Edição 363 | 30 Mai 2011

A ‘‘reforma da Reforma’’ litúrgica: ‘‘Onde ficam os outros 1.500 anos de cristianismos?’’

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Moisés Sbardelotto

Para o teólogo, o caráter positivo da nova instrução é o “fato de se admitirem na Igreja, preocupada com a unidade, a multiplicidade de fórmulas”. No entanto, “não se estaria privilegiando uma determinada forma de espiritualidade e deixando as demais na sombra e na desilusão?”

No dia 13 deste mês, a Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, do Vaticano, divulgou a instrução Universae Ecclesiae, contendo normas de aplicação de um documento do Papa Bento XVI de 2007 que promulgava “uma lei para a Igreja universal” no intuito de regular o uso da liturgia romana anterior à reforma realizada em 1970, no Concílio Vaticano II.

Agora, além de celebrar a missa com o Missal Romano em sua versão atualizada pelo Concílio – cujas grandes modificações são o uso da língua vernácula de cada local, a simplificação dos ritos e o altar separado da parede, em que o padre celebra voltado para o povo –, também há a possibilidade de retomar o Missal de São Pio V, do século XVI – rezado em latim, com o sacerdote versus Deum (voltado para Deus, de costas para os fiéis), com um rito muito mais rebuscado e repleto de rubricas.

Para o teólogo Erico Hammes, a leitura da instrução revela o caráter positivo do “fato de se admitirem na Igreja, preocupada com a unidade, a multiplicidade de fórmulas”, embora fosse “desejável que outras maneiras legítimas fossem estimuladas”. Também é positiva “a qualificação de ‘extraordinária’ para a forma anterior”, pois, “ordinariamente, quando se trata de celebração para o povo cristão, o Missal de Paulo VI há de ser usado”.

No entanto, questiona, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “não se estaria privilegiando uma determinada forma de espiritualidade e deixando as demais na sombra e na desilusão?”
Erico Hammes é mestre e doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, em Roma, com a tese Filii in Filio: A divindade de Jesus como evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em Jon Sobrino (Porto Alegre: Edipucrs, 1995). Padre católico, é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição e em Teologia pela PUCRS.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o senhor recebeu a publicação da instrução Universae Ecclesiae? Como o senhor a interpreta no atual momento da Igreja?

Erico Hammes –
Recebi a instrução com alegria, porque regulamenta algumas coisas que parecem não ser tão simples como se esperaria. Tenta corrigir inadequações na aplicação da possibilidade de rezar a missa com a fórmula de Pio V. Deixa entrever que não basta querer a forma anterior ao Concílio Vaticano II para estar de acordo com a Igreja. Positivo é também o fato de se admitirem na Igreja, preocupada com a unidade, a multiplicidade de fórmulas. Seria desejável que outras maneiras legítimas fossem estimuladas. Positivo é também o fato de manter a qualificação de “extraordinária” para a forma anterior. Diz-se, dessa maneira, de forma explícita, que ordinariamente, quando se trata de celebração para o povo cristão, o Missal de Paulo VI há de ser usado.

De outro lado, é preocupante que seja necessário despender tanto esforço para ir ao encontro de alguns grupos na Igreja. De fato, o documento anterior, ao qual esta instrução se refere, o “Motu Proprio” Summorum Pontificum, de 2007, refere o indulto especial Quattuor abhinc annos, de João Paulo II, em 1984, concedendo a faculdade de usar o Missal Romano editado por João XXIII em 1962. Mais tarde, no ano de 1988, a Carta Apostólica Ecclesia Dei, do mesmo João Paulo II, “exortou aos bispos a utilizar ampla e generosamente esta faculdade em favor de todos os fiéis que o solicitassem”. Universae Ecclesiae é, então, o quarto documento, dos dois últimos papas a respeito desse assunto. Vista sobre o pano de fundo das sucessivas intervenções restritivas no tocante à reforma litúrgica, proposta pelo Concílio Vaticano II e as esperanças de que seja mais ampla, fica difícil pensar que se trata apenas da preocupação com o bem espiritual de todos os fiéis. Não se estaria privilegiando uma determinada forma de espiritualidade e deixando as demais na sombra e na desilusão?


IHU On-Line – A Universae Ecclesiae também se manifesta como uma resposta aos fiéis que “expressaram o ardente desejo de conservar a antiga tradição”. No fundo, o que significa e que sentido tem a Tradição para a vida da Igreja?

Erico Hammes –
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a “antiga tradição”, nesse caso, não tem 500 anos. A Igreja, no entanto, existe há mais de 2.000. É claro que o Missal de Pio V, em seu tempo, recolheu elementos da tradição anterior, mas também deixou de lado muitos aspectos. O fato de algumas pessoas desejarem a missa em suas antigas formulações é, em si, algo neutro. Gostar de casa e móveis antigos, de música e língua latina, é tão relevante quanto gostar de arquitetura moderna, de língua e literatura francesa. O problema, naturalmente, se põe quando se quer impor uma superioridade do primeiro sobre o segundo. Deve lembrar-se que, salvo opiniões isoladas, Jesus não falava habitualmente latim. E nem os evangelhos vincularam a celebração a uma determinada língua, embora no judaísmo o hebraico fosse a língua litúrgica mais comum. Pelo contrário: Paulo enfrentou Pedro, o primeiro bispo de Roma e sinal de unidade no Colégio Apostólico, rompendo a vinculação às tradições judaicas. Pode imaginar-se o que diria aos atuais movimentos de reabilitação das tradições pós-medievais.

A Tradição é um rico tesouro no qual se podem buscar muitas alternativas de expressão litúrgica. É preciso lembrar que o Concílio Vaticano II foi uma consequência da “volta às fontes”, o que nem sempre foi bem visto, justamente nos círculos conservadores da Igreja. A Teologia condensada na liturgia anterior a esse Concílio produziu a redução teológica dos 450 anos anteriores. Basta mencionar a quase ausência de estudos bíblicos, do conhecimento da cultura e tradição judaicas, a identificação do latim como a língua mais importante para a fé, o método teológico da baixa escolástica, a ausência quase total da reflexão trinitária e pneumatológica, uma Cristologia sem Jesus e sem História, uma espiritualidade devocional, e a Liturgia transformada em ritualismo.


IHU On-Line – Em termos teológico-litúrgicos gerais, o que diferencia o rito extraordinário (tridentino) e o rito ordinário (pós-Vaticano II)? Que mistério e que Igreja são ressaltados em cada um deles?

Erico Hammes –
Junto com o Missal de Pio V/João XXIII vem o contexto da Contrarreforma. A Igreja queria e precisava insistir em determinados aspectos distintivos da Reforma Protestante. Nessa preocupação, confundiu-se luteranismo com heresia em bloco: bastava que Lutero o tivesse dito para desqualificá-lo. Essa tendência ainda está presente nos dias atuais. Assim, quem insiste na Palavra de Deus é acusado de ter influência luterana; quem insiste na dimensão convivial da Liturgia Eucarística é protestante. Ora, basta ler com atenção as narrativas do Novo Testamento sobre a Instituição da Eucaristia, para notar que estão construídas sobre a tradição judaica da Palavra e da ceia.

Do ponto de vista da Igreja, insiste-se mais na estrutura do que no Espírito Santo. As fórmulas insistem na pessoa do Cristo como vítima de expiação, mas o Mistério trinitário, especialmente a força do Espírito, não se faz presente. E assim é entendida a Igreja Católica: lugar quase exclusivo e excludente de salvação, ao invés de ser o sinal ou sacramento como povo em caminho para a casa do Pai, em meio ao mundo.


IHU On-Line – Fala-se que essas medidas são os passos de uma “reforma da reforma” do Vaticano II. O Vaticano II precisa ser relido no contexto atual? Como deveria se dar essa releitura?

Erico Hammes –
Semper reformanda é uma expressão antiga para a Igreja. Sob essa perspectiva também a reforma precisa ser reformada. É claro que seria de se esperar que a reforma fosse em base à grande Tradição – e não ao tradicionalismo –, mas prospectiva e não retrospectiva, como se o simples desenterrar do passado capacitasse ao futuro. O Concílio Vaticano II precisa ser relido, sim, no contexto atual e com as perguntas recentes, porque as mudanças são muito grandes de lá a esta data. Mas seria fatal entender a releitura em termos de fuga. A Igreja precisa ouvir ao menos a sua maioria e não reagir apenas quando alguém manifesta saudade do passado ou medo do presente. Há também muitos fiéis ansiosos por reviver os “bons tempos” pós-conciliares. Esses poderão manter sua esperança ou deverão resignar-se ao inconformismo, como acontece aos milhões, hoje, mundo afora? Precisarão morrer na desilusão de crer na presença divina hoje na história?


IHU On-Line – Por outro lado, a instrução diz que a celebração da missa tridentina deve ser feita por um “sacerdote idôneo” que saiba “pronunciar as palavras [em latim] de modo correto e entender o seu significado”. Como fica a participação litúrgica dos fiéis em uma língua morta? Que significação a pessoa do sacerdote adquire?

Erico Hammes –
A questão do “sacerdote idôneo” é positiva porque dá a entender que alguns apressados, não idôneos, podem ter sido capturados pela sedução do antigo revivificado. Supõe também que há muitos idôneos não seduzidos. Em base ao documento de 2007, sabe-se que houve até mesmo resistência explícita a ceder aos fiéis tradicionalistas. Tudo isso, no entanto, parece contar pouco diante da forte vontade de oferecer a oportunidade aos que têm o desejo da liturgia desconhecida. Em vários países da Europa ainda existem muitas pessoas informadas sobre a língua latina. Não é, lamentavelmente, o caso brasileiro. Em torno de 90% da nossa população, incluída uma boa porcentagem de padres, sequer falam e escrevem corretamente sua língua pátria e têm uma enorme dificuldade com o português litúrgico. Em todos os casos, para quem o latim seja mais nativo do que o português ou outra língua, é saudável ter o acesso à liturgia nessa língua.

Quanto à figura do padre, está em coerência com todo o movimento do qual a missa é apenas uma das expressões. Tende a ser mistificado e tornado um semideus, com os riscos inerentes a essa extrapolação: sua condição humana corre o risco de ser reprimida em troca de uma exteriorização fragilizadora. É preciso dizer, porém, que essa não é uma tendência relacionada à missa em latim. Pode estar em qualquer um e também nos que a desprezam apenas por ser diferente.


IHU On-Line – Alguns comentaristas apontam que, no embate entre os ritos litúrgicos, estão em questão as diferenças entre o “altar do sacrifício” e a “mesa da ceia”. Como resolver essa tensão?

Erico Hammes –
Do ponto de vista da Psicologia da Religião, seria possível fazer essa oposição. A História das Religiões e os estudos de Antropologia Cultural e de mais estudos correspondentes não permitem contrapor uma e outra coisa. Como a etimologia da palavra sacrifício, de origem latina, nos diz, trata-se de tornar algo sagrado. E isso pode acontecer de diferentes formas: separando para a divindade, queimando em holocausto ou repartindo com Deus. O judaísmo conhecia oito formas diferentes de sacrifício, sendo todas elas, com exceção do holocausto, com participação em forma de comida. A mais expressamente comensal era a ceia pascal.
Como se pode deduzir da teologia joanina, Jesus é o Cordeiro Pascal e o Pão Ázimo da ceia definitiva. Por conseguinte, sua cruz é sua transformação em alimento para a vida do mundo. Nos evangelhos sinóticos, a celebração da ceia é o anúncio de sua morte na cruz e a continuidade da sua morte e ressurreição: a morte de cruz é antecipada como descida divina em forma de corpo a ser tomado e comido e como sangue a ser derramado e bebido em remissão dos pecados.

É claro que se pode insistir na compreensão dolorosa de uma satisfação à sede divina pela satisfação dos pecados. Porém, é necessário dar-se conta dos seus efeitos sobre a imagem do próprio Mistério Divino, facilmente transformado em terror em vez de ser o amor pelo filho amado.

A oposição entre altar e mesa existe apenas superficialmente. De fato, uma vez que sacrifício é essencialmente um ato de comunhão com a transcendência, todo altar é essencialmente mesa e toda mesa é altar. A oposição não é de natureza: é apenas de perspectiva. No cristianismo, o altar é sempre Jesus de tal modo que é ele mesmo quem se entrega, e, portanto, vem ao encontro do ser humano em forma de alimento. O sacrifício é descendente, vem de Deus e se nos oferece para que, ao comungá-lo, dele participemos.


IHU On-Line – Na carta enviada aos bispos acompanhando o motu proprio, Bento XVI diz: “Não existe qualquer contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum. Na história da Liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado”. Como interpretar essa afirmação em nossa era marcada por tantos “pós”, enfim, um novo período histórico?

Erico Hammes –
Certamente não há contradição, mas seria parcial dizer que não tem vinculação com o seu tempo. O Missal de Pio V/João XXIII respondia a uma determinada situação da Igreja e do mundo. Para quem essa forma de liturgia responde hoje, nada obsta que a visite. E vale o exemplo acima: na medida em que se trata de um dos aspectos do tesouro da Tradição da Igreja, pode ser recuperado. Até mesmo favorece a determinados aspectos da era pós que vivemos. Assim como se buscam cultos orientais, fundamentalismos, integrismos, misticismos e magias em outros âmbitos, também aqui se corre o risco de aceitar um ritual anterior como sucedâneo para o esforço de pensamento, de uma mística e contemplação acessíveis aos tempos atuais.

É difícil fugir da impressão de uma certa desconfiança com tudo o que a Teologia, a Igreja e a Liturgia realizaram ao longo do século XX. Voltar a Pio V pode dar a impressão de certezas e seguranças longe do confronto com as perguntas e interrogações do ser humano atual. Qual é o apoio e o respaldo que recebem todas aquelas pessoas que diariamente precisam dar conta das perguntas prospectivas que angustiam mães e pais, mulheres e jovens de nossos dias? Qual é a audiência intraeclesial que têm aqueles bispos e agentes de evangelização que, dia após dia, são desafiados pelas perguntas angustiantes de pobres, de cientistas, de políticos que precisam tomar as decisões vitais de sobrevivência de si e da humanidade? Esses fiéis não mereceriam uma atenção proporcional à que é dispensada aos grupos movidos pelo olhar para os últimos 500 anos? Onde ficam os outros 1.500 anos de cristianismos? As angústias de todas aquelas pessoas que nem conseguem acompanhar o Missal atual estão sendo contempladas?


Leia Mais...

Erico Hammes já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.

* Comblin e a reinvenção da igreja. Edição 356 da revista IHU On-Line, de 04-04-2011

* Fórum Mundial de Teologia e Libertação, uma conquista a ser potencializada. Edição 357, 11-04-2011

* Conceito e missão da Teologia em Karl Rahner. Edição 5 dos Cadernos Teologia Pública, de 01-05-2004

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