Edição 367 | 27 Junho 2011

O risível através dos tempos

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Márcia Junges

O riso passou por diferentes concepções ao longo da história: Platão acentuava que ele desviava as pessoas da Verdade, concepção que chegou até a Idade Média, pondera Verena Alberti. No século XIX, Arthur Schopenhauer classificou o riso como veia para alcançarmos o “impensado”

Para Arthur Schopenhauer, pelo riso “nos damos conta da incongruência entre a razão e a realidade. Ver a severa e infatigável razão fracassar na apreensão das infinitas nuanças da realidade é prazeroso para nós e, por isso, rimos”. A reflexão é da historiadora Verena Alberti, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Esse tipo de concepção é uma ruptura, quando o riso se transforma em conceito filosófico e nos leva a “uma dimensão mais abrangente do pensamento”, já que nos faz perceber “todas as incongruências e os não ditos que fazem parte do real, permitindo-nos alcançar o impensado”. Contudo, não foi sempre essa a concepção acerca do riso. Platão afirmava que o riso afastava o homem da Verdade, ideia que atingiu vários pensadores medievais.

Verena Alberti é graduada em História, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ é doutora em literatura pela Universidade Gesamthochschule Siegen, na Alemanha, com a tese La pensee et le rire: etude des theores Du rire et Du risible. É pós-doutora pela Universidade de Londres e pela Universidade de East Anglia, ambas na Inglaterra. Atualmente, leciona na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. De sua produção bibliográfica, citamos O riso e o risível na história do pensamento (2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Fundação Getúlio Vargas, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o riso e o risível se apresentam na história do pensamento?

Verena Alberti – No meu livro O riso e o risível na história do pensamento, procuro mostrar como o riso foi pensado no Ocidente, desde Platão até hoje. É claro que há diferenças importantes, mas também continuidades. Uma das principais diferenças verifica-se a partir do século XIX, quando o riso deixa de ser apenas objeto do pensamento – algo sobre o que os filósofos em geral pensavam, tentando definir de que e por que rimos – para se transformar em conceito filosófico – algo que nos ajudaria a entender o próprio pensamento e as formas de apreender o mundo. Essa ruptura começa em meados do século XIX, com pensadores como Schopenhauer , por exemplo, para quem rimos porque nos damos conta da incongruência entre a razão e a realidade. Ver a severa e infatigável razão fracassar na apreensão das infinitas nuanças da realidade, diz Schopenhauer, é prazeroso para nós e, por isso, rimos. Podemos dizer que essa forma de conceber o riso é relativamente recorrente desde então; é como se o riso nos levasse a uma dimensão mais abrangente do pensamento, porque consegue compreender – no sentido de incluir – todas as incongruências e os não ditos que fazem parte do real, permitindo-nos alcançar o impensado.

IHU On-Line – Comédia, sátira e humor são categorias particulares que nomeiam algo universal, o riso? O que as une e separa?

Verena Alberti – Mas não foi sempre assim. Platão via o riso justamente como aquilo que nos afastava da Verdade – com “v” maiúsculo –, porque seria resultado de um falso prazer. Nisso, foi acompanhado por boa parte dos textos da teologia medieval, que afirmavam que o riso nos afastava de Deus. Muitos textos medievais comprovavam essa distância pelo fato de Jesus Cristo jamais ter rido, apesar de ter sido dotado dessa faculdade, própria do homem. Que o riso é algo próprio do homem vem sendo repetido desde Aristóteles, que, aliás, reservava um lugar mais digno para a comédia do que o que Platão lhe consignava. Para Aristóteles, a comédia era a prova do caráter filosófico da poesia, pois construía seus personagens de acordo com o verossímil, ao passo que a tragédia teria como alvo os homens que realmente existiram.
Outro viés pelo qual o riso foi pensado desde a Antiguidade foi o da retórica: Aristóteles, mas principalmente Cícero e Quintiliano, entre outros, observaram os recursos que levariam uma plateia a rir e, com isso, acabaram constituindo também teorias do riso. Quintiliano tem, a meu ver, uma explicação surpreendentemente moderna do riso. Analisando duas frases idênticas que, de acordo com o contexto, podem fazer rir ou não, ele deduz que a causa do riso no contexto que faz rir “está na apresentação das coisas de uma maneira contrária à lógica e à verdade”.

IHU On-Line – O que nos faz rir?

Verena Alberti – Muitos pensadores se preocuparam com essa questão: o que faz rir? O objeto do riso é chamado de diferentes formas: o cômico, a piada, a sátira etc. Para unificá-los uso, no meu livro, a categoria “risível”, aquilo que provoca o riso. Esse objeto do riso também foi se modificando ao longo da história do pensamento ocidental: de um defeito anódino (de menor importância), passando pelo contraste ou pelo caráter moralizador do ridículo (o riso como instrumento de correção), até a incongruência entre o pensado e a realidade, ou ainda o próprio trágico, que alguns filósofos identificaram como objeto do riso.

A produção do riso no corpo e o fato de muitas vezes não poder ser contido ocuparam também alguns pensadores. Um dos mais geniais, a meu ver, foi o médico francês do século XVI Laurent Joubert, que escreveu um Tratado do riso, publicado em 1579. A professora Vera Cecília Machline , da PUC-SP, vem estudando em profundidade as produções de Joubert, incluindo esse seu tratado.

Espero poder ter dado uma noção geral de como o riso tem sido tratado no pensamento ocidental e do lugar de destaque que ele aí ocupa. Durante muito tempo, pensar o riso era se perguntar sobre aquilo que distinguia o homem dos animais e de Deus, que não riam. E esse enigma continua ocupando pensadores até hoje, mesmo que nossos parâmetros já não sejam os mesmos.

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