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Márcia Junges e Graziela Wolfart
Na visão do professor José Oscar de Almeida Marques, “o interesse de Hume não é fazer uma teoria da causalidade enquanto tal, mas explicar como chegamos a adquirir nossas crenças causais, ou seja, como somos levados a acreditar, por exemplo, que um copo irá cair ao chão se eu o largar, antes mesmo de tê-lo largado”. Nesse sentido, explica ele, “a questão que Hume investiga não é metafísica, mas psicológica. Ela diz respeito ao funcionamento da mente humana. Para Hume, não chegamos a essas crenças por nenhum raciocínio dedutivo a partir dos princípios acima, mas apenas pela experiência e pelo hábito. Ao observar que um evento de certo tipo é regularmente seguido por um evento de outro tipo, somos levados automaticamente, sem nenhuma reflexão, a esperar a ocorrência de um evento do segundo tipo ao observarmos um evento do primeiro tipo”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, José Oscar defende que “Hume pretende que nosso conhecimento das relações de causa e efeito deve se derivar exclusivamente da experiência, mas ele nota que, com isso, não estamos justificados racionalmente em projetar para o futuro as regularidades do passado (porque não temos uma prova do princípio de uniformidade), e não podemos, portanto, pensar a relação de causa e efeito como envolvendo uma conexão necessária entre os dois termos”.
José Oscar de Almeida Marques é professor no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Doutor em Filosofia e mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela Unicamp, é bacharel em Engenharia de Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, de São José dos Campos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é o princípio da razão suficiente de Hume?
José Oscar de Almeida Marques – O princípio de razão suficiente é a tese de que tudo o que acontece ou existe tem uma razão para sua ocorrência ou existência. É um princípio defendido por muitos autores e faz parte de muitas doutrinas filosóficas. Quando Aristóteles afirma, na Política, que “a natureza nada faz em vão”, ele está apresentando uma versão desse princípio. Frequentemente o princípio é apresentado como significando que tudo que ocorre tem uma finalidade, ou está dirigido para um certo fim, o que se supõe que há um desígnio governando o curso da natureza. No entanto, aquilo que, em Hume, corresponderia a um princípio de razão suficiente não tem essa dimensão teleológica (télos = fim). O que ele afirma é que tudo que acontece ou existe tem uma causa, e, causas, para ele, como em geral para os filósofos da Modernidade, não envolvem, como para Aristóteles, a direção a um objetivo futuro, mas apenas a referência a eventos passados. Para Hume, portanto, todas as ocorrências no mundo estão precisamente determinadas não teleologicamente, em vista de algum fim, mas mecanicamente em consequência de eventos precedentes.
IHU On-Line – E o princípio da uniformidade, do que se trata?
José Oscar de Almeida Marques – O princípio de uniformidade é a tese de que a natureza é uniforme em suas operações em qualquer região do espaço e em qualquer intervalo do tempo. Basicamente, consiste em afirmar que as leis da natureza são invariáveis e continuarão operando no futuro tal como operaram no passado. A consequência disso é que podemos supor que causas que tiveram certos efeitos no passado continuarão tendo os mesmos efeitos no futuro, o que nos permite fazer inferências seguras acerca da ocorrência de eventos ainda não observados.
IHU On-Line – Como esses conceitos se mesclam na composição da teoria da causalidade humeana?
José Oscar de Almeida Marques – O interesse de Hume não é fazer uma teoria da causalidade enquanto tal, mas explicar como chegamos a adquirir nossas crenças causais, ou seja, como somos levados a acreditar, por exemplo, que um copo irá cair ao chão se eu o largar, antes mesmo de tê-lo largado. Nesse sentido, a questão que Hume investiga não é metafísica, mas psicológica. Ela diz respeito ao funcionamento da mente humana. Para Hume, não chegamos a essas crenças por nenhum raciocínio dedutivo a partir dos princípios acima, mas apenas pela experiência e pelo hábito. Ao observar que um evento de certo tipo é regularmente seguido por um evento de outro tipo, somos levados automaticamente, sem nenhuma reflexão, a esperar a ocorrência de um evento do segundo tipo ao observarmos um evento do primeiro tipo.
IHU On-Line – Em que aspectos a causalidade de Hume continua uma proposição atual no século XXI?
José Oscar de Almeida Marques – Embora Hume estivesse interessado nos aspectos psicológicos envolvidos em nossa apreensão da causalidade, e não na questão metafísica sobre o que poderia ser a causalidade ela própria, independentemente de nossa apreensão, é possível extrair de seu trabalho uma teoria desse tipo e propor não apenas que as regularidades são o meio pelo qual chegamos a discernir relações causais, mas que a própria causalidade se esgota totalmente nisso. Isso significa dizer que as relações causais não envolvem nenhuma relação inteligível entre causa ou efeito, e esgotam-se simplesmente na existência de uma regularidade. Com isso se recusa uma tradicional concepção de causalidade que via nela uma certa relação inteligível, ou um nexo, entre causa e efeito. A concepção de causalidade derivada de Hume é, ainda hoje, a mais amplamente aceita pelos que estudam o tema da causalidade e teve grande importância no desenvolvimento do positivismo lógico e de seus desdobramentos até os dias de hoje.
IHU On-Line – Quais são os pontos de proximidade e distanciamento entre obras Tratado da natureza humana, de Hume, e Crítica da razão pura, de Kant?
José Oscar de Almeida Marques – Há inúmeros pontos de contato, e pode-se dizer que a Crítica da razão pura pode ser tomada como uma resposta sistemática e completa aos problemas levantados por Hume no Livro I do Tratado. Para ficarmos apenas no tema da causalidade, Hume pretende que nosso conhecimento das relações de causa e efeito deve se derivar exclusivamente da experiência, mas ele nota que, com isso, não estamos justificados racionalmente em projetar para o futuro as regularidades do passado (porque não temos uma prova do princípio de uniformidade), e não podemos, portanto, pensar a relação de causa e efeito como envolvendo uma conexão necessária entre os dois termos. Essa situação pareceu inaceitável para Kant, que pretendeu resolvê-la propondo que o conceito de causa e efeito pré-existe em nós anteriormente a qualquer experiência, como uma categoria a priori, por meio da qual a relação entre causa e efeito é pensada como necessária.
IHU On-Line – Poderia contextualizar a influência de Hume em Kant?
José Oscar de Almeida Marques – Como indicado acima, pode-se dizer que a crítica que Hume fez à noção de causa, tal como tradicionalmente concebida na metafísica, foi o principal motivo para que Kant, em suas próprias palavras, “despertasse de seu sono dogmático”. Há muita discussão sobre quanto Kant realmente chegou a conhecer do Tratado de Hume, mas parece claro que, além da questão da causalidade, também a discussão humeana sobre a questão da existência dos objetos externos e do próprio eu encontra uma resposta e tentativa de solução na Crítica da razão pura. Note-se ainda que, mesmo no caso dos juízos morais e de gosto, o grande projeto crítico de Kant pode ser entendido como uma resposta ao tratamento puramente empírico que Hume desenvolveu nesses domínios.