Edição 364 | 06 Junho 2011

História da loucura: o retorno sobre um livro e sua recepção

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Jean-François Bert e Philippe Artières | Tradução: Luciana Cavalheiro

“Foucault procura questionar os limites da doença mental tomando como contraponto os diferentes discursos oficiais mantidos sobre a loucura”, apontam Jean-François Bert e Philippe Artières. O ano de 1968 acelerou as reformas, emancipando a psiquiatria da neurologia

Compreender o surgimento de História da loucura, de Michel Foucault, em meio à efervescência dos anos 1960, é o objetivo do artigo de Jean-François Bert e Philippe Artières, enviado à IHU On-Line. De acordo com os autores, é num “quadro geral de reconfiguração da psiquiatria francesa que História da loucura vai se estabelecer no início dos anos 1970”. Eles explicam que Foucault “inegavelmente interpretou um papel no desenvolvimento da teoria ‘antipsi’ na França, particularmente por ter mostrado como a resposta do corpo social ao problema da loucura é sempre de ordem política”. A partir de 1968, essa obra foucaultiana passa a ser “vinculada a uma nova forma de sensibilidade social que trata do questionamento do funcionamento geral das instituições de tratamento. Os hospitais psiquiátricos foram atingidos pela onda de contestações de maio de 1968”, complementam.

Jean-François Bert nasceu na França, é sociólogo e leciona na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS. Philippe Artières é historiador, professor do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS e da EHESS. Juntos, Bert e Artières escreveram Un succès philosophique. L’Histoire de la folie à l’âge classique de Michel Foucault (Caen: Imec/PUC, 2011).

Confira o artigo.


Se a defesa do doutorado de Foucault em 1961, e sua publicação na Plon sob o título Folie et raison: Histoire de la folie à l'âge classique [Loucura e razão: História da loucura na idade clássica] marca o primeiro ato da história da sua “loucura”, como Foucault gostava de chamar, sua retomada em edição de bolso na 10/18 a partir de 1963, em uma versão resumida, constitui o segundo ato. Bem difundido, este segundo livro circula muito junto às ciências humanas e sociais, interessando tanto historiadores como filósofos.

Estes dois momentos da recepção, uma acadêmica, difícil – é preciso lembrar-se da recepção hostil de uma parte da banca avaliadora -, a outra atenta à proposta foucaltiana, ao mesmo tempo em que se inquieta com algumas destas propostas, que contribuíram para afirmar Foucault como uma figura importante do pensamento contemporâneo dos anos 1960.

O filósofo, inclusive, não estranhou este reconhecimento, importando-se com força e constância em promover a tese através do livro, levando-a lá onde lhe parecia necessário, intervindo em colóquios, publicando artigos, respondendo palavra por palavra aos seus detratores. (Ver suas respostas a Stone, Steiner ou a France Pelorson.)

Longe de abandonar a tese, Foucault não cessará de defendê-la e de retomá-la em seus trabalhos: O Nascimento da clínica era “os restos da história da loucura”; a pesquisa sobre Roussel, seu apêndice... Enquanto que As Palavras e as coisas haviam por um tempo, pelo imenso sucesso conquistado em seu lançamento e a proposta foucaltiana da arqueologia das ciências humanas, desviado a atenção, no início dos anos 1970, a “loucura” retorna como protagonista. Desta vez, sem o conhecimento do seu autor, como ele salientará em seu prefácio da reedição que esta nova onda de leitores necessitará: “Foucault está constituído em teórico francês da antipsiquiatria”.


Um livro resgatado por seus contemporâneos

A História da loucura é, a partir desta data, vinculada a uma nova forma de sensibilidade social que trata do questionamento do funcionamento geral das instituições de tratamentos. Os hospitais psiquiátricos foram atingidos pela onda de contestações de maio de 1968. Assembleias gerais, pela primeira vez, encontraram-se em um mesmo lugar, fora do estreito quadro terapêutico, seguidamente nas bibliotecas dos hospitais, se não diretamente os doentes e o técnico de enfermagem, ao menos os médicos chefes e os enfermeiros. Seria falso, todavia, fazer de 1968 um momento de ruptura no aggiornamento da psiquiatria francesa. Esta instituição não esperou o final dos anos 1960 para questionar suas práticas e a ilusão, ainda tenaz para alguns profissionais da saúde, de um humanismo terapêutico.
O estabelecimento, no hospital Saint Alban a partir de 1940, da psicoterapia institucional que consiste em uma redefinição profunda das relações entre os doentes, os profissionais da saúde e o mundo exterior, foi seguida de uma primeira acusação da estrutura do hospital psiquiátrico . Se, então, este processo se acelera na primeira metade dos anos 1960 com – por exemplo, em 15 de março de 1960 – a instituição, através de uma circular ministerial, da política de “setor” que implica em uma profunda mudança na ordem dos tratamentos, uma vez que a psiquiatria deve doravante ir à frente das necessidades das populações tentando organizar uma resposta terapêutica que leve em conta o ambiente social no qual evolui o doente, estas contestações da psiquiatria vão se seguir bem após os “acontecimentos” de maio.
Até o final dos anos 1970, os antipsiquiatras vão manter a esperança de uma mudança – ao mesmo tempo da própria instituição – mas, também da sociedade no seu todo que é julgada responsável de agravar a condição psicológica dos indivíduos. Enquanto que o humor esquerdista perde sua influência a partir de 1972, a antipsiquiatria francesa continua a pesar sobre o debate político e social denunciando os internamentos abusivos, as condições de vida desumanas no interior dos centros de tratamento, as consequências, a longo prazo, dos neurolépticos, mas também, a partir de 1973-74, a fliciatrie, ou como chamava Roger Gentis o psychoflicage , que é um dos piores efeitos da lei de 1838 que permite o internamento de pessoas sofrendo de problemas mentais sem passar pelo procedimento da interdição judiciária.
Os anos são marcados igualmente por uma modernização do ensino em psicologia clínica. Os estudantes de medicina são obrigados a seguir este ensino desde o primeiro ano de seu curso universitário. Até 1966, e segundo as universidades, são entre 25 e 100 horas de psicologia médica que são ensinadas a cada ano e mais de 26 temas que são abordados no momento dos ensinamentos, dentre os quais, a psicoterapia, a farmacopeia ou ainda a relação médico/paciente.

O ano de 1968 acelera este movimento das reformas, uma vez que é quando se institucionaliza a emancipação da psiquiatria da neurologia. Todavia, as recaídas reais sobre a organização e o funcionamento da instituição psiquiátrica não foram as que muitos tinham então esperado: terminou-se a informalidade, o partilhar dos saberes, a solidariedade entre os atendidos e os atendentes. Os grupos de trabalho não estatutário desaparecem e a não comunicação entre os serviços retorna. As críticas contra a instituição se leem. Várias publicações sobre a psiquiatria, suas práticas e sua história aparecem no momento da História da loucura. No mesmo ano, J.C. Pagé, hospitalizado em Saint Jean de Dieu, o maior hospital psiquiátrico do Quebec, publica Les fous crient au secours . Este testemunho de uma rara violência conduz, um ano mais tarde, ao estabelecimento, pelo governo do Quebec, de uma Comissão de Estudo dos Hospitais Psiquiátricos . É em 1961, igualmente, que Frantz Fanon publica no Maspero os Damnés de la terre . Ele se mostra, nesta publicação, hipercrítico diante do saber psiquiátrico, lembrando como este pode ser utilizado como instrumento de dominação, mas, sobretudo, como meio de legitimação e de justificação das posições de dominação existentes.


Máquina psiquiátrica russa

Fanon só retomava uma crítica que ele havia expressado dez anos antes em Le syndrome nord-africain , artigo que é publicado na revista Esprit (1952), na qual ele tenta salientar o caráter assimétrico da relação médico/paciente, mas, sobretudo, a relação saber/poder próprio à psiquiatria que estabelece o diagnóstico e toma a decisão do internamento . Em 1965, Jean Oury, Roger Gentis, Horrace Torrubia e Felix Guattari criam a Sociedade de psicoterapia institucional. Um ano mais tarde, Guattari empreende a publicação da revista Recherches cuja edição especial de junho de 1967 intitulada Programmation, architecture et psychiatrie , aborda a questão arquitetônica e urbana tentando refletir sobre a instalação dos prédios de tratamento e recepção na cidade.

No mesmo ano, Fernand Oury e Aida Vasquez, nas edições Maspero, publicam Vers une pédagogie institutionnelle , livro no qual eles lutam explicitamente contra a multiplicação das instituições concentracionárias e hierárquicas que estruturam a sociedade contemporânea no seu todo. Em termos de publicação, o ano de 1968 é também importante. Ele abre, em janeiro, com o Livro branco da psiquiatria, redigido por um grupo priquiatras que testemunha sobre uma psiquiatria engajada, decididamente voltada para a atividade de prevenção e de ensino. O que está em jogo em tal livro branco é preparar a psiquiatria para as futuras mudanças estruturais, com o aumento do número de psiquiatras particulares e a chegada de um novo imperativo econômico e ético concernindo o tratamento e o pagamento dos custos dos doentes. 1968 encerra-se com a tradução francesa de Asiles (publicada em 1961 nos Estados Unidos). Esta violenta denúncia do universo do hospital psiquiátrico e da instituição psiquiátrica pelo sociólogo E. Goffman demonstra que a instituição psiquiátrica não deve nada às razões médicas.

A partir de 1969, a crítica da instituição psiquiátrica é abordada em várias revistas, entre as quais os Etudes freudiennes [Estudos freudianos, NT], a edição 46 de fevereiro-março de 1969 da revista Partisans, intitulada Garde-fous, arrêtez de vous serrer les coudes , um encarte da revista Présences intitulado Feux croisés sur l’hôpital psychiatrique , enfim nas duas primeiras edições da revista Topiques são publicados artigos de Robert Castel e de Jacques Donzelot sobre a questão do processo de moralização defendida pela psiquiatria desde a lei de 1838. É a partir de 1969, também, que a tradução dos principais textos teóricos vindo dos antipsiquiatras internacionais se acelera. Pode-se notar a tradução de La politique de l’espérance [A Política da esperança, NT] de R. Laing, de A Instituição negada de F. Basaglia e de Psiquiatria e Antipsiquiatria de Cooper. Um livro que entrou imediatamente em eco com as principais teses enunciadas em 1968 sobre a família, uma vez que mostra como esta é primeiramente um instrumento de condicionamento ideológico encarregado de reforçar o poder da classe dominante . Pela primeira vez, a instituição, mas também a prática psiquiátrica, é interrogada a partir de uma perspectiva política claramente revelada. A reflexão que conduz os psiquiatras não se limita ao único campo das doenças mentais, ou à tentativa de destruição completa da prática psiquiátrica a partir da denúncia de sua função social, mas doravante se estende à estrutura e ao funcionamento da sociedade em seu todo.

Os meios psiquiátricos franceses abordam igualmente a questão do papel social e da psiquiatria e, mais particularmente, de seu papel nas práticas de normalização da sociedade. As violentas cargas de Vladimir Boukovski, em Une nouvelle maladie mentale en URSS: l’opposition , contra a máquina psiquiátrica russa, o reino do arbitrário, do segredo e do uso inconsiderado da farmacopeia, constituem somente um dos vários aspectos desta crítica do papel dos hospitais especiais russos na repressão política. Basta lembrar a reação de J. M. Domenach, em uma de suas crônicas de Esprit, para compreender a que ponto este problema toca um ponto central nas tentativas de contestação da psiquiatria: “Imaginemos, por um segundo, senhor Marcellin internando em hospitais psiquiátricos dependendo de seu ministério senhor Marchais ou senhor Rocard – e imaginemos os protestos” . La chronique des événements en cours [A crônica dos acontecimentos em curso, NT], revista russa Samizdat, publicada entre 1968 (após o internamento abusivo do escritor cristão Guénnady Mikhailovitch Chimanov,) e 1982, tentará ela também desvendar os instrumentos da repressão política fazendo saber como funciona realmente estes Hospitais Especiais russos.


Foucault tornou-se antipsiquiatra?

É neste quadro geral de reconfiguração da psiquiatria francesa que a História da loucura vai se estabelecer no início dos anos 1970. Para J. P. Rumen, Foucault inegavelmente interpretou um papel no desenvolvimento da teoria antipsi na França, particularmente por ter mostrado como a resposta do corpo social ao problema da loucura é sempre de ordem política . Em 1972, a tese Foucault torna-se uma referência explícita no mundo universitário. Em um livro intitulado L’introduction du changement dans un hôpital psychiatrique publico , o sociólogo J-0 Majastre trata da eliminação da cena social dos atores desviantes e da impermeabilidade sempre mais importante das fronteiras normativas usando conjuntamente os textos de W. Caudill, de E. Goffman e de Michel Foucault. Com Asiles, a História da loucura permite denunciar a realidade do hospital, o universo carcerário do tratamento psiquiátrico, assim como a natureza do tratamento da doença mental. Os dois atores fazem literalmente explodir a ideologia do hospital como máquina de tratamento, fantasia terapêutica e, sobretudo, lugar de uma sociedade que nega suas próprias contradições querendo se representar, a todo preço, como uma sociedade sadia.

Foucault especifica em três ocasiões de que maneira Loucura e desrazão obteve uma condição particular no seio dos diferentes movimentos antipsiquiátricos, franceses e estrangeiros. Em 1974, uma primeira vez, ele lembra ter escrito a História da loucura sem saber que a antipsiquiatria já existia: “A História da loucura, eu a escrevi um pouco às cegas, em um tipo de lirismo devido a experiências pessoais. Sou ligado a esse livro, é claro, porque o escrevi, mas, também porque servi de ‘caixa de ferramentas’ para pessoas diferentes umas das outras, como os psiquiatras da antipsiquiatria britânica, como Szasz nos Estados Unidos, como os sociólogos na França: eles buscaram, encontraram um capítulo, uma forma de análise, algo que lhes serviu posteriormente” .

Um ano mais tarde, ainda em uma entrevista, ele indica que não conhece “a obra de Laing e de Cooper. (...). Meu livro foi publicado na França em 1960. Os primeiros livros de Laing e de Cooper apareceram em 1958-1959, e foi Cooper quem traduziu meu livro em inglês. São trabalhos contemporâneos, mas nós nos ignoramos mutuamente. É interessante: Szasz e Bettelheim trabalhavam nos Estados Unidos, Laing e Cooper na Grã-Bretanha, Basaglia na Itália; todos, eles desenvolveram seus trabalhos em função de suas práticas medicais respectivas. Na França, não foi um médico que realizou este trabalho, mas um historiador como eu. Seria interessante saber por que a antipsiquiatria somente foi retomada pelos médicos franceses posteriormente. Mas, desde 1960, há este fenômeno de pessoas, que sem se conhecer, trabalham no mesmo assunto”. 
Voltando pela última vez em 1980, na recepção de A história da loucura para os psiquiatras e os antipsiquiatras franceses, Foucault relata em algumas linhas uma história da psiquiatria e de sua contestação na França: “Havia tido um pouco antes da guerra e sobre após a guerra, todo um movimento de questionamento da prática psiquiátrica, movimento nascido dos próprios psiquiatras. Estes jovens psiquiatras, após 1945, sem lançaram em análises, reflexões, projetos tais como o chamado antipsiquiatria teria provavelmente podido nascer na França no início dos anos 1950. Se isto não se produziu, ao meu ver, foi pelas seguintes razões: por um lado, vários desses psiquiatras estavam muito próximos do marxismo, se não eram marxistas, e, por este motivo, foram conduzidos a concentrar sua atenção no que acontecia na URSS e de lá a Pavlov e a reflexologia, em uma psiquiatria materialista e em todo um conjunto de problemas teóricos e científicos que não podia evidentemente conduzi-los muito longe. (…) Por outro lado, creio que muito rapidamente, vários foram conduzidos, devido à condição dos psiquiatras, que são funcionários públicos na maioria, a questionar a psiquiatria em termos de defesa sindical. Assim, estas pessoas, que, por suas capacidades, seus interesses e sua abertura para tantas coisas, teriam podido colocar problemas da psiquiatria, foram conduzidos a impasses. Diante da explosão da antipsiquiatria nos anos 1960, houve, por outro lado, uma atitude de rejeição cada vez mais marcada que tomou mesmo um viés agressivo. É neste momento que meu livro é apontado como se tivesse sido o evangelho do diabo. Sei que, em alguns meios, fala-se ainda de A História da loucura com um incrível desprezo” .

Neste panorama bastante preciso da antipsiquiatria, Foucault toma o cuidado de tornar a grande diversidade teórica e prática destes movimentos, assim como os principais rebaixamentos epistemológicos sobre os quais eles se formaram. Uma informação cronológica importante é dada: o nascimento da antipsiquiatria teria sido paralela à escrita de História da loucura. Efetivamente, as primeiras práticas antipsi foram iniciadas na Grã-Bretanha em 1962, data na qual Cooper estabelece o “pavilhão 21”, unidade experimental para esquizofrênicos que prefigura a Philadelphia Association de 1965 que lhe permitiu radicalizar os princípios de não diretividade e de comunidade terapêutica. No que diz respeito a Thomas Szasz, psiquiatra e psicanalista americano, são nos anos 1950 que este publica vários livros críticos sobre a instituição à qual ele pertencia. Ele denuncia particularmente a utilização da psiquiatria como meio de controle social, comparando o papel do psiquiatra em relação aos desviantes ao dos inquisidores em relação herética. (The Myth Of Mental Illness: Foundations of a Theory of Personal Conduct, publicado em 1961.) Interrogado sobre o livro de Szasz em 1976, Foucault insiste sobre o fato de que a história da psiquiatria feita por este “revela a função social da medicina em uma sociedade de normalização”, mas que acima de tudo, e em um eco do que ele contava fazer em 1961, Szasz diz que “a prática pela qual se localizava um número de pessoas, pela qual os suspeitava, os isolava, os interrogava, pela qual os ‘reconhecia’ como feiticeiros, esta técnica de poder, colocada em prática na Inquisição, é encontrada (após transformação) na prática psiquiátrica” .
Da parte italiana, já nos anos 1960, e ao lado da experiência de Gorizia conduzida por Basaglia, de outras experiências de transformação institucional são conduzidos, como, por exemplo, a Varèse e Pérouse. Ele faz observar, também, que Foucault insiste na importante diferença entre estes diversos movimentos de antipsiquiatria: o fato de que na França a crítica da instituição tenha principalmente sido levada pelas ciências sociais. Foucault fez evidentemente referência dizendo isto ao sociólogo Robert Castel , a quem se deve a tradução de Asylum em 1968, mas pode-se também ver uma referência aos trabalhos dos membros do CERFI  (Centre d'Études, de Recherches et de Formation Institutionnelles) , animado por Felix Guattari, e que reagrupa um coletivo de pesquisadores em ciências sociais em torno da crítica dos aparelhos do Estado, das instituições, do poder e das burocracias dos partidos políticos (Lion Murard e François Fourquet, Histoire de la Psychiatrie de secteur, Recherches n.17, 1975.)  Ainda aí, pode-se ver uma forma de contiguidade com o encaminhamento político que foi o de Foucault criando o GIP em 1971 . A antipsiquiatria anglo-saxônica, de inspiração sartriana, encontra na França diversos ecos como Maud Mannoni, o qual denuncia as “polícias adaptativas” em Psychiatre, son fou et la maladie ; também Roger Gentis estigmatiza as paredes do hospício, e Jean Oury lacaniza sua psicoterapia institucional. É esquecer que Foucault, durante o mesmo período, funcionou para todo um conjunto de profissionais da psiquiatria, mas também militantes e doentes, de forma mais implícita e privada que explícita e assumida.


A História da loucura, guia de ação política

As tentativas de colocar em crise o cotidiano do hospital, assim como de suas regras de funcionamento mais comuns, são no início dos anos 1960 fortemente ligados também à experiência do Grupo de Informação Prisão - GIP que, por uma lembrança das realidades da prisão procura fazer saber “quem vai, como e por que vai, o que acontece, o que é a vida dos prisioneiros e a, igualmente, do pessoal de vigilância, o que são os prédios, a comida, a higiene, como funciona o regulamento interno, o controle médico, os ateliers” . Nesta luta contra a instituição carcerária, Foucault desempenha um papel importante pelo seu engajamento. Ele próprio observa, inclusive, a importância, após a prisão, da crise de outras instituições do tipo carcerário como o hospício. Entretanto, especificidades tornam o trabalho difícil: “A diferença das revoltas de prisioneiros, a recusa do hospital pelo doente terá sem dúvida muito mais dificuldade de se afirmar como uma recusa coletiva e política. O problema é de saber se os doentes submetidos à segregação do hospício podem de erguer contra a instituição e finalmente denunciar o próprio partilhar que os designou e excluiu como doentes mentais”. 

É diante deste tipo de problema que os grupos de lutas contra a psiquiatria hospitalar, cujo GIA, que se criou em 1971, devem confrontar-se. A nova política de setorização é, inclusive, muito incriminada para reconduzir, no enquadramento das populações que ela subentende, uma grande parte da situação hospitalar. Nesta situação inextricável, quais são as possibilidades: destruir o hospício? Recusar a posição do psiquiatra arriscando tornar os tratamentos inoperantes?

A criação do Grupo de Informação Hospício - GIA, na sequência do Comitê de Ação Saúde, grupo no início composto por jovens psiquiatras e paramédicos, vai totalmente transformar a instituição por ações de apoio aos doentes, mas também por um questionamento das práticas empíricas e científicas, produzidas pela instituição psiquiátrica. É denunciando sistematicamente os escândalos da psiquiatria hospitalar - mais particularmente aqueles relacionados com a lei de 1838 – que GIA procura repensar o “HP”, não somente transformando para que ele se integre “melhor” à sociedade moderna – o que certos psiquiatras esperavam com o setor -, mas tentando colocar deliberadamente em crise esta instituição em seus fundamentos epistemológicos, históricos, jurídicos e medicais. Após ter rapidamente estourado em grupos de bairros, maneira de opor uma luta regional à setorização do tratamento, o GIA arma uma modificação da relação de forças na instituição psiquiátrica. La peur change de camp  é o título de um dos seus fascículos.
Outros movimentos são também ativos e utilizam Foucault. Psychiatrie et lutte des classes  cuja edição 00 é publicada em dezembro de 1973; Gardes-fous que, a partir de fevereiro de 1974, tem por ambição lutar contra a psiquiatria e desenvolver uma luta geral contra a opressão exercida pelo estado de classe; o jornal da AERLIP (Associação para o Estudo e a Redação do livro Francos das Instituições Psiquiátricas), mensal que é publicado de fevereiro de 1976 a dezembro de 1978 e que opta por uma contestação do poder médico e do sistema profissional da saúde/paciente no seu todo. Divididos politicamente, estes grupos dividem ao menos duas coisas: o fato de considerar a psiquiatria como uma violência física que tem por função excluir aquele que não se conforma com as normas e, para os mais radicais, o fato de considerar a loucura e os comportamentos desviantes não como uma doença mental, mas como uma forma de revolta contra as normas da sociedade . Eles têm todos por ambição de difundir das armas de lutas necessárias para que todos – ou seja, profissionais e internos – possam combater juntos as formas de opressão defendidas pela instituição psiquiátrica. A maioria das evocações de Foucault nestes grupos  está implícita, mas testemunham sobre uma real comunidade de questionamento que diz respeito a, pelo menos, três pontos específicos que são também três exigências de transformação do paradigma psiquiátrico em seu todo.

A) O fato, primeiramente, de ler a “loucura” como um fenômeno de exclusão social, representativo de uma forma organizacional da sociedade. O doente mental é primeiramente um excluído, um homem sem direito, vítima de uma rejeição. De maneira geral, eles apontam como causas da loucura a sociedade, as desigualdades (escolares, lazer, liberdades), a exploração de uma classe por outra, assim como o funcionamento cada vez mais autoritário e repressivo próprio ao sistema capitalista. Em sua publicação mensal, o jornal da AERLIP faz a loucura aparecer como o produto do estado econômico e político da sociedade ocidental. Trata-se de mostrar que a doença mental – mais que a loucura, é primeiramente o produto de transformação “do mal-estar de viver de um sujeito por uma série de instituições sociais (medicina, psiquiatria, justiça, assistência social, grande imprensa) que conferem ao dito sujeito um status, um lugar, uma identidade socialmente identificáveis, controláveis e remodeláveis. Este mal-estar em viver tem relações extremamente estreitas com o sistema social e seus hábitos que trancam cada um no mais profundo” .

B) É também o aspecto repressivo do aprisionamento psiquiátrico que é fortemente criticado. Se Foucault efetivamente mostrou a existência de uma correlação entre a estrutura econômica e as formas de assistência, a ambição claramente explicitada da revista Psychiatrisés en lutte  é de visar, seguindo esta perspectiva, a transformação da lei de 1838 e “a destruição do saber psiquiátrico como saber especializado (…) enquanto que ele representa uma administração e relações políticas pela sua posição de agente a serviço da classe dominante” . A psiquiatria é uma questão ao mesmo tempo administrativa e médica na qual as práticas são rudimentares e as mudanças são fracas.

C) Enfim, uma última zona de transação diz respeito à incapacidade da psiquiatria de estar em bons termos com sua história. É em todo o caso a versão defendida pela revista Psychiatrie et lutte des classes  que lembra que a única forma de explicar as transformações atuais da psiquiatria – particularmente a política de setor – é “de compreender a história das instituições psiquiátricas, o lugar que a burguesia cede à loucura, o papel que ela faz desempenhar aos trabalhadores da saúde mental, desde a constituição do capitalismo no século XVII até o seu apogeu no século XIX e seu declínio atual” . Este retorno na história da instituição psiquiátrica supõe também uma crítica da noção de doença mental e de sua dimensão classificatória.

Para concluir, deve-se questionar como o próprio Foucault o fez, por que e como a “arqueologia” foucaultiana da loucura encontrou um lugar importante em críticas tão radicais da psiquiatria, o psiquiatra, do hospital ou ainda da política do setor. “Quando eu havia experimentado fazer ‘a história da loucura’, declara ele em 1977, eu havia tentado contar o que tinha acontecido até o começo do século XIX; ora os psiquiatras entenderam a minha análise como um ataque contra a psiquiatria... Por que uma arqueologia da psiquiatria funciona como antipsiquiatria, enquanto uma arqueologia da biologia não funciona como uma antibiologia?”
A razão tem sem dúvida a real “força” subversiva de sua arqueologia. Foucault, em efeito, procura questionar os limites da doença mental tomando como contraponto os diferentes discursos oficiais mantidos sobre a loucura, como, por exemplo, o de Henry Ey ou, principalmente, o mantido por Henri Baruk. Segundo eles, Foucault negaria a doença mental como fato médico. Seu olhar sobre a loucura aparece a estes dois psiquiatras como uma doutrina niilista que coloca deliberadamente em questão certos valores fundamentais: o da verdade, do progresso e da razão.

Sobretudo, o objetivo comum a estes grupos de contestação e á abordagem de Foucault é de tentar produzir efeitos políticos sob a forma de mudanças nas práticas. Para o GIA trata-se de fazer sair do “HP” todos aqueles que têm o mínimo de possibilidade de sobreviver no exterior. Para Psy en lutte, e como o havia feito antes o GIP, de informar os pacientes sobre os riscos de alguns tratamentos como a quimioterapia, mas também sobre os tratamentos, às vezes violentos, contra o alcoolismo. Uma denúncia que somente pode passar pela coleta de testemunhos de psicanalistas sobre os efeitos provocados pelos medicamentos, mas também pela coleta da informação do profissional da saúde. Na edição n.13-14 de Psy en lutte, a revista batalha por um “controle coletivo e permanente dos tratamentos, o conhecimento pelo interessado do tratamento aplicado e efeitos secundários eventuais. O direito de recusar um medicamento, o direito de ser informado, de estar em posse de uma receita clara em escrita não cifrada, a abolição dos tratamentos irreversíveis”. Como finalmente, mudar as condições de vida dos internos no próprio hospital, restituindo-lhes, no mínimo, os direitos que eles haviam perdido na entrada? Como, também, fazer penetrar mais do mundo exterior no interior da instituição e, em retorno, como fazer cruzar os muros do hospício para penetrar mais nos espaços públicos?

Tornando, pela primeira vez, a prática psiquiátrica duvidosa, mostrando como ela não tem objeto estável, a originalidade do uso de Foucault no centro dos movimentos de contestação, movimentos que nunca conseguiram se federar ou iniciar uma luta global contra o sistema, reside então menos no reemprego do conteúdo de suas teorias do que na capacidade que estas revistas tinham, então, de mobilizar este autor, segundo as urgências da prática.

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