Edição 358 | 18 Abril 2011

Parque da Memória, um monumento para não esquecer o terrorismo de Estado

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado, mais conhecido como Parque da Memória, em Buenos Aires, quer manter viva a história de homens e mulheres que morreram vítimas da ditadura argentina, afirma a diretora da instituição, Nora Hochbaum

Em 24 de março de 1976 começavam os anos de chumbo na Argentina, mediante um golpe de estado militar, o sexto na história democrática daquele país. “Este golpe de Estado se caracterizou por uma nova metodologia: o terrorismo de Estado e o desaparecimento forçado e sistemático de pessoas”, denuncia a diretora do Parque da Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado. Indiscriminadamente, “os militares intervieram em todos os âmbitos da vida social do país”, proibiram e queimaram inúmeros livros, perseguiram intelectuais, artistas, escritores e forçaram-nos ao exílio no exterior. Cerca de 10 mil presos políticos e mais de dois milhões de exilados, além de centenas de pessoas que eram jogadas de aviões sobre o Rio da Prata, são o saldo que “as botas” dos militares legaram à nação. Além do alijamento de uma geração inteira de intelectuais, a Argentina amargou um período de decadência econômica, com o aumento da dívida externa. Para que o país e o mundo não esqueçam dessa vergonha, organismos de direitos humanos se uniram para criar o Parque da Memória, localizado exatamente em frente ao Rio da Prata. “Nosso objetivo é conseguir que a sociedade participe, em sua totalidade, da complexa tarefa de reconstrução do tecido social e cultural desarticulado pela ditadura militar. Este é o grande desafio do Parque da Memória”. E completa: “[Este] é um lugar de recordação e testemunho, porque ali estão os nomes desses seres que se quis apagar”.
Professora nacional de belas artes, especialista em gestão cultural em instituições públicas, Nora trabalha de o início dos anos 1980 como curadora e produtora independente em exibições, bienais e eventos relacionados com artes visuais e gestão cultural. Atuou em diversas instituições nacionais e internacionais dos Estados Unidos, Cuba, Santo Domingo, Espanha e França. Foi diretora do Centro Cultural Recoleta da Cidade de Buenos Aires, e da Casa Argentina em Paris. Atualmente é a diretora do Parque da Memória – Monumento às vítimas do terrorismo de Estado. Para maiores informações sobre o Parque da Memória, visite http://www.parquedelamemoria.org.ar.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que é o Parque da Memória e qual é sua importância para os argentinos e para as outras nações?

Nora Hochbaum -
O Parque da Memória surge como uma iniciativa de organismos de direitos humanos que decidiram impulsionar um projeto para criar um lugar de recordação e homenagem frente ao Rio da Prata: um Parque da Memória que incluísse um monumento com os nomes dos desaparecidos e assassinados na Argentina durante a última ditadura militar, rodeado por um conjunto de esculturas comemorativas. A iniciativa foi apresentada na Legislatura da Cidade de Buenos Aires em dezembro de 1997. A partir dessa data o trabalho foi incessante. A Lei 46, de 1998, dispôs a construção do Parque da Memória e do Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado. Com tal objetivo criou-se a Comissão Pró-Monumento que se encarregou de levar em frente sua construção e de convocar ao concurso internacional de esculturas que seriam colocadas no espaço.
A partir do ano de 2009, com a aprovação da lei 3078, criou-se o Conselho de Gestão do Parque da Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado. Este conselho está integrado pelo governo da cidade de Buenos Aires, pela Universidade de Buenos Aires - UBA e por organismos de direitos humanos. As características deste conselho constituem um precedente na participação da sociedade civil na administração de um espaço público.


Jogados no rio

O Parque da Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado - é hoje um espaço público de 14 hectares, localizado na franja costeira do Rio da Prata adjacente à cidade universitária e alberga o Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado, um conjunto de obras escultóricas e a sala Presentes Ahora y Siempre – PAYS. O Parque se levanta frente ao Rio da Prata, porque às suas águas foram jogadas muitas vítimas.
Nosso objetivo é conseguir que a sociedade participe, em sua totalidade, da complexa tarefa de reconstrução do tecido social e cultural desarticulado pela ditadura militar. Este é o grande desafio do Parque da Memória.
Além disso, este monumento é o único que congrega, a nível nacional, os nomes de todas as vítimas do terrorismo e inclui estrangeiros desaparecidos ou assinados no país. Incluímos a lista de desaparecidos e assassinados de nacionalidade brasileira. Por esta razão, cobra importância a nível nacional e também regional, sendo este Memorial um espaço de características únicas na região.


IHU On-Line - Quais foram, em linhas gerais, as características do terrorismo de Estado argentino?

Nora Hochbaum -
Em nosso país, em 24 de março de 1976, começou a ditadura mediante um golpe de Estado militar. Foi o sexto golpe que sofria a democracia na história da Argentina. Este golpe se caracterizou por uma nova metodologia: o terrorismo de Estado e o desaparecimento forçado e sistemático de pessoas.
As Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) tomaram o governo, aprisionaram a então presidente Isabel Perón e seus ministros, romperam a ordem constitucional, deixaram de funcionar, no Congresso da Nação, as duas câmaras (de deputados e de senadores). Toda decisão passou, desde então, pelo poder Executivo (no princípio a Junta Militar e, em seguida, o presidente) que governava mediante decretos – não leis. Afastam-se os juízes da democracia e nomeiam-se juízes afins às ideias e práticas dos militares.

Os militares intervieram em todos os âmbitos da vida social do país. Na educação se impuseram planos e programas de estudo de diferentes temas, como a teoria de conjuntos em matemática, ou o cubismo na arte. Foram proibidos certos métodos e técnicas de ensino, como os trabalhos grupais de reflexão, e também não se podiam mencionar alguns autores e cientistas argentinos ou estrangeiros, como Elsa Bornemann , García Márquez , Mario Benedetti , Marx , bem como suas teorias e documentos. Houve supressão de centros de estudantes e agrupações estudantis de todo tipo: os estudantes eram revisados permanentemente quanto à sua forma de vestir e ao seu modo de apresentação (uniformes, cabelo curto, maquiagem, minissaia, jeans, etc.). Quanto ao trabalho, foram eliminadas as leis e as conquistas dos trabalhadores. Foi proibido o direito à greve e os sindicatos foram eliminados.


Livros queimados

Todas as atividades políticas foram proibidas, razão pela qual militantes e dirigentes dos partidos foram, em grande número, condenados como presos políticos e hoje estão desaparecidos.
O âmbito da cultura também se viu afetado com a queima de livros de conteúdo político-social valioso, como O Capital de Karl Marx, A pedagogia do oprimido de Paulo Freire , a censura de certos autores e obras literárias como O Pequeno Príncipe de Saint Exupéry , canções de Nacha Guevara, películas como A Patagônia Rebelde. Devido a essa perseguição, intelectuais, autores e artistas de todas as disciplinas precisaram exilar-se e publicar suas obras no exterior.

A ditadura também significou uma política econômica prejudicial, com o incremento da dívida externa em que a dívida privada passou a ser do Estado, os salários ficaram congelados e ante o desaparecimento dos grêmios e sindicatos resultava ser impossível reclamar pelos mesmos.
Toda reunião em lugar público estava proibida e, inclusive, gerava suspeitas transitar pela rua em horas noturnas. Também era obrigatório levar consigo o Documento Nacional de Identidade, pois caso contrário era motivo de detenção.

Quase tudo isso se impunha através de práticas violentas, chamadas operativas e destinadas a bloquear qualquer atividade ou opinião contrária ao regime. Por isso se perseguiu, encarcerou, torturou e fez desaparecer grande quantidade de pessoas que já tinham uma participação política, associativa ou cultural prévia. Outros puderam escapar e se exilaram, não podendo regressar ao país até a volta da democracia.


Sequestro

As operações estatais consistiam em invasões (irrupções violentas em domicílios, fábricas ou instituições, com o fim de buscar elementos que justificassem as detenções), em que não só se levavam as pessoas, senão que ademais se tomava parte de seus bens como despojos de guerra e roubo de todos os seus pertences. Também há aproximadamente 500 casos de filhos de detidos aos quais se tirou sua verdadeira identidade, mediante o sequestro e posterior entrega a outras famílias, majoritariamente de militares.

Os detidos eram encarcerados em prisões do Estado ou levados ao que se conhece como Centros Clandestinos de Detenção. Estes estão ocultos à vista da população e funcionam em lugares bastante diversos (galpões, sótãos, edifícios da polícia, casas abandonadas, ou nos próprios edifícios das FF.AA., etc.), como no Clube Atlético ou no Olímpo de Floresta. Durante a última ditadura houve 10 mil presos políticos e cerca de dois milhões de exilados.


IHU On-Line - Muitos políticos argentinos foram lançados no Rio da Prata. O que significa o desaparecimento de uma pessoa sem que sua família nunca mais saiba onde está (nem como morreu)?

Nora Hochbaum -
O Parque da Memória não pretende curar feridas nem suplantar a verdade e a justiça. Nada devolverá a paz real aos familiares que não puderam conhecer o destino final de seus entes queridos, torturados e assassinados de maneira cruel e selvagem, nem nada preencherá o vazio social que deixou sua ausência. O Parque da Memória é um lugar de recordação e testemunho, porque ali estão os nomes desses seres que se quis apagar. Eles estarão presentes na evocação que se faça de suas vidas truncadas e na permanente homenagem aos ideais de liberdade, solidariedade e justiça, pelos quais viveram e lutaram. As gerações atuais e futuras que visitarem o Parque defrontar-se-ão ali com a memória do horror cometido e tomarão consciência da necessidade de velar para que nunca mais se repitam esses fatos.


IHU On-Line - Como foi discutido pela sociedade argentina o período da ditadura e seus mortos, seus desaparecidos?

Nora Hochbaum -
Durante a ditadura, antes de conhecer o saldo total de suas vítimas, a sociedade civil se organizou em grupos de familiares e amigos. Surgem na Argentina, em meados dos anos 1970, organismos de direitos humanos, que perduram até hoje. O papel dos organismos foi fundamental para a conscientização sobre o ocorrido, tanto em nível nacional, como internacional.
Os vínculos destes organismos com a comunidade internacional, incluindo a brasileira, foram muito importantes para a difusão de informação, a proteção de documentos e a instalação do debate na sociedade, já desde muito cedo, na ditadura.

Devido ao fato de, até o dia de hoje, as forças militares não terem revelado os documentos sobre a detenção e o desaparecimento das vítimas da ditadura, o trabalho de investigação e difusão veio, em primeira instância, da parte da sociedade civil.

No ano de 1983, com o fim do processo ditatorial, chega ao poder o primeiro governo democrático na Argentina, em mãos do Dr. Raúl Ricardo Alfonsín. Uma das primeiras medidas do novo governo foi impulsionar a criação de uma comissão para levar em frente uma meticulosa investigação que permitisse à justiça conhecer os casos de desaparecimento ou morte produzidos durante o terrorismo de Estado. Dita comissão, a Conadep, teve a tarefa de redigir um documento extensíssimo, de vários tomos, que se intitulou Nunca Mais. Essa comissão levou adiante a tarefa, contando com o esforço de investigadores, médicos forenses e organismos de direitos humanos, entre outros.

Com base nesta investigação levou-se em frente, no ano de 1985, o primeiro julgamento das juntas militares. Ali se expuseram testemunhos de sobreviventes e provas científicas que permitiram acercar-se à verdade do acontecido.


IHU On-Line - Os arquivos da ditadura argentina estão disponíveis para serem consultados?

Nora Hochbaum -
Salvo os documentos refletidos no Nunca Mais e os obtidos posteriormente pela Equipe Argentina de Antropologia Forense – EAAF, os arquivos da ditadura não estão disponíveis na Argentina. A metodologia repressiva utilizada, em seu intento de não deixar rastros, propôs-se a apagar os nomes, a história e a vida daqueles que foram sequestrados e assassinados. Futuramente o Parque da Memória albergará um centro de interpretação que terá uma base de dados com a informação sobre cada uma das pessoas incluídas no Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado, que o público poderá consultar. Deste modo, será possível acessar dados pessoais, testemunhos sobre as circunstâncias de desaparecimento ou assassinato, fotos, recordações, anedotas, cartas, poesias, tirando-as assim do anonimato, para que deixem de formar parte de um número incerto que nada diz sobre quem foi cada um deles. Os colaboradores da área de Nomina do Monumento se dedica diariamente à tarefa de atualização do Monumento e recepção de documentação relativa às pessoas que nele figuram.


IHU On-Line - Qual é a principal “herança” da ditadura argentina?

Nora Hochbaum -
Em primeiro lugar, o horror da ditadura deixou como saldo a perda de grande parte de uma geração de jovens militantes, intelectuais, cientistas e trabalhadores. Esta amputação de grande parte do setor pensante da sociedade tem sequelas na sociedade ainda hoje. A política sofreu no país as graves consequências do desaparecimento de grande parte de suas figuras mais destacadas e promissoras.
Em matéria econômica, o Estado argentino sofreu, durante a ditadura e posteriormente a ela, as consequências sociais do enorme endividamento público que gerou a estatização de dívida contraída por setores privados. Isto significou o princípio de esvaziamento do Estado, que se aprofundou durante os anos 1990.

Em matéria de legado histórico, a sociedade em geral entendeu a importância da defesa e proteção do regime democrático (excetuando a presença de insignificantes grupos que reivindicam, hoje em dia, a tortura). Além do papel que cada cidadão teve durante aqueles anos, a sociedade inteira compreendeu que a metodologia utilizada pelos militares é inaceitável, bem como imprescritível, por ser considerada de lesa humanidade.


IHU On-Line - Por que considera que países como o Brasil ainda não conseguiram lidar com seu totalitarismo? Em que aspectos a experiência argentina pode inspirar o Brasil para rever seus anos de morte e sangue?

Nora Hochbaum -
O Parque da Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado - tem como objetivo difundir a experiência argentina em matéria de direitos humanos, como também de promover a defesa destes direitos em todo o mundo.

Durante o ano de 2010, o Parque da Memória foi convidado a participar da 29ª Bienal de São Paulo. Na delegação que participou de dito evento, contou-se com a presença de organismos de direitos humanos que durante sua viagem deram conferências, visitaram memoriais ou museus e participaram em debates organizados por associações brasileiras, transmitindo suas experiências. Durante toda a viagem a delegação foi muito bem recebida e a vontade de parte da sociedade brasileira de instalar o debate no país se fez notar permanentemente.


IHU On-Line - Memória é sinônimo de justiça? Por quê?

Nora Hochbaum –
Não. A justiça é a causa que ainda hoje defendem os organismos. Durante muitos anos, na Argentina, as leis de “ponto final” e “obediência devida”, bem como os decretos de exoneração dos militares que haviam sido julgados, atrasaram a obtenção de justiça nas causas relativas à tortura e ao desaparecimento. A partir do ano de 2003, uma série de medidas, impulsionadas a partir do governo nacional, reativou o acionamento da justiça, de modo que, no dia de hoje, têm sido julgados e condenados (majoritariamente à prisão perpétua) os responsáveis pela perpetuação da tortura e do assassinato.


IHU On-Line - Por que a memória, do ponto de vista das vítimas, pode ser “perigosa”?

Nora Hochbaum -
Não consideramos que a reflexão, dentro dos limites que estabelece a democracia, seja em absoluto nociva para a sociedade. O Parque da Memória aposta no debate democrático dos fatos acontecidos em nosso país.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição