Edição 367 | 27 Junho 2011

O riso como arma e libertação

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Márcia Junges

Rir de si mesmo tem um efeito libertador, além do fato de que o riso faz com que o homem mostre seus dentes, movimento físico que expressaria agressividade, observa Henrique Domingues Rodrigues. Millôr Fernandes, muito antes dos blogs e Twitter, já exercia uma escrita direta, cujo tema central é o humor

Muito antes do advento dos blogs e do Twitter, Millôr Fernandes já praticava uma escrita concisa e direta. Falou, inclusive, que o humorista “não atira para matar”. Ao assumir isso, Millôr “tem consciência de que o humor em si não resolve os problemas da sociedade, mas ajuda muito a descortinar os absurdos que tentam se esconder sob certa seriedade da vida brasileira”. A constatação é de Henrique Rodrigues, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Segundo o pesquisador, “rir de si mesmo é um tipo de libertação”. E completa: “Rindo, o homem mostra os dentes, e há pesquisas que associam esse movimento físico do rosto ao instinto de agressividade. O riso, portanto, é uma arma”. Mas é preciso haver limites, pondera Henrique: “O humor é social, sempre. E como toda situação social, existem limites morais e éticos”. Além disso, com a internet, hoje qualquer pessoa pode se expressar humoristicamente através de um sítio, podendo ser uma espécie de bobo da corte. “Aliás, é interessante ver como a própria corte muitas vezes teme o bobo.”

Henrique Rodrigues é formado em Letras pela UERJ, com especialização em Jornalismo Cultural pela mesma instituição. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, com dissertação sobre o humor político na obra de Millôr Fernandes. Atualmente é doutorando, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em Literatura. É autor da dissertação Millôr Fernandes: a vitória do humor diante do estabelecido. Trabalhou como assessor técnico em literatura do Sesc Nacional, coordenando projetos de incentivo à leitura, e como superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha com curadoria de programação na Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio. É autor de sete livros de literatura, entre infantis, juvenis e contos, e participou de várias antologias.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Aristóteles afirmou que “o homem é o único animal que ri”. Millôr Fernandes completou a sentença ao dizer que “é rindo que ele mostra o animal que é”. O que está por trás do mecanismo do riso que nos torna paradoxalmente diferentes e iguais aos animais?

Henrique Rodrigues -
Essa famosa afirmativa de Aristóteles está no livro Partes dos animais, uma obra de biologia, e não sobre estética, poética, retórica ou política. Na verdade, essa interpretação da frase segundo a qual “o riso faz parte da essência humana” pode ser um pouco exagerada. Acredito que Aristóteles tivesse até uma opinião semelhante à de Platão , para quem era impossível pensar que os deuses pudessem rir, e provavelmente deixaria os comediantes do lado de fora da República, ao lado dos poetas líricos. Na Poética, por exemplo, Aristóteles afirmou que a tragédia revelava os homens melhores do que são, enquanto a comédia os mostrava piores. A frase do Millôr teria mais esse sentido de assumir a essência humana e crua, animalesca, contida na atitude de rir. Rindo, o homem mostra os dentes, e há pesquisas que associam esse movimento físico do rosto ao instinto de agressividade. O riso, portanto, é uma arma. Mas o próprio Millôr diz que humorista não atira para matar. Voltando a Aristóteles, ele assume que a comédia mereceria um estudo à parte. Porém a existência dessa obra ainda é hipotética. Umberto Eco, em O nome da rosa, supõe que o livro era temido pelos clérigos medievais, devido ao poder libertador do riso, e por isso o mantinham (o livro e o riso) confinado.


IHU On-Line – Pensando na obra de Millôr Fernandes, de que forma o humor se constitui numa expressão literária? Além disso, como sua obra ajudou e ajuda a questionar verdades estabelecidas?

Henrique Rodrigues -
A obra do Millôr cobriu a maior parte do século XX e está aí nesse início de século XXI. É preciso observar que ela sempre foi muito avançada em vários aspectos. Ele utilizou recursos de poesia concreta bem antes dos concretistas, foi um dos primeiros a usar computadores como ferramentas de criação. Aliás, há décadas pratica uma escrita concisa e direta bem típica de blogs e Twitter, cujos formatos são alardeados como “novos suportes”. Millôr é escritor, dramaturgo, artista plástico, roteirista, caricaturista e tantas outras coisas, exercendo todas não só com brilhantismo e originalidade, mas também uma imparcialidade rara. Essa irreverência (com o sentido mesmo de não se curvar) permite que ele passe pelas mais importantes publicações com a mesma postura, utilizando o humor como uma ferramenta de questionamento social. Ao assumir que não atira para matar, ele tem consciência de que o humor em si não resolve os problemas da sociedade, mas ajuda muito a descortinar os absurdos que tentam se esconder sob certa seriedade da vida brasileira.


IHU On-Line – Millôr foi um dos fundadores de O Pasquim e colaborador da Revista Bundas. O que esse tipo de humor mostra sobre a relação entre transgressão humorística e política?

Henrique Rodrigues -
Como Millôr sempre publicou em jornais e revistas, a rotina política brasileira se tornou um assunto predominante. O Pasquim foi um dos pontos altos da história do humor brasileiro, e também para a imprensa como um todo, pois eles deram graça e liberdade às redações, às entrevistas, e especialmente ao modo como driblar as dificuldades (no caso, a censura era a maior delas). O Millôr, felizmente, sempre pegou no pé dos políticos. Lembro-me do caso do Figueiredo  e sua fixação por cavalos (“Enfim, um presidente Horse-Concours”);  Sarney  e sua pretensão literária (“Assim que saiu da posse na Academia, Sir Ney se reuniu, feliz, com um grupo de militares: está convencido de que fardão é o aumentativo de farda”); Collor  e a figura do atleta (“Não só tem aquilo roxo como é pau pra toda obra e está sempre com o Cooper feito”);  a suposta soberba intelectual de Fernando Henrique  (“O único intelectual que se acha mais inteligente do que ele próprio”) e por aí vai. Cada escândalo político tem sido devidamente acompanhado e comentado, e o humor, por ser um texto prazeroso e trazer uma nova perspectiva sobre um mesmo fato, consegue muitas vezes chamar mais a atenção do que a notícia convencionalmente publicada. A subversão é, no caso, tão importante quanto a versão.


IHU On-Line – Particularmente no Brasil, há uma forte contestação e crítica à política via humor. Qual seu ponto de vista sobre a forma como o humor vem lidando com essa questão hoje?

Henrique Rodrigues -
Há uns anos, um deputado apresentou um projeto de lei para punir quem abusasse de estrangeirismos, principalmente nos meios de comunicação. Haveria uma multa, de cerca de 30 mil reais, por exemplo, para uma placa com um termo em inglês. O Millôr publicou um texto em que dizia “Que idioletice!” Isso rendeu bastante. O deputado processou o Millôr por “comprometimento da honorabilidade”. O projeto não colou, claro. Mas isso demonstra como o humor está atento às tentativas de cerceamento da liberdade. Mas em relação ao humor hoje, vejo que a internet tem sido um dos veículos mais importantes, e as possibilidades aumentam junto com os formatos. No entanto, os próprios conteúdos, assim como os suportes, surgem e desaparecem muito rapidamente. Em termos gerais, o humor deixou de ser político como era na época da ditadura, e se tornou mais comportamental. E como o comportamento se dissipa e/ou se move cada vez mais rapidamente de um assunto para outro, o humor acompanha e, muitas vezes, se torna mais banal. Por consequência, torna-se menos sardônico e contestador.


IHU On-Line – Identificar-se com situações cômicas é um dos fatores que aproxima o público com o humorismo. Por que as pessoas procuram essa caricatura de si próprias na alteridade, nesse outro que é tão igual e diferente de si mesmas?

Henrique Rodrigues -
Rir de si mesmo é um tipo de libertação. Henri Bergson , no seu clássico ensaio O riso, disse que numa sociedade composta só por inteligências todos estariam rindo. As pessoas se identificam com situações cômicas porque se veem nelas, mas ao mesmo tempo sabendo que não estão passando por aquela situação. As sitcoms (comédias de situação) mais cultuadas, como Seinfeld, mostram o politicamente incorreto em que todos nós nos metemos várias vezes nas situações sociais, e também por isso atraem tanto. Mas há nesse processo um certo distanciamento, pois o exagero, a caricatura impedem uma identificação total. Segundo alguns estudiosos, essa lacuna seria justamente a grandeza do humor. Uma coisa é ser o outro, outra é fingir ser o outro. No caso do humor, esse fingimento está sempre evidente, como se na relação de alteridade existisse um alerta: “Ok, estou exagerando, mas você é assim e age assim”.


IHU On-Line – Na Antiguidade existia a figura dos bobos da corte, cuja função era fazer o rei rir. Qual é a grande mudança do humor daqueles tempos para os nossos dias?

Henrique Rodrigues -
Essa figura do bobo da corte, ou jester, era um personagem bastante paradoxal que criticava os poderosos diretamente, sem que os mesmos se sentissem atingidos. Caso aceitassem a jocosidade e respondessem seriamente, estariam se denunciando, aceitando como verdadeiras as acusações feitas pelo bobo, a priori, sem intenção de um ataque concreto. Isso porque o bobo da corte não era considerado um membro da sociedade, mas alguém de fora, com uma crítica anárquica e sem valor destrutivo. Antes, sua crítica apontava para o que destoava das convenções sociais – das quais ele não participava. No fundo, ele acabava por ser um elemento mantenedor do controle social disfarçado de entretenimento. Hoje, talvez o humor seja um grande entretenimento em si, respondendo até por categorias industriais, como nas comédias do cinema, do teatro, das sitcoms, que finalmente estão emplacando na TV brasileira, dos sítios de humor, alguns largamente acessados diariamente. Como existe essa indústria do riso, e inclusive qualquer pessoa pode abrir um sítio e se expressar humoristicamente, todos nós podemos ser o bobo da corte. Aliás, é interessante ver como a própria corte muitas vezes teme o bobo. Recentemente, a assessoria da presidenta Dilma divulgou que ela se divertiu ao assistir um vídeo de uma imitação que circula pela internet. Se tiveram o trabalho de informar que ela achou graça e não teve medo da paródia, fica parecendo que foi mais uma intenção de mostrar que Dilma é exceção, o que confirma a regra.


IHU On-Line – Existe humor de mau gosto e humor de bom gosto? O que os diferencia?

Henrique Rodrigues -
Claro que sim. O humor é social, sempre. E como toda situação social, existem limites morais e éticos. Lembro-me de uma situação: em 2001, eu estava nos EUA e, logo após os atentados às Torres Gêmeas, os humoristas do Saturday Night Live, o programa de humor mais famoso de lá, tiveram um cuidado muito grande ao apresentar o primeiro programa após a tragédia. O Bush estava no ar e logo no início os apresentadores perguntaram: “Podemos fazer humor, presidente?”. Isso demonstra a preocupação em não sair da medida e abordar temas de forma irresponsável. De todo modo, o contexto é que determina essa medida. Mesmo porque os atentados de 11 de setembro se tornaram um assunto largamente utilizado no humor nos anos seguintes.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Henrique Rodrigues -
Não. Ou melhor: sim. É preciso rir. Diz-se que rir é o melhor remédio, ao mesmo tempo em que é uma demonstração de infantilidade (muito riso, pouco siso).  Esses paradoxos fazem do assunto algo muito interessante de se pesquisar, escrever ou até mesmo em conversas informais. Creio que o senso de humor é uma grande manifestação de humildade e virtude.

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