Edição 358 | 18 Abril 2011

Justiça, o dever da memória

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Por Márcia Junges | Tradução: Benno Dischinger

Em todos os países, o dever da memória é fazer justiça, assegura o filósofo Reyes Mate. Ditadura franquista foi tão longa que, quando terminou, as pessoas haviam esquecido-se de sua crueldade inicial. Universidades espanholas foram submetidas a “tomismo-leninismo”

Uma ditadura tão longeva que, ao seu final, conseguiu fazer o povo esquecer-se de sua crueldade dos primórdios. Assim foi a ditadura franquista ocorrida na Espanha de 1939 a 1976. Nessa época, “os direitos humanos brilhavam por sua ausência, o que não impedia que fosse um regime abençoado pela Igreja Católica, tanto a nacional como a vaticana, e apoiado pelos Estados democráticos do Ocidente, porque lhes vinha bem o feroz anticomunismo do regime”, afirma o filósofo espanhol Reyes Mate na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Na universidade ventos gélidos condenaram uma geração de intelectuais ao silêncio ou ao exílio, um verdadeiro desastre: “Impôs-se, em lugar do pensamento crítico, o que chamávamos de ‘tomismo-leninismo’, quer dizer, a escolástica tomista convertida em ideologia de um regime fascista”. Quanto à transição política na Espanha, Reyes Mate menciona que esta aconteceu em condições de “inferioridade para os democratas. Foi preciso transigir muito. Se a oposição ao franquismo reivindicava ‘a anistia para os presos’ (antifranquistas), os primeiros governos da transição decretaram duas anistias que favoreciam, sobretudo, os criminosos franquistas. Por isso falamos hoje de olvido, de esquecimento”. Dentro e fora da Espanha, o dever da memória é um dever de justiça, ressalta o pensador. “Se levarmos a sério a justiça, é preciso fazer memória da injustiça”. E arremata: “a memória das vítimas é um dever. Se não se faz, é porque os vitimadores continuam sendo poderosos ou porque continua havendo medo, ou porque falta uma cultura da memória nos formadores de opinião pública”.

Reyes Mate é professor do Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Pesquisas Científicas – CSIC e autor do livro Justicia de las víctimas. Terrorismo, memoria, reconciliación (Barcelona: Anthropos, Editorial del Hombre, 2008), entre outros. Em português, citamos Memórias depois de Auschwitz (São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Você poderia fazer referência ao contexto (sociopolítico) vivido durante a ditadura de Franco?

Reyes Mate -
Foi tão longeva esta ditadura que no final conseguiu que se esquecesse a crueldade do princípio. Porém, hoje os estudos que estão sendo feitos mostram a vontade exterminadora de todos os valores relacionados com o republicanismo. Não foi uma ditadura meramente “totalitária”, senão inicialmente fascista e criminosa até o final.


IHU On-Line - Como foram esses anos de morte na Espanha?

Reyes Mate -
Há muita literatura sobre isso. Os direitos humanos brilhavam por sua ausência, o que não impedia que fosse um regime abençoado pela Igreja Católica, tanto a nacional como a vaticana, e apoiado pelos Estados democráticos do Ocidente, porque lhes vinha bem o feroz anticomunismo do regime. A Espanha era um solar em que a criação e a inteligência tinham que fazer-se clandestinamente. A situação na universidade era desastrosa, pois nos privaram de uma geração que foi assassinada ou condenada ao exílio. Impôs-se, em lugar do pensamento crítico, o que chamávamos de “tomismo-leninismo”, quer dizer, a escolástica tomista convertida em ideologia de um regime fascista.


IHU On-Line - Há desaparecidos políticos desse período?

Reyes Mate -
No pós-guerra houve muitos desaparecidos do grupo dos vencidos. Muitos foram aparecendo. Porém, ainda hoje se calculam em mais de cem mil os que desapareceram.


IHU On-Line - De que maneira a Espanha combateu esses ressaibos da ditadura? Existiu alguma lei de Anistia ou foi utilizado outro tipo de recurso?

Reyes Mate -
A transição política espanhola se fez em certas condições de inferioridade para os democratas. Foi preciso transigir muito. Se a oposição ao franquismo reivindicava “a anistia para os presos” (antifranquistas), os primeiros governos da transição decretaram duas anistias que favoreciam, sobretudo, os criminosos franquistas. Por isso falamos hoje de olvido, de esquecimento.


IHU On-Line - Quais foram as causas (os motivos) que levaram a Espanha a realizar esse ajuste de contas com o passado?

Reyes Mate -
A transição não fez nenhum ajuste de contas, senão um esquecimento forçado pelas circunstâncias. É hoje que se está propondo a revisão dessa forma de esquecimento. A Lei da Memória Histórica foi um tímido passo em frente.


IHU On-Line - Os arquivos da ditadura espanhola estão disponíveis ao público para serem consultados? Como se levou a cabo esse processo?

Reyes Mate -
Alguns estão disponíveis. Mas, o problema é que muitos documentos foram destruídos conscientemente durante o tempo da transição.


IHU On-Line - Como se mantém a memória histórica desse período?

Reyes Mate -
Com dificuldade, pois é preciso vencer a resistência dos políticos da transição (também os de esquerda), dos historiadores e da opinião de muita gente que não quer recordar esse passado. Quando alguém tenta fazer um juízo sobre o passado, como ocorreu ao Juiz Garzón, acaba ele mesmo sendo justiçado.


IHU On-Line - Com respeito à Espanha, qual é o dever da memória histórica?

Reyes Mate -
O dever de memória na Espanha e fora da Espanha é de justiça. Se levarmos a sério a justiça, é preciso fazer memória da injustiça. Se não o fazemos, se passamos páginas, estamos criando as condições para que a injustiça se repita. Basta, sim, que passe o tempo para que se olvide a injustiça: o que impede construir a política sobre novas vítimas, se, no final, basta que passe o tempo para que tudo seja esquecido?


IHU On-Line - Como considera que os países que sofreram ditaduras devam lidar com esse fato no presente?

Reyes Mate -
Levando a sério o dever de memória. Um presente construído sobre o esquecimento da injustiça, dificilmente poderá ser justo. Não terá escrúpulos em recorrer à injustiça como arma política.


IHU On-Line - De seu ponto de vista, o que impede o Brasil de abrir os seus arquivos da ditadura e dialogar com seu totalitarismo, quando a maior parte dos países da América Latina já o tem feito?

Reyes Mate –
Vocês são os que devem responder a essa questão. Do ponto de vista moral, a memória das vítimas é um dever. Se não se faz, é porque os vitimadores continuam sendo poderosos ou porque continua havendo medo, ou porque falta uma cultura da memória nos formadores de opinião pública.


IHU On-Line - Países como Tunísia e Egito acabam de derrubar seus ditadores. Khadafi, na Líbia, treme encastelado no poder, sem deixar de promover uma repressão sangrenta. Qual é o futuro dos totalitarismos e que tipo de democracia se pode esperar depois destas mudanças?

Reyes Mate -
O que ocorreu nesses países é um sinal de esperança que obriga os ocidentais a um profundo exame de consciência. Não se pode construir o bem-estar de uns sobre o mal-estar de outros. O aí ocorrido é uma lição para o Ocidente rico.

 

>> Reyes Mate já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira o material na nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu).
 
* O campo de concentração está se convertendo no símbolo da política moderna. Edição número 160 da IHU On-Line, de 17-10-2005, intitulada Os desafios da justiça e as políticas para uma cultura da paz

 * A memória como antídoto à repetição da barbárie. Edição número 291 da IHU On-Line, de 04-05-2009

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