Edição 356 | 04 Abril 2011

Paulo, o enfant terrible da teologia

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger

Em Paulo de Tarso, existe uma forte sintonia entre as dimensões prática e pastoral de sua missão. Sua “genialidade teológica” foi a de formular a mensagem cristã tanto nas categorias judaicas quanto nas greco-romanas, aponta o teólogo suíço Daniel Marguerat

Em Paulo de Tarso, o “apóstolo dos gentios”, existe uma fonte sintonia entre as dimensões prática e pastoral de sua atividade missionária: “Ele elabora sua teologia em função das problemáticas que enfrenta e que lhe são apresentadas pelos cristãos das Igrejas que fundou”. E é aí que se encontra a sua “genialidade teológica”: formular a mensagem cristã tanto nas categorias judaicas da Torá e da história da salvação de Israel (Gálatas) quanto nas representações da filosofia greco-romana, em particular da estoica (1 Coríntios).

Para o teólogo suíço Daniel Marguerat, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o pensamento de Paulo tem uma coerência que se lê naquilo que ele chama de a “teologia da cruz”: “Trata-se de uma postura teológica para a qual a morte de Jesus representa o critério de verdade de toda afirmação cristã”.

Marguerat estará presente na Unisinos para participar da programação da Páscoa IHU 2011. Ele ministrará o curso Ler Paulo hoje. Um estudo em diálogo com filósofos contemporâneos, que irá ocorrer entre os dias 11 a 13 de abril, na Sala Inácio Ellacuría e Companheiros - IHU, na Unisinos, sempre das 8h45min às 11h45min e das 14h às 17h.

Esse diálogo terá, como alguns de seus interlocutores, os filósofos Alain Badiou e Giorgio Agamben. Para Marguerat, “Badiou nos ajuda a pensar a ética universalista de Paulo e o papel da ressurreição em sua teologia da cruz”, negligenciando, porém, a parte teológica do pensamento paulino, que funda o universalismo. E Agamben “nos convida a tomar claramente consciência da dimensão escatológica do pensamento de Paulo, isto é, de sua convicção que o mundo vive de uma verdade última que não lhe pertence, mas se revelará no fim dos tempos”.

Daniel Marguerat é professor emérito de Novo Testamento da Universidade de Lausanne, na Suíça, tendo lecionado nessa instituição entre 1984 a 2008. Após ter servido como pastor em algumas Igrejas Evangélicas Reformadas da Suíça nas décadas de 1970 e 1980, foi coordenador da Faculdade de Teologia da mesma universidade (1990-1992) e presidente da Studiorum Novi Testamenti Societas (2007-2008) e da Federação das Faculdades de Teologia de Genebra-Lausanne-Neuchâtel (2004-2005). De sua obra, foram publicados em português A Primeira História do Cristianismo: Os Atos dos Apóstolos (Paulus/Loyola, 2003), Novo Testamento: História, Escritura e Teologia (Loyola, 2009) e Para Ler as Narrativas Bíblicas: Iniciação à Análise Narrativa (Loyola, 2009), juntamente com Yvan Bourquin.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o "centro" do pensamento paulino? E qual foi a sua principal contribuição para a expansão do cristianismo?

Daniel Marguerat –
A identificação do centro, ou cerne, do pensamento de Paulo é atualmente objeto de vigorosos debates entre os exegetas. Alguns pensam que Paulo pensa contextualmente, isto é, que ele constrói seu pensamento em função das situações que ele enfrenta e dos debates nos quais se encontra engajado. É verdade que, entre sua primeira carta conhecida (1ª Carta aos Tessalonicenses), a carta aos Gálatas e as cartas aos Coríntios, o vocabulário e as categorias teológicas mudam consideravelmente. Alguns exegetas (Stendahl, Sanders, Dunn) contestaram a leitura clássica protestante que vê o centro da teologia paulina na doutrina da justificação pela fé. Eles fizeram notar com razão que nem 1 Tess nem as duas cartas aos Coríntios argumentam a partir da Lei judaica.

De minha parte considero que, efetivamente, o procedimento de Paulo tem dimensão prática e pastoral: ele elabora sua teologia em função das problemáticas que enfrenta e que lhe são apresentadas pelos cristãos das Igrejas que ele fundou. Está precisamente nisso sua genialidade teológica: poder formular a mensagem cristã, tanto nas categorias da Torá e da história da salvação de Israel (Gálatas) quanto nas representações da filosofia greco-romana, em particular da estoica (1 Coríntios). Não obstante, como procurarei mostrá-lo no curso na Unisinos, o pensamento de Paulo tem uma coerência que se lê em filigranas e que eu chamo de a “teologia da cruz”. Trata-se de uma postura teológica para a qual a morte de Jesus representa o critério de verdade de toda afirmação cristã.

A principal contribuição de Paulo foi a de formular a mensagem cristã no cruzamento de duas tradições: a tradição judaica – mais precisamente a farisaica, da qual ele é originário – e a cultura greco-romana, na qual ele foi formado, provavelmente na escola estoica de Tarso. Esse cruzamento cultural permitiu a Paulo pensar o cristianismo em termos de universalidade. É a Paulo que se deve a afirmação de que Deus, que se revela em Jesus Cristo, é o Deus universal, isto é, aquele que deixa de ser o Deus de um povo particular para tornar-se o Deus de todos e de cada um.


IHU On-Line – O senhor afirma que Paulo ensina a formular a identidade cristã como uma identidade aberta. O que significa isso hoje em nossa cultura globalizada?

Daniel Marguerat –
Paulo é o fundador do universalismo, como o mostrou o filósofo Alain Badiou. Afirmando que todo ser humano é acolhido por Deus, independentemente de sua cultura, de seu nível social, de seu estatuto religioso ou de seu sexo, Paulo faz voar em estilhaços toda definição fechada da identidade, ou seja, toda vontade de confiscar os valores para si ou para sua cultura. Deus rescinde toda discriminação entre os homens na medida em que introduz os fiéis, pelo batismo, em uma fraternidade da qual é banida toda hierarquia. É urgente que se entenda hoje, na ascensão dos individualismos e nas dobras identitárias às quais se assiste, essa afirmação da universalidade humana que ninguém formulou tão fortemente na história da humanidade. A globalização teve como efeito perverso exacerbar as crispações identitárias. Precisamos, ao mesmo tempo, estar enraizados em uma cultura particular e tomar consciência de nosso pertencer à humanidade global.


IHU On-Line – Em sua opinião, como o “mistério da Cruz”, refletido por Paulo, pode ser reinterpretado e aplicado no cristianismo? E em seu diálogo com as outras religiões?

Daniel Marguerat –
Paulo pensou radicalmente a cruz como a falência do imaginário religioso. É em Coríntios 1, 18-25, que ele o exprime mais claramente. Porque Jesus foi crucificado como blasfemo, porque ele foi conduzido à morte em nome de Deus e para salvaguardar a honra de Deus, Paulo conclui que a religião, por mais piedosa que seja, pode enganar-se, extraviar-se e conduzir os seus fiéis a se voltarem contra o seu próprio Deus. Paulo é o teólogo mais consciente da possível deriva de qualquer religião.

Com efeito, reconhecer que Deus se revela no silêncio de uma morte, a morte da cruz, contradiz todas as imagens de um Deus poderoso que segrega o imaginário. Dizer que Deus desvela sua força na extrema fragilidade do Filho pregado à cruz é um verdadeiro desafio a todas as nossas imagens do “Todo-poderoso”. Diz Paulo: essa é a “loucura” de Deus, que confunde a sabedoria humana. Somente aquiescendo a essa desconstrução dos nossos imaginários religiosos é que se pode captar a mensagem da cruz. No coração da convicção cristã, encontra-se um profundo paradoxo que faz da fé um salto na confiança, antes que o desfecho de uma racionalidade.

As consequências para o diálogo inter-religioso são consideráveis, como o mostrarei no curso. Toda religião é chamada a descobrir a parte de verdade do divino que as outras religiões vislumbraram.


IHU On-Line – Qual é a contribuição das mulheres na prática missionária de Paulo?

Daniel Marguerat –
Contrariamente à imagem antifeminista que perfaz injustamente sua reputação, Paulo fundou igrejas nas quais homens e mulheres dispunham de uma igualdade de valor, de direito e de acesso às responsabilidades comunitárias. Não se tratava simplesmente de uma estratégia missionária, mas da tradução ética do princípio da justificação pela fé. Como hei de mostrá-lo, será preciso deixar clara nossa percepção do famoso lema “Que as mulheres se calem nas assembleias” (1ª Carta aos Coríntios 14, 34), que é apenas uma medida disciplinar, visando restabelecer a ordem em uma igreja bastante agitada. Na realidade, são os sucessores de Paulo (e mesmo nem todos, como no-lo mostram os Atos apócrifos de Paulo) que colocaram as mulheres fora das responsabilidades eclesiais e em estrita dependência do homem. Nas igrejas paulinas, as mulheres oram e profetizam. Sua participação na rede missionária paulina foi importante. Não fala Paulo da mãe de Rufo, “que também é a minha” (Carta aos Romanos 1,13), reconhecendo que essa mulher é sua mãe espiritual?


IHU On-Line – Qual seria o significado, hoje, da pluralidade dentro do cristianismo, considerando-a como parte da sua vocação originária? Quais são os passos que o cristianismo deveria dar para melhor responder à sua vocação plural?

Daniel Marguerat –
A pluralidade do cristianismo não é uma deficiência de sua evolução histórica. Desde o seu nascimento no primeiro século, o cristianismo conheceu a pluralidade teológica. As maiores diferenças concretizavam-se entre judeu-cristãos e heleno-cristãos convertidos pela missão helenista, da qual Paulo foi o representante de maior brilho. Em toda a sua história, o cristianismo nunca se comportou como uma religião monolítica. Ele possui a faculdade de inculturar-se, de imergir em culturas e espiritualidades muito diversas. Uma vez mais, antes que um defeito, é preciso ver nisso um sinal característico de seu próprio gênio. As igrejas são, pois, chamadas a darem provas de criatividade para imergirem sua fé na cultura e no humanismo de seu lugar de vida. Aí não deveria haver um imperialismo cristão, no sentido da imposição de uma palavra única. O Novo Testamento é por si só o mais espetacular exemplo da diversidade cristã.

A unidade do cristianismo não pretende, pois, uma uniformidade de estrutura ou de teologia, mas o reconhecimento que, em sua diversidade, os diferentes ramos da cristandade constituem conjuntamente o corpo do Cristo no mundo.


IHU On-Line – Como o senhor descreveria os seus passos e processos de leitura e de análise narrativas da Bíblia?

Daniel Marguerat –
Pessoalmente, como formado classicamente na exegese histórico-crítica, eu descobri, desde os anos 1980, que uma única aproximação ou análise do texto bíblico era insuficiente para explorar sua riqueza de significado. Conheci, então, uma “conversão” metodológica, que não me conduziu ao abandono do questionamento histórico, que é e continua sendo indispensável, mas à sua articulação com aproximações [ou análises] sincrônicas ou pragmáticas. Explico. Trata-se, de uma parte, de aplicar ao texto um questionamento histórico que restitua seu ambiente histórico de produção, seu lugar de enunciação, sua orientação e a identidade de seus destinatários, bem como (se é possível) as fontes tradicionais sobre as quais o autor se apoia. Mas, de outra parte, é necessário interessar-se e envolver-se no texto como tal, no cerne de seus significados, em sua composição literária, em seus efeitos retóricos. A aproximação, ou análise, é então sincrônica (ela lê o texto tal como ele se dá à leitura) e não mais diacrônica (o texto inserido na história de sua composição).

Atualmente, a leitura da Bíblia se abriu definitivamente à pluralidade dos métodos. Hoje em dia, não é mais possível pretender que um só método de leitura seja suficiente para dar conta de um texto em suas diversas facetas. Vivemos, a esse respeito, um período de intensa criatividade metodológica que torna apaixonante o exercício da exegese. Desenvolve-se, ao lado da análise histórico-crítica clássica, uma leitura sócio-histórica que examina o tecido sociológico no qual se insere o uso da palavra dos autores bíblicos. A leitura feminista é sensível ao destino – com frequência oculto – das mulheres na Bíblia. A leitura chamada pós-colonial tenta exumar as relações de força nas quais se insere o cristianismo em suas origens.

As ciências da linguagem desenvolveram, após a análise estrutural dos anos 1970, dois tipos de leitura pragmática: de um lado, a análise retórica aplicada aos textos argumentativos (a correspondência paulina, por exemplo), e, de outra parte, a análise narrativa para os relatos. Este último método de leitura exuma o trabalho de construção narrativa dos narradores e identifica sua estratégia de comunicação. Pode-se, assim, fazer enorme progresso na compreensão de autores considerados medíocres, como o evangelista Marcos, de quem redescobrimos hoje em dia os talentos na composição narrativa. Sinto-me feliz, pois, em saber que meu livro Para Ler as Narrativas Bíblicas. Iniciação à Análise Narrativa foi traduzido ao português pelas Edições Loyola em 2009.


IHU On-Line – Em seu curso aqui no IHU, o senhor se propõe a fazer Paulo dialogar com filósofos contemporâneos. Especialmente com Alan Badiou e Giorgio Agamben, como se dá esse diálogo? Quais são seus pontos de contato e tensão?

Daniel Marguerat –
Teremos ocasião de constatar como Alain Badiou nos ajuda a pensar a ética universalista de Paulo e o papel da ressurreição em sua teologia da cruz. Mas Badiou negligencia a parte teológica do pensamento de Paulo, que funda o universalismo. Agamben nos convida a tomar claramente consciência da dimensão escatológica do pensamento de Paulo, isto é, de sua convicção que o mundo vive de uma verdade última que não lhe pertence, mas que se revelará no fim dos tempos. Como pensar o mundo em sua precariedade e a espera de seu cumprimento: eis ao que o olhar de Agamben é sensível.


IHU On-Line – Em que a “herança” de Paulo desafia a teologia contemporânea? Que avanços podem ser feitos a partir de uma releitura da teologia paulina diante dos desafios do mundo de hoje?

Daniel Marguerat –
Paulo é, sempre foi e continuará sendo o enfant terrible da teologia. Por isso é indispensável retornar a ele constantemente. Ele impede que o pensamento teológico se feche sobre os sistemas totalizantes e tranquilizadores e provoca todos os vincos doutrinários asseguradores, expondo o crente à pura gratuidade de uma salvação outorgada incondicionalmente por Deus. Toda vontade de reconstruir uma piedade ou uma ética que tornariam o crente “aceitável” diante de Deus é radicalmente posta em causa. O crente, homem ou mulher, é chamado a viver na absoluta liberdade daquele e daquela que deve tudo a seu Deus e recebe d’Ele o dom inestimável da liberdade. Fundado sobre a graça, o crente adquire assim uma inviolável estima de si. Ele recebe uma segurança interior que resiste tanto às agressões do mundo exterior, como aos assaltos da culpabilidade interior. Tal é, pelo menos, o desafio ao qual o apóstolo dos Gentios convida, ainda hoje, os que creem.


Leia Mais...

A IHU On-Line tem outras publicações a respeito de Paulo de Tarso. O material está disponível no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Paulo de Tarso e a contemporaneidade. Edição 175, de 10-04-2006

Paulo de Tarso: a sua relevância atual. Edição 286, de 22-12-2008

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