Edição 362 | 23 Mai 2011

Solidariedade, um convite para conhecer o ser humano

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Anelise Zanoni | Tradução: Benno Dischinger

Engajados na integração de refugiados, membros do Serviço Jesuíta a Refugiados têm como desafio ajudar a atacar as causas que provocam o deslocamento forçado das populações dentro e fora do país de origem

Em um mundo dividido entre os progressos da globalização e a massa crescente de excluídos, a solidariedade desponta como uma solução para amenizar diferenças. Dentro desse panorama, organizações sem fins lucrativos se inserem na causa com o poder de montar redes de apoio, como é o caso do Serviço Jesuíta a Refugiados – SJR.

“Uma organização como SJR - cujo mandato específico é acompanhar, servir e defender os refugiados - tem como missão dinamizar no interior do corpo apostólico as sinergias adequadas para uma resposta eficaz às necessidades dos refugiados”, explica o Pe. Alfredo Infante, diretor da agência.

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Infante e outros dois importantes nomes do SJR falam sobre os desafios encontrados em terras colombianas e haitianas para lidar com desabrigados e fazem uma reflexão profunda a respeito do papel da ajuda solidária para amenizar os resultados de conflitos e tragédias.

“A solidariedade convida a ver (...) o ser humano [antes de ver o não cidadão, o estrangeiro, o refugiado], a compadecer-se com seus sofrimentos e empreender ações para reduzir seus sofrimentos, devolvendo-lhes a dignidade e protegendo a vida e os direitos humanos”, explica Edson Loidor, coordenador do SJR para incidências relacionadas ao Haiti.

Para o cientista político colombiano Felipe Carrillo, a fim de saber proteger é preciso “entender as causas que têm conduzido as pessoas a abandonarem seu lugar de residência, para proteger suas vidas e sua integridade”.

Filósofo pela Universidade Jesuíta Mexicana, Wooldy Edson Louidor é coordenador de comunicação do SJR para incidências relacionadas ao Haiti e associado do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais. Juan Felipe Carrillo é professor e cientista político formado pela Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá e coordenador de incidências na Colômbia e em países vizinhos. Pe. Alfredo Infante é educador e mestre em teologia espiritual. Atua no Serviço Jesuíta a Refugiados desde 1996, coordenando projetos educativos e pastorais em comunidades repatriadas, e atualmente é diretor do SJR na Venezuela.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como os cidadãos podem utilizar a solidariedade para reduzir os problemas dos refugiados no mundo?

Wooldy Edson Louidor -
Os problemas dos refugiados interpelam a atenção e a consciência do mundo sobre uma variedade de situações políticas, sociais, econômicas e de meio ambiente que obriga seres humanos e famílias a fugirem de suas casas e de seus países para buscar refúgio fora de sua nação de origem. Por exemplo, no caso do Haiti, um terremoto de magnitude 7.0 na escala Richter devastou, no dia 12 de janeiro de 2010, grande parte deste país e agravou a situação humanitária e a pobreza que já enfrentava. Na raiz da crise e de outros desastres sucessivos que afetaram o país, tais como a epidemia de cólera, os furacões, cada vez mais haitianos são obrigados a migrar para outros países da região da América Latina e do Caribe para sobreviver.

Neste contexto, a solidariedade é o princípio-chave que pode motivar os diferentes governos da região a abrirem-se mais além de suas políticas migratórias nacionais e das orientações normativas de proteção internacional dos refugiados, para entenderem o grave problema humanitário do Haiti que os força a fugirem de seu país e para brindarem atenção e proteção a esses migrantes forçados. A solidariedade convida a ver, antes de tudo e acima de tudo, o ser humano, a compadecer-se com seus sofrimentos e empreender ações para reduzir seus sofrimentos, devolvendo-lhes sua dignidade e protegendo sua vida e seus direitos humanos.
Em concordância com o título e o enfoque de um documento elaborado pelo Vaticano em 1992, “Refugees: A challenge to solidarity ”, os problemas dos refugiados têm a ver essencialmente com a solidariedade que deveria ser o fundamento de todos os princípios, mecanismos, instituições, legislações e políticas de atenção e proteção aos refugiados para construir um mundo realmente humano, em que não haja refugiados e em que possamos superar “a maior tragédia de todas as tragédias de nossos tempos”, segundo a definição que deu o Papa João Paulo II à situação dos refugiados no mundo.


Juan Felipe Carrillo - Um dos principais problemas que vivenciei durante este tempo ao serviço dos refugiados tem a ver com os comportamentos xenofóbicos. Este é um problema que não é novo, já que tem suas raízes na conformação das nações modernas em que, a partir de dinâmicas de inclusão e exclusão, foram se conformando paralelamente as identidades nacionais e, com elas, a construção da noção do estrangeiro. Sendo estes últimos aqueles que vêm de fora ou que não pertencem a um lugar determinado.

No contexto atual, doutrinas políticas como a luta contra o terrorismo, que põem no presente a luta contra uma ameaça que vem de fora, têm levado a que as dinâmicas de exclusão e repulsa com “o estrangeiro” tenham aumentado dramaticamente, manifestando-se em comportamento xenofóbicos com os estrangeiros e, em especial, com os refugiados, cuja afluência massiva é vista, na maioria dos casos, como uma ameaça e, por isso, como um assunto de segurança nacional. E é frente a esses comportamentos xenofóbicos (expressos em estigmatização e discriminação) que devem estar enfocadas, num primeiro momento, as relações solidárias. Trata-se de entender as causas que têm conduzido as pessoas a abandonarem seu lugar de residência, para proteger suas vidas e sua integridade. É a partir desta compreensão que os cidadãos podem propor mudanças não só em políticas, mas também práticas includentes que facilitem a integração dos refugiados nas sociedades de acolhida, em condições que lhes permitam recuperarem sua dignidade.


IHU On-Line - Como percebe o estabelecimento da família de refugiados e os desafios que ela precisa viver?

Wooldy Edson Louidor -
Essas famílias enfrentam diferentes problemas. Um dos mais recorrentes é o acesso à documentação, já que os governos aplicam políticas migratórias e de refúgio cada vez mais restritivas que tendem a negar o estatuto de refugiados aos solicitantes. No caso dos migrantes forçados haitianos, os governos da região da América Latina e do Caribe não os reconhecem como solicitantes de asilo, já que consideram que não fogem de seu país por “temor fundado de perseguição por razões étnicas, religiosas ou por pertença a um partido político...”, como o estabelece a Convenção de Genebra sobre o Estatuto de Refugiados de 1961 , senão pela pobreza ou pela crise humanitária devida ao terremoto. Os governos da República Dominicana, por exemplo, as Bahamas e os Estados Unidos os fazem retornar e deportam os haitianos, logo após haver aplicado, imediatamente depois do terremoto, uma política de abertura e de solidariedade, caracterizada fundamentalmente pela adoção de uma moratória sobre a deportação dos haitianos e por medidas especiais de regularização migratório a favor deles.


A barreira do idioma

O segundo problema é a dificuldade para a reunificação familiar. Vários refugiados estão separados de suas famílias, principalmente de seus filhos, seus esposos ou esposas. Ademais, por não terem seus documentos legais nem o estatuto de refugiados, enfrentam certas restrições para viajar até seus países de origem. Esta situação constitui uma fonte de sofrimento para os refugiados, os solicitantes de asilo ou os migrantes forçados nos países de chegada, como também para os membros de suas famílias que permaneceram em seus países de origem. No caso dos haitianos, os que estão no exterior pagam a redes de traficantes para que lhes tragam o restante de suas famílias.

O terceiro problema é a dificuldade de integração nos países de acolhida. No caso dos haitianos que chegam à América Latina e ao Caribe, eles enfrentam várias barreiras, entre elas o idioma, o racismo e a discriminação para aceder a fontes de empregos e a serviços sociais básicos. Os haitianos falam seu idioma materno, o crioulo e o francês, enquanto na região se fala majoritariamente o espanhol e o português. Os haitianos são afrodescendentes, enquanto em vários países da região existe grande estigmatização e inclusive racismo contra essa descendência. Além disso, eles são estigmatizados como pobres que vêm tomar os empregos dos nacionais ou, pior ainda, como indivíduos que serão uma carga para a sociedade de acolhida. No México e no Equador, por exemplo, inclusive os haitianos que conseguem regularizar sua situação migratória são rechaçados pelos empregadores que lhes negam oportunidades de trabalho pela simples razão de serem estrangeiros, negros e haitianos.


IHU On-Line - O Haiti, país que já sofre pela pobreza, tem agora milhões de pessoas sem lar e que buscam refúgio. Como vocês formaram uma rede de proteção a essas pessoas?

Wooldy Edson Louidor -
O agravamento da pobreza e as condições socioeconômicas no Haiti por razão do terremoto obrigam os haitianos a fugirem do país de maneira regular ou irregular. As redes de drogas e tráfico estão aproveitando o desespero deles e principalmente os jovens para oferecer-lhes estudos e trabalho na América Latina (Equador, Venezuela, Chile, Brasil), inclusive nos Estados Unidos e na Europa via Guiana Francesa.

Ante esta situação, realizamos ações no país de origem, Haiti, onde trabalhamos junto com os desalojados nos acampamentos, com os habitantes das comunidades fronteiriças com a República Dominicana, com outras organizações não governamentais e com outras entidades, para melhorar as condições de vida dos haitianos em seu próprio país, oferecendo-lhes, assim, uma alternativa à emigração. Realizamos ações de incidência ante o Estado haitiano para que programasse uma estratégia de luta contra as redes de drogas e tráfico, para que ofereça proteção consular à diáspora humana que está desprotegida em vários países da América do Sul, tais como o Equador, a Bolívia, o Peru. Da mesma forma, no escritório regional do SJR na América Latina e no Caribe, estamos trabalhando sobre a construção de uma rede de proteção dos haitianos que estão chegando a distintos países da região através dos fluxos: México, Equador, Venezuela, Chile, Brasil, Colômbia.

O SJR tem trabalho de campo no Equador, na Venezuela, na República Dominicana, mas nossa proposta de criação de uma rede regional de proteção dos fluxos haitianos responde à necessidade de dar uma resposta regional a um desafio regional. Os traficantes e comerciantes estão utilizando vários países da região como lugares de trânsito, tais como Cuba ou a República Dominicana, para atrair os haitianos à América do Sul, onde está operando uma rede complexa de delinquentes: no Equador, no Peru, no Chile, no Brasil e na Bolívia. É preciso abordar a situação das drogas e do tráfico de maneira regional para, assim, proteger os haitianos implicados como vítimas nestes fluxos, levando aos governos da região e inclusive a blocos e organizações regionais, como a União das Nações Sul-Americanas - Unasul, a Organização dos Estados Americanos - OEA a solicitação de serem mais solidárias com os migrantes e refugiados haitianos, protegendo também as vítimas haitianas do tráfico e de trabalharem mancomunadamente na luta contra as redes de drogas e tráfico.


IHU On-Line – Qual é o maior desafio para a América Latina em relação aos refugiados?

Padre Alfredo Infante e Wooldy Edson Louidor -
Um dos grandes desafios é o de atacar as causas que provocam o deslocamento forçado das populações dentro e fora do país de origem. No caso do Haiti, a crise humanitária deve ser entendida como um desafio regional. Por isso, é fundamental a cooperação e a solidariedade de todos os países da região para ajudar o Haiti a superar a crise que está provocando a migração forçada dos haitianos.

Outro desafio que dá visibilidade à situação é como reduzir ou mitigar a vulnerabilidade dos países da região frente aos desastres naturais, no contexto do aquecimento global e da mudança climática. Países como o Chile, o Haiti e o México têm um alto grau de vulnerabilidade sísmica, enquanto outros, como a Colômbia e países do Caribe enfrentam cada ano fenômenos hidrometereológicos (furacões, temporada de chuvas invernais). Decorre daí a necessidade de começar a estabelecer mecanismos, princípios e instituições para atenderem esses refugiados ambientais.

O caso do Haiti, no qual os países da região e agências internacionais como o ACNUR enfrentam o dilema de considerar ou não os migrantes como refugiados, expressa este desafio que tem a América Latina em relação com a atenção e proteção dos refugiados médio-ambientais.


Juan Felipe Carrillo – Na América Latina temos diferentes tipos de crises humanitárias associadas ao refúgio. Por uma parte, crises passadas que, porém, permanecem no tempo ante a impossibilidade que as pessoas acedam a soluções duradouras, casos tais como o da Guatemala, ou o dos deslocados no Peru. Por outra parte estão os casos de crises potenciais, como a que se está produzindo em consequência da violência no México, seja ela passada ou atual, sendo a primeira o caso de Chiapas e a segunda a que está se produzindo como consequência da violência associada à guerra contra os cartéis da droga.
Adicionalmente temos a principal crise humanitária no continente relacionada com a violência na Colômbia, a qual produziu desde meados da década de 1990 até a atualidade um número estimado de 270.000 pessoas em necessidade de proteção internacional, assentadas tão só no Equador, na Venezuela e no Panamá. Neste sentido, também é preciso fazer menção da crise humanitária que se vive no Haiti e que tem conduzido a um dramático aumento no fluxo de haitianos para a República Dominicana e para outros países dentro e fora da região. Este último caso tem a particularidade de que as causas que têm conduzido as pessoas a abandonarem seu país as impossibilitam acederem ao status de refúgio ou de refugiados.

Em vista desta diversidade de situações, tem surgido um enorme desafio para todos os atores envolvidos em buscar proteção àqueles que convencionalmente chamamos refugiados. O caso haitiano é bastante ilustrativo, mas também podemos evidenciá-lo no caso colombiano e mexicano, já que estão relacionados com a complexidade em que se desenrolam os conflitos na América Latina. O anterior é relacionado com o fato de que temos pessoas em condições similares, mas aos quais não se aplica da mesma maneira o direito internacional de refúgio, devido aos motivos que os forçaram a deslocar-se. Há, na região, pessoas vítimas de conflitos armados, de grupos armados sem status de beligerância, de projetos de desenvolvimento que ameaçam a permanência no território e a conservação de práticas ancestrais, de violência estrutural expressa em exclusão histórica e em precárias condições de vida. Sem embargo, somente uma pequena proporção dessas vítimas podem qualificar-se como refugiadas.
Torna-se, portanto, indispensável a construção de uma resposta integral às diferentes crises humanitárias, uma resposta que seja consequente com as diversas dinâmicas que estão produzindo a migração forçada de pessoas e que conte com mecanismos de proteção ampliada, os quais transcendam o direito internacional em matéria de refúgio, permitindo que a migração forçada seja abordada como um assunto humanitário e não como um tema estritamente econômico ou de segurança nacional.


IHU On-Line – O senhor crê que um “novo modelo político, econômico e de convivência mundial, nesta ordem globalizada, passa necessariamente pela escuta de seus principais afetados”. De que modo os países podem fazer isso?

Wooldy Edson Louidor -
O novo modelo passa pela inclusão dos principais afetados do atual modelo que é excludente de países (os do Sul) e de diferentes classes de pessoas e grupos sociais, entre os quais estão os indígenas, os negros, os operários, os camponeses, as mulheres, os refugiados, os migrantes.

Os governos e elites devem começar a escutar os excluídos, sua voz profética que critica o atual modelo, suas reivindicações e suas propostas para a construção de um país, uma região e um mundo alternativo que seja includente, democrático, plural, justo, solidário. Até agora, os governos têm escutado somente os detentores do capital transnacional, os governos poderosos dos países hegemônicos e os grandes proprietários de capital em nível nacional.

Ao mesmo tempo, os diferentes grupos excluídos devem articular-se, organizar-se e unir-se para falar com uma só voz e lutar conjuntamente por seus projetos. Neste sentido, apesar de ser uma das regiões mais pobres e desiguais do mundo, a América Latina é também um subcontinente onde existem grandes lutas sociais e políticas contra a exclusão de todo tipo e contra o atual modelo neoliberal que põe o capital e os interesses dos grandes capitalistas e empresas transnacionais acima da pessoa humana. A América Latina é uma região de luta, de esperança e de utopia, onde diversas lutas estão convergindo através de diferentes processos e mecanismos de articulação visando a construção de uma região includente, plural, multi-étnica.


IHU On-Line - Qual é o papel dos jesuítas no sentido de aliviar os problemas de refugiados?

Padre Alfredo Infante -
A companhia de Jesus assumiu em nível global o desafio das migrações forçadas como uma prioridade. Isto significa que responder ao grito dos migrantes, refugiados e deslocados é política da Companhia de Jesus Universal. O que significa isto? Significa concretizar o sonho de Arrupe  que consistia em que todas as instituições sob a responsabilidade dos jesuítas, como o são as Universidades, os centros sociais, colégios, casas de retiros, ‘fé e alegria’, se inclinem, desde sua especificidade, a responder ao clamor dos refugiados. Uma organização como SJR, - cujo mandato específico é acompanhar, servir e defender os refugiados, - tem como missão dinamizar no interior do corpo apostólico as sinergias adequadas para uma resposta eficaz às necessidades dos refugiados. O SJR trabalha em lugares de fronteiras, acompanhando milhares de pessoas necessitadas de proteção internacional. O conviver no dia a dia com os refugiados e deslocados dá-nos a oportunidade de conhecer a fundo suas necessidades e, partindo de suas necessidades, gerarmos junto a eles iniciativas de desenvolvimento humano e de defesa de seus direitos. Essa convivência diária nos fornece também os pontos para nossa agenda de incidência ante os lugares de decisão e a de propor políticas públicas favoráveis aos interesses das vítimas.


IHU On-Line - Como diretor para a América Latina e o Caribe, tem visitado os acampamentos de refugiados?

Padre Alfredo Infante -
Na América Latina, diversamente de outros continentes como a África, não existem campos de refugiados. A maioria dos refugiados vive em comunidades receptoras e nas grandes cidades. Isto não significa que não haja grandes números, porque, por exemplo, de acordo com recentes informações das Nações Unidas, a Colômbia segue sendo a crise humanitária mais importante do mundo, com a cifra mais alta de deslocamentos forçados.


IHU On-Line - Como percebe o estabelecimento da família de refugiados e os desafios em que ela tem que viver?

Juan Felipe Carrillo -
 Os desafios para as famílias são enormes. É preciso ter em conta que as pessoas que solicitam refúgio têm sido vítimas diretas de vulnerações aos seus direitos, o que supõe que em muitos casos os refugiados acabem de experimentar a ruptura de seu núcleo familiar, seja pela perda de um ser querido, ou porque a realidade os tem força a separar-se. Esta situação deságua em três desafios fundamentais para nós que realizamos labores humanitários com refugiados.

Por um lado está a necessidade que as pessoas possam assumir e fazer frente aos efeitos de terem perdido um ser querido. Isso não é nada simples e demanda um amplo processo de acompanhamento que pode levar anos e no qual se pretende chegar até a reconciliação, o que não se dá da noite para o dia. Por outro lado está a necessidade de levar a cabo ações tendentes a garantirem a unidade familiar, o que supõe um amplo trabalho com redes para poder contar com informação nos países que expulsam e nos que recebem.

Como terceiro desafio, seria preciso fazer menção sobre como influi o deslocamento forçado nas dinâmicas familiares. Em muitos casos, o fato de ter sido vítimas de vulnerações aos direitos humanos e não ter podido fazer nada a respeito, põe os chefes de lares ou pais de família em situações de impotência que podem ter sequelas psicológicas ante a impossibilidade real de proteger seu lar. Da mesma forma, em alguns contextos de acolhida resulta mais fácil para as mulheres conseguirem uma atividade de subsistência, o que rompe com a concepção tradicional do homem como provedor do lar. E é por esta razão que o trabalho humanitário com enfoque de gênero se torna indispensável para atender às necessidades de homens e mulheres de acordo com sua realidade.

Um aspecto comum aos três casos citados é o papel determinante que assume a mulher na família, seja por assumir o comando do lar, por ser a encarregada de assegurar a unidade da família, ou como geradora de ingressos.


IHU On-Line - Faz 30 anos que os senhores têm o Serviço Jesuíta a Refugiados. Durante este período, quais foram os maiores desafios?

Padre Alfredo Infante -
Os desafios têm sido muitos. O SJR iniciou trabalhando nos campos de refugiados, onde a gente está concentrada. Depois, na década dos 90, com os conflitos de Angola na África e da Colômbia e do México na América Latina, nossa entidade assumiu o trabalho com deslocados internos. Hoje enfrentamos um fenômeno muito mais desafiador que são o refúgio e o deslocamento interno, onde os grandes subúrbios terminam sendo o lugar de destino de muitos refugiados. Também há outros desafios, como o são os eco-refugiados, os deslocados por mega-projetos econômicos como mineiros, hidroelétricos, viários. É uma discussão que é preciso fazer, e assim o clássico conceito de refúgio necessita ser ampliado para proteger o direito de uma grande maioria de vítimas.


IHU On-Line - Um dos temas mais controvertidos da proteção internacional se relaciona com a utilização de crianças em grupos armados e as situações de conflito. O programa dos jesuítas trabalha este tema? Como são as crianças que necessitam ajuda?

Juan Felipe Carrillo -
 O recrutamento e a utilização de meninos, meninas e adolescentes nos conflitos aramados tem se constituído num enorme desafio para o trabalho do SJR ao redor do mundo. Em muitos casos, os projetos do SJR se adiantam em contextos de conflitos e de alta complexidade social, onde, entre outras situações, o recrutamento de meninos, meninas e adolescentes e sua participação em hostilidades é um risco constante.

Na América Latina, o SJR vem trabalhando desde faz mais de uma década na Colômbia, num programa enfocado em prevenir a vinculação de meninos, meninas e adolescentes a grupos armados e a atividades ilícitas, por meio da formação de meninos, meninas e adolescentes como sujeitos de direitos em torno de dois componentes: resiliência e direitos humanos. Por outra parte, na Venezuela, o SJR veio promovendo o acesso à educação de refugiados e solicitantes como condição necessária para prevenir o recrutamento e a utilização exploradora. Adicionalmente, o SJR faz parte da Campanha Internacional contra a utilização de Crianças ou Meninos Soldados. No marco deste espaço, o SJR denuncia a situação da infância em zonas de conflito e leva a cabo campanhas de sensibilização, emitindo recomendações que chamam a atenção ante estes fatos. O anterior ajuda a estabelecer pontes entre os setores mais excluídos e os centros de tomada de decisão no âmbito internacional.

Sobre as características das vítimas destes delitos, há uma precisão que resulta indispensável fazer, Geralmente, as vítimas de recrutamento são qualificadas como forçadas e voluntárias. É necessário ter em conta que toda vinculação ou utilização de menores se dá de maneira forçada, já que a existência de condições estruturais, tais como a pobreza, a falta de empregos ou de oportunidades de subsistência, a falta de educação, os maus tratos e a violência intrafamiliar, abusos sexuais, desejo de vingança contra quem possivelmente tenha assassinado seus familiares ou entes queridos, um ambiente militarizado, entre outros, viciam a possibilidade do menor de discernir, levando a que sua vinculação sempre se dê de maneira forçada. Estas condições refletem qual é a situação que enfrentam os meninos, meninas e adolescentes, acompanhados pelo SJR.

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