duchamp e seu mictório que se tornou uma obra de arte chamada A Fonte foi um dos exemplos. Esse artista plástico do início do século XX traz, em sua arte, elementos muito originais para estarmos relacionando com os conceitos de individuação, ato criativo e acontecimento. Em sua proposta de trabalho apanha objetos que já não possuem uma utilidade, ou seja, que não têm mais sentido diante do socius e os coloca novamente em cena a partir de uma outra designação, dando a ele um novo sentido que desliza sobre o antigo de maneira a produzir pensamentos paradoxais. Diante dessa perspectiva da arte, parece-me que o processo que transcorre na clínica é um pouco similar, no qual o clínico e o paciente vão criar outros sentidos para elementos da vida que já continham sentidos desbotados, que pouco acrescentavam para o vivente e que já estavam atravancando os processos de vida. De maneira que tal produção de sentido eleve o ser humano sobre aquilo que estava lhe deixando doente e, da mesma forma, ocasionando todo um “efeito borboleta” no mundo que o cerca contagiado, agora, por uma nova expressão de sentido em vida.

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