Edição 359 | 02 Mai 2011

A mulher hoje e o dilema das escolhas

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Anelise Zanoni

Oportunidades profissionais e experiências no campo afetivo fazem com que as mulheres modernas experimentem conflitos e se deparem com uma encruzilhada que envolve a decisão de ser ou não mãe, afirma a psicóloga Iara Camaratta Anton

Talvez a primeira mudança no comportamento das mulheres em relação à maternidade tenha surgido com o advento dos métodos anticoncepcionais. Desde então, mais maduras e responsáveis, elas passaram a definir a própria vida e a desenhar a carreira.

Diante dessas novas perspectivas, a psicóloga Iara Camaratta Anton, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, afirma que é difícil esboçar hoje um perfil da mãe moderna. Mesmo assim, a partir de vivências próximas e da experiência que tem no consultório, afirma que as mulheres estudam mais e trabalham mais, almejando uma boa condição financeira, investem em relacionamentos estáveis e desejam que seus filhos sejam frutos destes relacionamentos.

“O fato de as mulheres estarem investindo em outras áreas de realização e contribuírem ativamente com as responsabilidades econômicas da família abre espaço para maior participação do pai, nos cuidados em relação aos filhos”, explica. Nesse panorama, mesmo com a mudança nas escolhas, o papel da mãe segue sendo o de estabelecer limites, fazer exigências, cuidar e amar os filhos.

Iara Camaratta Anton
é psicóloga graduada pelo Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Obteve os títulos de especialista em Psicologia Clínica Aplicada e especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica pela mesma instituição e atualmente ocupa a presidência da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul. Entre os livros que assina destacam-se A Escolha do Cônjuge – um entendimento sistêmico e psicodinâmico (Editora Artmed), Homem e Mulher – seus vínculos secretos (Editora Artmed) e Cegonha à vista! (Editora Est/POA).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O papel da maternidade sempre foi construído como o ideal máximo da mulher. Com o tempo, essa ideia fica cada vez mais obscura. Qual o papel da maternidade hoje?

Iara Camaratta Anton -
A maternidade era completamente idealizada e encarada como se fosse algo inerente à biologia e ao psiquismo feminino. O fato é que as opções eram muito limitadas, até o advento de métodos anticoncepcionais mais eficazes, de modo que a vida sexual ativa e o nascimento dos filhos formavam duplas praticamente inseparáveis. Além disso, as famílias julgavam-se tanto mais abençoadas quanto mais filhos tivessem, tendo em vista a ampliação da força de trabalho e da lucratividade nas empresas familiares. A Igreja, por sua vez, condenava qualquer tipo de controle da natalidade, considerando válidas somente as práticas sexuais que pudessem, eventualmente, resultar em filhos.

Nessas circunstâncias, as mulheres passaram a ser glorificadas, especialmente por trazerem filhos ao mundo e por se dedicarem integralmente às famílias, mesmo quando entregavam seus bebês a amas de leite e a babás. De qualquer forma, as funções maternas sempre eram exercidas por pessoas de sexo feminino, e as mães contavam, no mínimo, com o auxílio de suas filhas mais velhas, desde cedo preparadas para cumprirem o destino.

Em nossos dias, ser mãe continua sendo valorizado, das mais diversas maneiras, mas já não se considera instintivo e inevitável o desejo pela maternidade. A realidade mostra-nos que o advento de métodos anticoncepcionais trouxe maiores possibilidades de opção. Desde então, mulheres maduras e responsáveis passaram a definir o número de filhos que se dispõem a assumir e nem todas se mostram dispostas a serem mães, dando preferência a outras possibilidades.

Curiosamente, as idealizações não ajudam. Ao contrário, elas atrapalham, são como miragens, sempre efêmeras, inatingíveis. Funcionam inversamente ao que entendemos como ideais, ou seja, com aquelas imagens viáveis, que funcionam como parâmetros, estimulando nossas identificações e movimentando-nos em direção àquilo que almejamos para nós. Winnicot  cunhou uma expressão que diz tudo: as crianças necessitam de “mães suficientemente boas”, ou seja, de seres humanos capazes de amar e serem amados, de estarem presentes e se de serem gratificantes, mas também de estabelecerem limites e de fazerem exigências, de assumirem que têm conflitos, de tentarem resolvê-los da melhor forma possível, etc. Esta é a proposta de nossos dias.


IHU On-Line - As conquistas da mulher no mercado de trabalho e o investimento na profissionalização adiam cada vez mais a hora de ser mãe. Você acredita que esses são os maiores dilemas das mulheres hoje?

Iara Camaratta Anton -
Estes dilemas influenciam, sim. Eu não diria que são os maiores dilemas, pois esta é uma questão profundamente pessoal e entrelaçada com inúmeros fatores. De qualquer forma, a vida nos tem aberto muitas novas oportunidades e isso é, por si só, perturbador. Quer dizer, a mulher passa a experimentar outros conflitos justamente porque se encontra perante encruzilhadas e qualquer opção implica inevitavelmente em alguma renúncia ou, pelo menos, em adiamentos de outras escolhas. Primeiro investir nos estudos e na carreira profissional ou na maternidade? Ter filhos, ou seguir livre para viajar e se divertir com seu marido, seus amigos? Algumas das escolhas possíveis podem gerar arrependimentos?

Além da questão das inevitáveis renúncias ou adiamento de decisões, qualquer escolha implica em assumir responsabilidades, para que seja coroada de êxito. Quando o ideal máximo era inquestionável, as dúvidas eram mínimas e toda a família e a sociedade se organizavam para que tudo desse certo. Isso mudou, paralelamente às conquistas e possibilidades de ordem profissional.


IHU On-Line - Com o novo cenário do dia a dia, as mães muitas vezes ficam ausentes e dão espaço para que o pai participe mais do cuidado dos filhos. O que isso significa para uma família?

Iara Camaratta Anton -
Qualquer mudança nunca vem sozinha. O fato de as mulheres estarem investindo em outras áreas de realização e contribuírem ativamente com as responsabilidades econômicas da família abre espaço para maior participação do pai, nos cuidados em relação aos filhos. Isso é muito bom, podendo favorecer o vínculo do casal e a qualidade do desenvolvimento das crianças. Só que não é fácil dividir tarefas, respeitar um ao outro, sem concorrências desleais, sem jogos de poder.

Alguns casais ficam muito queixosos, medindo esforços e cobrando supostas dívidas. Outros competem entre si, na linha do “quem dá mais”, do “quem vale mais” ou, especialmente, na linha do “quem pode mais”. Nestes casos, facilmente tentam encontrar aliados em seus próprios filhos, conduzindo-os a tirarem proveito da situação e/ou desenvolvendo conflitos de lealdade.
Estamos diante de questões que envolvem maturidade emocional e capacidade de resolver sadiamente os conflitos que vão surgindo. Não existe vida sem conflitos, e estes ocorreriam mesmo que vivêssemos inteiramente sós. A questão é como entendê-los, como administrá-los. Sempre digo que “a melhor coisa que podemos dar aos nossos filhos é nós mesmos, em boas condições”. Assim, se temos uma boa autoestima e se somos capazes de levar o outro em conta, pai e mãe tornam-se aliados, cuidando de seus filhos com responsabilidade, afeto, responsabilidades e méritos compartilhados. Talvez caiba lembrarmos que não compete ao pai ser, simplesmente, quem “ajuda a mãe”, como se ele, descendo do pedestal, estivesse fazendo um favor; ou, pelo contrário, como se estivesse em posição hierarquicamente inferior, a serviço da “rainha do lar”. Ou seja: cabe a ele participar como um corresponsável, com direitos e deveres em um bom nível de equilíbrio, bem como cabe a ambos trabalhar em favor de crenças e valores em comum, procurando tratar com respeito e eficiências suas diferenças individuais e possíveis divergências.


IHU On-Line - É possível traçar um perfil da mãe moderna? Como é essa mulher?

Iara Camaratta Anton -
Acredito que sim, embora isto seja muito complexo, pois teríamos que, primeiramente, definir de quê mãe moderna estamos falando. O ambiente familiar, sociocultural e econômico influencia muito, além das próprias diferenças individuais. De um modo geral, observo que a mãe moderna investe em seus estudos e em sua carreira, contribuindo ativamente com as responsabilidades financeiras da família. Mesmo assim, muitas mulheres de camada média e alta conservam um ideal teoricamente superado, desejando parceiros que as sustentem e que assumam os principais investimentos monetários relativos aos filhos. Isto vale, inclusive, para seus novos relacionamentos, mesmo que estes não sejam pais das crianças. Vejo que este tem sido um dos fatores que geram muitos conflitos entre os casais. As mães de camada economicamente inferior muitas vezes são decisivas no sustento de seus filhos. Encontramos também famílias uniparentais femininas, nas quais as mulheres assumem toda e qualquer responsabilidade. E, o que parecia impossível há poucas décadas, aumenta o número de mães que preferem deixar os filhos aos cuidados dos ex-parceiros, a ponto de nem mais tomarem conhecimento da existência e do desenvolvimento das crianças.

Estas considerações servem para nos darmos conta de que estamos diante de um enorme leque de opções, que nos limitam em nossa tentativa de esboçarmos um perfil da mãe moderna. Mesmo assim, a partir de vivências mais próximas, na família, entre amigos e no consultório, penso que predominam as mulheres que estudam e trabalham, almejando uma boa condição financeira; que investem em relacionamentos estáveis e desejam que seus filhos sejam frutos destes relacionamentos; que avaliam com certa inquietação qual o melhor momento de terem seus filhos; que cuidam deles com atenção, responsabilidade e carinho, embora reconheçam algumas ambivalências e procurem enfrentar adequadamente os desafios e conflitos do dia a dia; que contam com a participação ativa de seus companheiros em relação aos filhos, mas ainda se sentem divididas, pois, no fundo, consideram-se as principais responsáveis; pesam muito a questão dos filhos, quando o relacionamento conjugal não está bem e pensam na possibilidade de divórcio; tendem a procurar e a valorizar terapia individual ou de casal; cultivam a si mesmas, aos seus corpos, às suas mentes, às suas vidas amorosa, sexual, familiar, social e cultural; desejam ser felizes e uma de suas maiores felicidades está em ver como seus filhos estão se desenvolvendo bem...


IHU On-Line - Para algumas mulheres, ser mãe hoje se transformou em um desejo distante ou uma obrigação, que deve ser cumprida até os 40 anos. Como você avalia esse pensamento?

Iara Camaratta Anton -
De fato, a opção pela maternidade está se tornando bem mais tardia nas classes média e alta. Ela tende a ser precoce, principalmente onde as mulheres não têm maiores ambições e veem nos filhos o maior, se não o único, tesouro.

Hoje, quando se pensa em estar bem financeiramente, em ter uma vida confortável e um mínimo de segurança, é difícil que os filhos surjam ao acaso, até porque se deseja oferecer a eles boas condições de desenvolvimento. Assim, gestações vêm sendo adiadas. Isto, porém, é geralmente feito em clima de ansiedade, sendo que é comum as mulheres referirem-se ao “prazo de validade”. O desejo paira no ar, rodeado de mil temores. Num dado momento, a fertilidade se reduz e a concepção se torna mais difícil, conduzindo à busca de inseminação artificial, com possibilidades de insucesso ou, pelo contrário, de gestações múltiplas. Como reagem estas mães ou candidatas à maternidade? A história e a personalidade pessoais, os recursos e as dificuldades, somados a toda uma rede de apoios, influenciam em suas reações.
Muitas mulheres sentem-se profundamente incomodadas, quando as pessoas fazem aquelas perguntas clássicas: “E aí, quando é que vem o bebê?” Este costuma ser um assunto de foro íntimo, e indiscrições podem ser mal-recebidas. Mesmo que não seja cobrança nenhuma, este pode ser o significado atribuído, especialmente quando existe alguma dificuldade na concepção ou quando a mulher ou o casal pensam na possibilidade de não terem filhos, seja lá por que motivo for.

A questão do prazo tende a ser muito angustiante, especialmente à medida que se aproxima a suposta data-limite e a maternidade é uma das metas mais importantes na vida da mulher que, contudo, ainda não se tornou mãe. Diversos fatores, mais uma vez, influenciam em suas respostas emocionais: a existência ou não de um parceiro nas condições desejadas; cobranças internas e externas; autoimagem e autoestima; outras fontes de gratificação, etc.


IHU On-Line – Algumas teorias apoiam a ideia de que a maternidade é uma imposição cultural. Mesmo com a evolução no pensamento, mulheres que não desejam ter filhos nem sempre são aceitas pela sociedade. Isso significa que as regras continuam as mesmas?

Iara Camaratta Anton -
A questão das regras também é complexa. No geral, as regras são mais sutis do que as normas. Estas são claras, bem definidas, quase que adquirindo o status de lei. As regras, mais informais, tornam-se imperiosas na medida em que um comportamento se repete e passa a ser considerado o normal, ou seja, passa a ser automaticamente esperado, como se fosse direito adquirido. Por exemplo: basta que alguém leve o café na cama para o parceiro ou parceira durante cinco ou seis dias que, no sétimo, se isto não ocorrer, desperta estranhamento ou, até, indignação.
Estes padrões de comportamento vão sendo internalizados e automatizados, a tal ponto que nem nos damos conta do que está acontecendo e, mesmo assim, nós nos cobramos ou cobramos das demais pessoas algo que não é direito nosso. Isto significa que podemos ser movidos por ordens e por proibições pré-conscientes ou, mesmo, inconscientes. Nestes casos, o que percebemos é a “ponta do iceberg”, ou seja, tristezas, desconfortos e ansiedades aparentemente sem razão de ser. São sintomas, funcionando como porta-vozes de nosso mundo interior.

Voltando para a questão acima levantada: por mais que a sociedade evolua (embora as mudanças sociais que percebemos não necessariamente signifiquem evolução...), existem regras profundamente internalizadas pela cultura como um todo, e estas, repassadas geração a geração, permanecem vivas, dentro de nós. Assim, podemos pensar de um modo e, no entanto, sentir de outro. Lembra daquela frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”? Ela se aplica também a este campo sobre o qual estamos conversando.

Isto significa que todos nós temos conflitos, uma infinidade deles, sob os mais diversos aspectos. Importante é nos darmos conta daqueles que mais nos perturbam, buscando compreender seus significados e funções para, finalmente, irmos tomando decisões coerentes e felizes.

A maternidade não foge disso, tanto no que diz respeito à opção de ser ou não ser mãe, quanto em relação a uma infinidade de outras questões que envolvem esta decisão. O amor de mãe tem seus aspectos instintivos, básicos, além de muitos outros, concernentes ao equilíbrio emocional, à maturidade pessoal e à capacidade de, efetivamente, investir para que o nascimento dos filhos represente uma belíssima oportunidade que a vida, através de nós, ofereceu a eles.


IHU On-Line - Ser mãe adotiva pode ser a alternativa para mulheres que desejam investir mais no mercado de trabalho? Qual o papel delas na realidade atual?

Iara Camaratta Anton -
Mulheres que desejam ser mães num futuro mais distante talvez vejam na adoção uma oportunidade acalentadora e se sintam menos pressionadas pelo fator tempo. Afinal, ser mãe, sob o aspecto emocional, não é um simples sinônimo de gestar e de parir – é efetivamente assumir o filho e a “maternagem” em relação a ele.

Um fenômeno que se observa em nossos dias é que as carreiras profissionais podem absorver tanto, que a pessoa coloca todo o resto em segundo plano: relacionamentos amorosos, filhos, vida familiar e social, prática de exercícios físicos. Outro dado a ser considerado é que muitas pessoas habituam-se a um ritmo que só é possível a solteiros e a casais sem filhos, e não sentem a menor disposição para se dedicarem a estes.
Uma coisa é querer ter filhos e outra, bem diferente, é dispor-se a ser mãe, a ser pai. Bebês, crianças e adolescentes proporcionam enormes gratificações, desde que sejam, efetivamente, desejados, cuidados, amados. O fato é que educação pressupõe presença, convívio; exige atenção, intervenções adequadas. De pouco adianta nos preocuparmos com “modos de fazer”, pois é na identificação conosco e a partir de estímulos em grande parte inconscientes que eles vão constituindo suas personalidades. Assim, antes de pensar em gestá-los ou adotá-los, temos que pesar muito bem nossas motivações e disponibilidades.

Ser mãe, como também ser avó, quando se assim o deseja, é uma experiência única, funcionando simbolicamente como coroamento da feminilidade. A vida palpita e se perpetua através da geração e da educação de nossos filhos, que, por sua vez, repassam as sementes desta mesma vida para as novas gerações, proporcionando-nos a incrível satisfação de acolhermos nossos netos e, quem sabe, bisnetos.

Quando não se pode ou não se deseja ter filhos, as possibilidades de realização pessoal, no que tange à feminilidade, toma um rumo mais simbólico, na medida em que, através do mecanismo da sublimação, endereçamos nossas energias afetivas e criadoras para outros planos, igualmente válidos, igualmente inspirados num “instinto de vida”, capaz de nos tornar, espiritualmente, fecundas e realizadas.

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