Edição 358 | 18 Abril 2011

A lei da anistia e o esquecimento da barbárie da ditadura

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Márcia Junges

A verdade completa sobre o terrorismo de Estado brasileiro precisa vir à tona, acentua Jair Krischke. Resquícios do entulho autoritário continuam existindo, como o paradigma da impunidade e a violência das polícias, vinculadas ao Exército brasileiro

Com a Lei de Anistia os militares brasileiros queriam “promover o esquecimento do barbarismo que promoveram durante os largos anos de ditadura. Equivocaram-se redondamente! A toda hora, saltam dos mais variados ‘armários’ esqueletos que os interrogam com toda a veemência. Não haverá trégua até que se conheça toda a verdade sobre o terrorismo de Estado que foi promovido no Brasil”. A constatação é do advogado Jair Krischke na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Para ele, um dos problemas mais graves que enfrentamos em nosso país é a impunidade, que vai se consolidando como paradigma. “Muito se fala em reconciliação da sociedade brasileira, mas esquecem-se de que, para haver uma verdadeira reconciliação, faz-se necessário, fundamental mesmo, o autor da ofensa reconhecê-la como de sua autoria, arrepender-se e pedir perdão à vitima. Com o ânimo ainda existente nas forças armadas brasileiras, seria possível esperar este gesto?” E completa: “Historicamente, os militares sempre se dão bem no Brasil, mesmo quando praticam crimes os mais horrendos”.

Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Hoje a Lei de Anistia brasileira representa esquecimento? Por que e em que sentido?

Jair Krischke -
A memória, diz Pilar Calveiro, encarrega-se de desfazer e de refazer, sem tréguas, aquilo que evoca. Porque é um ato de recriação do passado desde a realidade do presente, projetando-se para o futuro. É desde as premências atuais que se interroga o passado, rememorando-o. Entretanto, ao mesmo tempo, é das particularidades desse passado, respeitando suas coordenadas específicas, que podemos construir uma memória fiel. Certamente, os militares brasileiros pretendiam com esta Lei de Anistia promover o esquecimento do barbarismo que promoveram durante os largos anos de ditadura. Equivocaram-se redondamente! A toda hora saltam dos mais variados “armários” esqueletos que os interrogam com toda a veemência. Não haverá trégua até que se conheça toda a verdade sobre o terrorismo de Estado que foi promovido no Brasil.


IHU On-Line - Como compreender que a Lei de Anistia tenha abrangido crimes contra a humanidade, como aqueles perpetrados pelos militares torturadores?

Jair Krischke -
Qualquer pessoa, razoavelmente alfabetizada, lendo o texto da Lei de Anistia, poderá entender que não é bem assim. Senão, vejamos:
Art. 1º - É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
Os agentes do Estado, quer sejam civis ou militares, não podem cometer “crimes políticos ou conexos”, pois representam o “Estado”, que, no exercício de seu múnus, não praticam atos “políticos”, e sim atos de Estado. É por essa razão que nós, os militantes de direitos humanos, chamamos estes acontecimentos de “terrorismo de Estado”


IHU On-Line - Por que foi escolhido o recurso da anistia na esteira pós-ditadura com o recorte específico que teve? Quais são suas principais limitações e por que ela não pode valer para ambos os lados (os que lutavam pela liberdade do Brasil, e aqueles que se valiam do aparato estatal para cometer crime de lesa-humanidade)? 
Jair Krischke -
O recurso da Lei de Anistia tem um histórico muito expressivo na América Latina, seguidamente sacudida por ditaduras cruéis. É a forma de reconciliar aqueles que, frente à tirania, decidiram rebelar-se, lutando para reconquistar um patamar democrático aceitável. Estes, sim, são passiveis dos benefícios da anistia e ninguém mais. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa), já se encontrava consagrado o direito à rebelião:

Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
Também na novel constituição portuguesa encontramos:
Artigo 21.


Direito de resistência

Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
Não ser igual para ambos os lados, creio haver respondido anteriormente. Mas sempre é bom chamar a atenção para o seguinte:


Lei de Anistia

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
Este parágrafo 2º diz claramente o que não foi anistiado pela Lei, os chamados “crimes de sangue”. Depois da promulgação da lei, muitos militantes continuaram presos, tanto que até greve de fome fizeram.


IHU On-Line - O que uma nova interpretação da lei da anistia pode representar para a memória e os direitos humanos no Brasil? E como isso pode repercutir na consolidação da nossa democracia ainda jovem e imperfeita?

Jair Krischke -
Não se trata de uma nova interpretação, trata-se tão só e simplesmente de interpretá-la corretamente. Além do mais, com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por descumprir sua obrigações internacionais, determinou que a Lei de Anistia é totalmente inválida, no que se refere a impunidade dos repressores, não sendo reconhecida em nível internacional.
Quanto à memória, ou seja, o conhecimento da verdade dos acontecimentos, ao que parece vamos lentamente avançando. Isto porque encontra-se no Congresso Nacional um projeto de lei quer trata da criação de uma “Comissão da Verdade” que, segundo a impressa, é prioritário para a presidenta Dilma. São atos e fatos que vão consolidando uma jovem democracia, de um país que não é muito afeito a ela.


IHU On-Line - A Justiça brasileira está longe de seguir os exemplos dos tribunais da Argentina, Chile e Uruguai, que já abriram seus arquivos da época da ditadura? Como esses países lidaram com o pós-ditadura?

Jair Krischke -
A Justiça, quer seja no Brasil ou em qualquer outra parte, é sempre o último poder a redemocratizar-se. A Constituição diz solenemente que todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. Não conheço qualquer pessoa que, em um pleito eleitoral, tenha sido chamada a votar em juízes e desembargadores. Para cúmulo, nosso Supremo Tribunal Federal, provocado pela OAB Nacional, pronunciou-se pela constitucionalidade da Lei de Anistia, tal qual a interpretam os que violaram os direitos humanos dos brasileiros. Mesmo os ministros que votaram favoravelmente, o fizeram usando uma argumentação simplesmente lamentável.

Em relação à Argentina, o Supremo Tribunal julgou absolutamente inconstitucional as leis de Obediencia Debida e a de Punto Final. Daí em diante, toda a Justiça da Argentina retomou os julgamentos de muitíssimas causas, com um número apreciável de condenações. No Uruguai passou-se o mesmo: sua Suprema Corte entendeu inconstitucional a Lei de Caducidad, para alguns casos, que foram demandados. Por outro lado, o plebiscito que pretendia anular a referida Lei de Caducidad foi derrotado nas ultimas eleições, impedindo assim, uma total abrangência. Mas, mesmo com dificuldades, o último presidente eleito antes do golpe, Bordaberry  (um golpista por excelência), e o presidente da ditadura, general Gregório Alves, cumprem pena de 25 anos de prisão, bem como um ex-ministro de Relações Exteriores, e vários oficiais de alta patente.
No Chile, mesmo vigente uma Lei de Anistia, vários generais e coronéis cumprem largas penas de prisão. Na verdade, poucos arquivos foram abertos; porém, já se tem acesso a muito material da repressão nestes países. Como se pode ver, nada de maior aconteceu no processo de redemocratização dos países referidos, prova de que é possível avançar, consolidando a democracia em nossos países.
Mesmo sem a abertura de arquivos, vamos progredindo a cada dia. São aquelas vítimas que, amedrontadas, ainda não haviam contado suas histórias, o que está acontecendo agora. Por exemplo, agora mesmo, um cidadão argentino que vivia com sua família e trabalhava em Passo Fundo, foi vítima de uma Operação Condor, em 12 de setembro de 1978. Na ocasião, intervimos com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e conseguimos levá-los para a Suécia, na condição de asilado. Nunca mais tive notícias deles. Agora, ele reaparece, bem documentado, provando o que lhe aconteceu naqueles dias.


IHU On-Line - Não se trata de vingança, mas de justiça o fato de se punir os crimes cometidos contra a humanidade no período da ditadura brasileira. Poderia comentar essa diferença de interpretação quanto ao que realmente significa punir os torturadores?

Jair Krischke - 
Punir aos torturadores significa fazer justiça tão somente. Um dos mais graves problemas de nosso país é justamente a impunidade, que certamente se origina neste fato, ou seja, se pode matar, torturar, desaparecer que não acontece nada. Esta cultura pouco a pouco vai impregnando o tecido social, tornando-se paradigma. Muito se fala em reconciliação da sociedade brasileira, mas esquecem-se de que, para haver uma verdadeira reconciliação, faz-se necessário, fundamental mesmo, o autor da ofensa reconhecê-la como de sua autoria, arrepender-se e pedir perdão à vitima. Com o ânimo ainda existente nas forças armadas brasileiras, seria possível esperar este gesto?


IHU On-Line - Na Europa há toda uma conscientização sobre o que significou o Holocausto. Já no Brasil, os anos de chumbo da ditadura são maquiados, para dizer o mínimo. O que explica essa diferença de conduta e compreensão?

Jair Krischke -
Vejamos alguns dados.

Tribunal de Nuremberg
285 dias de julgamentos
Ouviu 240 mil testemunhas – anotou 300 mil declarações – gerando 4 bilhões de palavras
Acusação final: 25 mil páginas
Condenados: 9 à morte – 12 à perpétua – 6 a penas de 10 a 20 anos – 3 absolvidos.

É a diferença de cultura. Aqui, os poderosos podem tudo! Historicamente, os militares sempre se dão bem no Brasil, mesmo quando praticam crimes os mais horrendos.


IHU On-Line - A violência das Forças Armadas do período ditatorial migrou para que outras instituições brasileiras? A semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura?

Jair Krischke -
Vamos examinar alguns dados sobre o aparelho repressivo no Brasil:
Número de agentes: 24 mil
Prendeu por razões políticas: 50 mil pessoas
Torturou: 20 mil pessoas
É bom ter em conta que nossas polícias sempre foram violentas e adeptas da tortura. O que mudou com a ditadura foi a sofisticação da tortura. Também faz parte do entulho autoritário a criação das polícias militares por Decreto Lei, vinculadas ainda hoje ao Exército brasileiro. Em Brasília, no famoso Forte Apaches, existe uma porta com a placa “Inspetor Geral das Polícias Militares”, exercido por um general. Sempre é bom lembrar, quando nos dizem, por exemplo: a Brigada Militar tem 170 anos. Sim, é verdade, mas como exército particular do governador do estado, é o mesmo caso das Forças Públicas de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco.


Leia mais...

Jair Krischke
já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.

• PNDH-3. Verdade, justiça e reparação. Entrevista especial com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia 09-01-2010

• Os 30 anos da anistia no Brasil. Entrevista especial com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia 31-08-2009

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