Edição 367 | 27 Junho 2011

Com as unhas cravadas no mal-estar

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Márcia Junges

Fazer humor é transgredir, é despir as ideologias de suas roupagens, e as teorias de sua pompa, frisa a psicanalista Marília Brandão Lemos Morais. Os humoristas são aqueles que enterram as unhas no “mal-estar” do qual padece a contemporaneidade, fazendo ressurgir a transgressão

“O humor atua como álibi de alguma verdade do sujeito que, até então, não fora capaz de ser dita”. A afirmação é da psicanalista Marília Morais em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ela recupera o conceito de humor em Sigmund Freud, dizendo que este não é resignado, mas rebelde. Os humoristas são aqueles que “cravam as unhas no mal-estar”, apontam a “finitude humana, sua dor e sofrimento”. E complementa: “Através do humor, todo poder constituído é gozado, as teorias perdem a sua pompa, as religiões, as ideologias mostram sua face frágil e nua. O humor é transgressor!”. Marília constata que nossa sociedade “parece ter perdido a potência do riso, evidenciada pelo conformismo que se observa no humor cínico e no pornográfico. Resgatar a rebeldia característica do humor é resgatar as dimensões de vida que não podemos deixar esmaecer no nosso dia a dia: a graça de viver, a criatividade, o lúdico e o bom humor”.

Psiquiatra e psicanalista, Marília Brandão Lemos Morais é filiada ao Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ao Círculo Brasileiro de Psicanálise e à International Federation of Psychoanalisis. É autora do livro Psicanálise e Contemporaneidade: arte, literatura, poesia, humor, corpo, anorexia, bulimia (Editora Biblioteca 24x7: São Paulo, 2010).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Psicanaliticamente, o que explica a necessidade e o prazer que sentimos de rir e fazer rir?

Marília Morais
– O riso é uma descarga de afeto que gera prazer e contagia. O mecanismo do riso é explicado como consequência da suspensão da inibição: um quantum de energia psíquica torna-se livre e encontra uma via de descarga motora na risada.O chiste e o humor convidam ao prazer e ao gozo em função do riso que provocam, contagiando o espaço social. Se o chiste está estruturado como uma formação do inconsciente, é por isto mesmo um trânsito para que alguma coisa da ordem do recalcado abra passagem e se mostre sem passar pelo desconforto da angústia e do padecimento de sintomas.
No capítulo V do livro Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905), de Freud, são analisados os motivos dos chistes e o impulso que temos de passá-los para frente, através de um contágio entusiasmado, colocando-os como um processo social. Na estrutura dos chistes, são determinadas três pessoas: a primeira, quem conta a piada; a segunda, aquela de quem se fala e que não está presente e é o alvo das pressões sexuais e agressivas; e a terceira, que é para quem se conta a piada, a plateia ou a paróquia (termo retirado de Bergson que Freud colocou como todo chiste requer seu próprio público). A função desta terceira pessoa é fundamental: é aquela que ri da piada e a que a referenda, pois, sem seu riso, a piada não é piada, portanto, um efeito a posteriori, que só então faz o piadista rir. Esta terceira pessoa é importante para o piadista reexperimentar, através dela, o efeito surpresa da piada ouvida pela primeira vez, e para autorizar a transgressão da repressão social efetuada pelo piadista.

Os chistes provêm dos jogos de palavras e pensamentos usados pelas crianças e que produzem prazer. Com o passar dos anos são abandonados em função da faculdade crítica e da racionalidade. Entretanto, o sujeito não quer renunciar a um prazer que lhe é familiar. Daí o ulterior desenvolvimento destes jogos infantis até a sua transformação em chistes, impulsionados pelo desejo de burlar a crítica e reencontrar o antigo prazer. O propósito, a função dos chistes consiste em suspender as inibições internas e tornar acessíveis as fontes de prazer. Os chistes são tendenciosos, satisfazem a uma tendens, uma intenção. A sua forma engenhosa satisfaz a intenções agressivas e sexuais, a sua forma alusiva e indireta permite que pensamentos sejam expressos, burlando a crítica. O fato de negarem a censura e de liberarem a inibição que pesava sobre estas fantasias coloca à mostra o inconsciente e o prazer é derivado da economia de um dispêndio psíquico, aquele que mantinha a inibição. Entre os vários tipos de inibição, o texto freudiano se refere ao recalque, reconhecido por impedir que impulsos a ele sujeitos e seus derivativos tornem-se conscientes. E diz que os chistes são capazes de liberar prazer de fontes já submetidas ao recalque.


IHU On-Line – Qual é a função do riso? Catarse, mecanismo de defesa?

Marília Morais
– O humor atua como álibi de alguma verdade do sujeito que, até então, não fora capaz de ser dita. Numa brincadeira pode-se até dizer a verdade, enuncia Freud em seu livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. O recurso ao falei de brincadeira ou é de mentirinha pode ser a maneira de uma verdade ser anunciada, através do faz de conta: Foi sem querer querendo, como diz o Chavez do programa humorístico da TV. Esta verdade se diz através de um sentido insólito brotado no nonsense, do paradoxo, do absurdo, ao qual se segue uma revelação de sentido que é sempre surpreendente e fugaz, seguido da descarga de riso.
 

IHU On-Line – Em que medida rir pode ser também uma transgressão e uma rebeldia?

Marília Morais
– O humor não é resignado, mas rebelde, diz Freud em seu ensaio O humor (1926). São os humoristas, aqueles que captam a fragilidade do homem, seus conflitos, sua finitude, sua dor e sofrimento, “cravam as unhas no mal-estar”, desviam do interdito e dali saem com um dito espirituoso que os fazem rir de si mesmos, ou do outro e fazem o outro rir. São eles que revelam nossas contradições, nossas falhas, nossas imperfeições. Através do humor, todo poder constituído é gozado, as teorias perdem a sua pompa, as religiões, as ideologias mostram sua face frágil e nua. O humor é transgressor!


IHU On-Line – Como podemos compreender as conexões entre angústia, ironia e riso?

Marília Morais
– Se o humor consiste numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e ainda tirar proveito disso, podemos observar esta conexão na própria vida de Freud em duas situações descritas por Peter Gay (e citadas por Kupermann). Em 1938, na época de deixar a Áustria dominada, então, pelo nazismo, após a prisão e interrogatório de sua filha Anna, Freud foi obrigado a assinar um documento para a Gestapo dizendo que não havia sofrido maus-tratos. Após assiná-lo, ele acrescentou de próprio punho: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”. Esta tirada de humor foi, de início, interpretada por Gay como uma tentativa inconsciente de suicídio, uma vez que a ousadia de Freud punha em risco a sua própria vida, caso as autoridades nazistas reconhecessem ali uma fina ironia. Mas, num segundo tempo, o mesmo Gay reconhece que esta atitude demonstrava uma grande coragem e vitalidade do criador da psicanálise e “seu senso de humor irreprimível”. Esta ambiguidade, que aponta tanto para a vida quanto para a morte, revela a ambivalência e o paradoxo próprios do registro tragicômico e do humor negro, nesta estranha proximidade da angústia, da ironia e do riso.

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