Edição 369 | 15 Agosto 2011

Os limites da razão e um ceticismo mitigado

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Márcia Junges

Somos pouco racionais para realizar escolhas, e estas estão, em sua maioria, “envolvidas por percepções sensíveis”, pondera André Luiz Olivier da Silva, analisando o pensamento de Hume. Contato com o mundo empírico é que faz surgirem as ideias no sujeito

Uma filosofia instigante “porque põe à prova o papel da razão para explicar e justificar o ato de conhecer dos seres humanos, mostrando que a natureza humana é constituída mais por paixões do que pela razão”. Assim é o legado de David Hume, analisa o filósofo André Luiz Olivier da Silva, na entrevista que por e-mail concedeu à IHU On-Line. “O método experimental de Hume mostra que não há ideias inatas ao ser humano, mas, ao contrário, as ideias são adquiridas com a experimentação que o sujeito desenvolve em contato com o mundo empírico”. E continua: “A mente cria ideias como identidade, necessidade, poder, força, dentre outros termos que nomeiam coisas abstratas. Mas de onde vêm tais ideias? Como são produzidas pela natureza humana? Segundo Hume, o ponto de partida do processo de conhecimento é sempre a experiência, que, por meio de impressões sensíveis, movimenta os sentidos do ser humano e estimula a produção de ideias”. Outro tema explorado por André é a questão do ceticismo humeano, autodenominado como “mitigado”, isto é, moderado, “que não propõe exatamente a dúvida exacerbada como solução aos problemas filosóficos e muito menos a suspensão de nossas crenças causais devido à ausência de justificação racional. A conclusão de Hume em relação ao ceticismo é a de que o cético não consegue viver o seu próprio ceticismo, que, nos casos extremos, chegaria ao absurdo de negar o conhecimento”. E completa: “É um ceticismo que constata que não se pode duvidar de todas as coisas justamente porque é preciso viver, agir e, principalmente, sentir”.

André é graduado em Direito e em Filosofia pela Unisinos. É mestre e doutorando em Filosofia por essa mesma instituição, com a dissertação Ceticismo, imaginação e identidade em Hume e a tese Lei e liberdade na antropologia kantiana. Leciona no curso de Direito da Unisinos, do qual é coordenador.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que aspectos a filosofia de Hume continua instigante e atual?

André Luiz Olivier da Silva – A filosofia de David Hume (1711–1776) é instigante porque põe à prova o papel da razão para explicar e justificar o ato de conhecer dos seres humanos, mostrando que a natureza humana é constituída mais por paixões do que pela razão. Somos muito pouco racionais para decidir e escolher alguma coisa, de modo que todas as nossas decisões estão, no fundo, envolvidas por percepções sensíveis, por afetos e sentimentos, que fundamentam não só o nosso ato de conhecer e pensar o mundo, mas, principalmente, os nossos julgamentos sobre a moral. Para mostrar isso, Hume apresenta um mapeamento da natureza humana, adotando o empirismo, um método segundo o qual o conhecimento provém da experiência sensível.
O método experimental de Hume mostra que não há ideias inatas, mas, ao contrário, as ideias são adquiridas com a experimentação que o sujeito desenvolve em contato com o mundo empírico. O impacto da metodologia proposta por Hume fomentou o período moderno da filosofia porque inseriu uma nova solução para os problemas tradicionais da metafísica, principalmente ao afirmar que não há ideia inata, mas sim um processo cognitivo constantemente estimulado por impressões sensíveis e por um sucessivo encadeamento natural de ideias. Além disso, a obra de Hume se mostra atual porque participa dos textos filosóficos do período moderno, como os de Francis Bacon  (1561–1626), René Descartes  (1596–1650), Thomas Hobbes  (1588–1679), John Locke  (1632–1704), George Berkeley  (1685–1753) e Immanuel Kant  (1724–1804). Esses textos nunca saíram de moda porque traçam uma ampla discussão sobre diversos temas filosóficos impermeados pela controvérsia entre empirismo e racionalismo, a qual é base de outras tantas discussões contemporâneas.

Razão, escrava das paixões

Segundo a minha opinião, o aspecto que torna a filosofia de Hume tão instigante ainda nos dias de hoje é a célebre conclusão de que a razão é escrava das paixões, pois é justamente a partir desse ponto que Hume irá propor uma solução cética ao processo associativo de ideias na mente humana e ao processo natural de formação das crenças sobre as coisas do mundo, como por exemplo, as crenças em relação à existência de corpos físicos e de outras pessoas ou as crenças na existência de valores morais como o certo e o errado, o justo e o injusto. No processo de conhecimento, primeiramente, a natureza humana formula um vasto repertório de ideias, ideias de todo tipo, desde a ideia de que corpos físicos ou outras pessoas existem como entidades reais e autônomas, até a ideia de que se pode agir moralmente com base em virtudes como a justiça e a benevolência. Algumas dessas ideias, quando se mantêm vívidas e intensas no longo processo cognitivo, tornam-se percepções mais fortes e chegam a gerar crenças naturais no ser humano que se estruturam a partir daquela coleção de ideias. A mente cria ideias como identidade, necessidade, poder, força, dentre outros termos que nomeiam coisas abstratas. Mas de onde vêm tais ideias? Como são produzidas pela natureza humana? Segundo Hume, o ponto de partida do processo de conhecimento é sempre a experiência, que, por meio de impressões sensíveis, movimenta os sentidos do ser humano e estimula a produção de ideias. Neste ponto, pode-se identificar o traço empirista de Hume, quando propõe que toda ideia que surge na mente humana tem a sua origem na experiência; e é o constante retorno à experiência sensível que torna toda ideia sensivelmente forte e vívida a ponto de poder estimular a natureza humana a formar suas crenças.

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