Edição 370 | 22 Agosto 2011

Ecumenismo, ecologia, economia: um olhar feminino e feminista

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Moisés Sbardelotto

Três palavras que compartilham o oikos: unidade básica social. Três formas de estar no mundo e de organizar a vida no mundo. Quem é ecumênico interessa-se mais pelo oikos do que pela norma, afirma a teóloga metodista Nancy Cardoso Pereira

“Quem é ecumênico não abandona sua capacidade interpretativa e política”. Para a teóloga metodista Nancy Cardoso Pereira, só quem é ecumênico consegue fazer a crítica da lógica capitalista, da religião como fundamento de justificação das desigualdades, do agronegócio que faz a terra e a gente gemer, do capitalismo na agricultura que devora os campos e destrói o oikos, a casa comum de todos e todas, o mundo.
Por isso, reafirma, o ecumenismo é muito mais do que unidade dos cristãos ou do diálogo com judeus e muçulmanos. “O ecumenismo é a pergunta por um outro mundo possível. O ecumenismo é atitude, postura política diante do mundo todo habitado”, diz, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Um movimento ecumênico significativo, na opinião de Nancy, é aquele que repensa “a ocupação humana, sua lógica de relação com o planeta e a criação de novas relações sociais”. Nesse sentido, a teóloga defende um “ecossocialismo feminista”, ou seja, um exercício, a partir das lutas das mulheres camponesas, de outras possibilidades de “organizar a produção, a reprodução a distribuição e o consumo da vida”, na contramão do “estupro do corpo da terra, do corpo social que geme de dor” praticado pelo capitalismo. “A agroecologia implica numa relação erótica com o mundo, dar e receber prazer, comida, saúde: gemer de satisfação”, conclui.
Teóloga e filósofa metodista, Nancy Cardoso Pereira é mestre e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, e pós-doutora em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente, é professora e coordenadora no Curso de Teologia e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Severino Sombra, do Rio de Janeiro. Membro do conselho editorial da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, é também agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que é ser ecumênico, em uma perspectiva ecológica? Por outro lado, como o capital, o mercado e o patriarcado moldaram a nossa relação com o meio ambiente? O ecumenismo nos ajuda a superar esse desafio?

Nancy Cardoso Pereira –
Três palavras vizinhas se atritam aqui: economia, ecologia, ecumenismo. As três compartilham o oikos: unidade básica social (casa, mas também mundo). Simplificando: economia → oikos + nomos (lei/norma); ecologia → oikos + logos (compreensão/estudo); ecumenismo → oikos + forma do particípio passivo feminino (habitado/habitantes). São assim três formas de estar no mundo e de organizar a vida no mundo. Enquanto a economia dispõe, normatiza sobre o modo de produção da vida na relação com o mundo, a ecologia se ocupa de entender essas relações suas lógicas e implicações e o ecumenismo se pergunta pelas formas (objetivas e subjetivas) de ocupação/vivência do mundo. A religião é uma das linguagens disponíveis das formas sociais de organização da vida.
Então, tudo depende de como entendemos a religião mesmo, de modo especial, como entendemos a religião numa economia de mercado e suas relações com o mundo/planeta. Entendendo a economia como a forma básica de organização da sociedade e seus arranjos da vida material, seria importante perguntar pelas correlações entre crenças e as mobilidades/imobilidades sociais. De um modo geral, a religião – de modo especial as novas formas religiosas dentro do cristianismo – cumpre seu papel hoje de “dar alma” para a lógica capitalista, liberando a acumulação privada de bens. Na forma da “benção”, da “prosperidade”. Nesse sentido, o capitalismo encontra na religião um fundamento de justificação e legitimação das formas desiguais de usufruto do mundo. Na articulação interna do fenômeno religioso temos total identidade e homogeneidade; o dissenso se dá na forma da fidelização dos grupos sociais. A volatilidade da crença é aparente e não compromete a função que o mercado designa para a religião e a circulação dos bens religiosos.
Nesse sentido, os sistemas de crença podem ser mais ou menos pressionados pelos conflitos econômicos e políticos, viabilizando narrativas de pretensão da norma, do conhecimento e da pertença. Ser ecumênico é fazer a pergunta sobre o lugar dos sistemas de crença no conjunto das relações sociais... acessar seu/um/algum sistema de crença sendo capaz de perceber o conjunto das relações sociais de poder implicadas. Quem não é ecumênico não consegue fazer a crítica da religião! Quem é ecumênico não abandona sua capacidade interpretativa e política: interessa mais o oikos que a norma. Quem é ecumênico pergunta pelos viventes, o conjunto dos habitantes, e, a partir daí, pode questionar e desafiar as normas (econômicas) e os arranjos/valores (ecologia). É por essas e outras que o ecumenismo é muito mais que unidade dos cristãos ou diálogo com judeus e muçulmanos! O ecumenismo é a pergunta por um outro mundo possível. O ecumenismo é atitude, postura política diante do mundo todo habitado. Por isso, o ecumenismo é rechaçado e indesejado nas igrejas cristãs que não aceitam abrir mão de seu lugar de poder na formulação civilizatória hegemônica.


IHU On-Line – Em sua opinião, sobre que bases teológicas o ecumenismo pode ser fortalecido na sociedade contemporânea? Em que pontos é possível encontrar consensos e parâmetros básicos?

Nancy Cardoso Pereira –
Fortalecer o ecumenismo é fortalecer uma teologia crítica. Entre nós é a Teologia da Libertação  (método e espiritualidade) que oferece bases teológicas, políticas e eclesiológicas de repensar os sistemas de crença, repensando os sistemas de norma da economia e as formas de relação e apropriação com o mundo.


IHU On-Line – Nesse contexto, quais as contribuições específicas do metodismo?

Nancy Cardoso Pereira –
O metodismo hoje no Brasil não tem contribuição teológica nem eclesiológica significativa na pergunta pelo “mundo habitado”. Como em outras igrejas, a teologia do metodismo é de caráter empresarial e plenamente funcional ao modelo econômico.


IHU On-Line – A partir da tradição brasileira e latino-americana, como a teologia pode estimular a caminhada ecumênica, e em que a ação ecumênica pode desafiar os debates teológicos?

Nancy Cardoso Pereira –
O que temos de ecumenismo no Brasil e na América Latina é fruto da Teologia da Libertação; na compreensão da “igreja dos pobres”, criou-se uma impressionante e persistente rede ecumênica. A “igreja dos pobres” explicita a pergunta por outra forma de organizar a economia, as normas. Tem gente que se diverte dizendo que “essa teologia fez a opção pelos pobres, e os pobres fizeram a opção pela igreja pentecostal/carismática”... Os movimentos carismáticos e pentecostais de mercado são uma resposta violenta aos significativos avanços ecumênicos de uma igreja (no caso do cristianismo) não alinhada com o poder. A violência imperou e impera em faculdades de teologia, editoras, círculos de estudo. Só quem continua com os pés e o coração na luta do povo é que tem conseguido nem se vender, nem se render.


IHU On-Line – Em sua opinião, quais são os principais desafios ou obstáculos eclesiais, sociais e culturais para o ecumenismo no contexto brasileiro? Por outro lado, que avanços ainda são necessários por parte das igrejas cristãs na caminhada ecumênica?

Nancy Cardoso Pereira –
As igrejas não conseguem ser ecumênicas. O princípio de manutenção das instituições inviabiliza a crítica e a autocrítica... e, sem isso, não há ecumenismo. São as contradições e as disputas na vida social que vão criar os estranhamentos. O neoliberalismo não durou nem três décadas, e nesse período as elites quiseram desmontar o Estado e dar espaço para o capital especulativo... e as igrejas se tornaram roletas de prosperidade que substituíam os instrumentos de proteção social (saúde, emprego, segurança). Com os limites expostos nos sistemas europeus e norte-americano, o sentimento de decadência vai continuar gerando ressentimento, e forças neoconservadoras insistirão no fundamentalismo como resposta. Mas essas contradições fazem emergir também forças progressistas e vão exigir das igrejas outras respostas.
 

IHU On-Line – Como as igrejas podem se comprometer de forma mais eficaz com os sujeitos contemporâneos mais vulneráveis no contexto brasileiro, como as mulheres, os negros, os indígenas e os homossexuais?

Nancy Cardoso Pereira –
Quero lembrar o que aprendemos com D. Pedro Casaldáliga : “São Paulo, depois de tantos dogmas que anuncia, tantas brigas teológicas, tantas intrigas por cultura, dá um conselho único: ‘o que eu peço de vocês [é] que não esqueçam dos pobres; o que eu peço de vocês [é] que não esqueçam a opção pelos pobres, essencial ao Evangelho, à Igreja de Jesus’. A opção pelos pobres. E esses pobres se concretizam nos povos indígenas, no povo negro, na mulher marginalizada, nos sem-terra, nos prisioneiros... nos muitos filhos e filhas de Deus proibidos de viver com dignidade e com liberdade”.


IHU On-Line – A temática do Mutirão Ecumênico deste ano é “Unidos em Cristo na defesa da Criação”. Diante de ecossistemas tão ricos e variados como os brasileiros, especialmente na região Sul do país, qual o papel das igrejas? Por outro lado, o que significa “defender a Criação”?

Nancy Cardoso Pereira –
Tenho viajado muito pelo interior do Rio Grande do Sul para conhecer os desafios das escolas nas áreas camponesas... e o latifúndio continua sendo um escândalo! A lógica econômica e ecológica é de exaustão do bioma pampa tanto pelas práticas tradicionais da pecuária e das monoculturas tradicionais (fumo, arroz, soja) como também da disseminação das florestas artificiais (Aracruz, Votorantim, Stora Enso). O impacto sobre as formas de ocupação do território é devastador: esvaziamento, envelhecimento e masculinização da população do campo. O impacto social também é evidente: fechamento de escolas, inexistência de políticas públicas. Para mim, um movimento ecumênico significativo no RS deveria assumir a luta pela reforma agrária como fator vital de repensar a ocupação humana, sua lógica de relação com o planeta e a criação de novas relações sociais. Estas questões eu socializei num livreto sobre o “ecossocialismo feminista” que exercita a partir das lutas das mulheres camponesas possibilidades outras de organizar a produção, a reprodução, a distribuição e o consumo da vida. É terra, é escola, é produção, é sexo, é soberania alimentar. Uma relação erótica com o mundo.


IHU On-Line – O lema do encontro é: “A criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus”. Como podemos compreender hoje essa afirmação de Paulo aos cristãos de Roma, diante da crise ecológica? Nesse sentido, quais são as contribuições do “ecossocialismo feminista”, defendido pela senhora?

Nancy Cardoso Pereira –
O agronegócio faz a terra e a gente gemer! Gememos sem terra, sem casa, sem emprego. Gememos nas cidades superlotadas! O capitalismo na agricultura devora os campos e pampas e expulsa do território gentes, seres, água. É uma relação de estupro do corpo da terra, do corpo social que geme de dor. Numa proposta ecossocialista, a agroecologia coloca outra norma, outra lógica de organização e de vida com a terra, na terra. A agroecologia implica numa relação erótica com o mundo, dar e receber prazer, comida, saúde: gemer de satisfação.



Leia mais...

Nancy Cardoso Pereira já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.


O papel das mulheres na indústria. Edição 331, de 31-05-2010

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