Edição 356 | 04 Abril 2011

O método do mestre José Comblin

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Frei Luiz Carlos Susin

Dono de uma fidelidade inquebrantável, José Comblin era alguém que obrigava seus pares a pensar, inclusive por uma questão de sobrevivência. A reflexão é de Luiz Carlos Susin em artigo inédito, escrito com exclusividade à IHU On-Line, refletindo sobre a trajetória do teólogo recentemente falecido e as vivências que com ele compartilhou. Luiz Carlos Susin é frei capuchinho, mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na Faculdade de Teologia da PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – Estef, em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, dentre as quais citamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006). Confira o artigo.

Quando morre um mestre, fica para os que o conheceram uma herança inelutável: a continuidade de seu ensinamento e ao mesmo tempo a pergunta: “quem pode substituir um mestre?” Na morte de José Comblin, um intelectual cristão, talvez muitos somados possam cobrir um pouco o vazio e dar continuidade a um modo tão radical de ser cristão e de ser intérprete dos caminhos do cristianismo e da humanidade. E o que, nesses dias de luto, mais me ocorre é a lembrança do método tão ao seu estilo. Kierkegaard  escreveu sobre o verdadeiro mestre: conduz o discípulo à perplexidade, provocando a descoberta de suas falsidades como ponto de partida de seu caminho para a verdade e para a liberdade. Desde 1985 tive a ocasião de estar regularmente nos encontros da Associação de Teologia e Ciências da Religião, do Brasil, da qual fui presidente na virada de milênio, e de poder escutar perplexo as análises que nosso mestre, nosso “patriarca”, nas palavras de Leonardo Boff , recorrentemente era convidado a fazer para começarmos nossos congressos anuais. Dizíamos com o mesmo bom humor que ele mantinha inalterado, que se tratava de uma “metralhadora giratória”! Mas nós também o cercávamos por todos os lados e o cobríamos de questões.

Essa “metralhadora giratória” não era aleatória ou gratuita e sem fundamentos, nem provinha de críticas que superassem a esperança e a paciência. Provinha de uma visão de grande alcance e de uma liberdade sem ideologias. Nem mesmo as mais delicadas e às vezes constrangedoras, as ideologias eclesiásticas. Como um médico concentrado no diagnóstico, ele passava pelos diferentes níveis da realidade humana: internacional, nacional, e nossa, dos teólogos. E por diferentes regiões: a política, a economia, os movimentos sociais, as igrejas, e até nossos pequenos mundinhos de sacristia e academia. Apalpava onde estava a dor, o sintoma, e então disparava o diagnóstico; às vezes usava o bisturi para dar o retoque. E a gente saia meio doído, meio tonto, buscando se localizar de novo, obrigando-nos a discutir, a pesar bem os argumentos, a retomar o fio da meada e alinhavar melhor as nossas ideias. Algo se sabia de antemão: Comblin nos obrigava a pensar, até por uma questão de sobrevivência! Ele não inventava, ele fazia uma leitura dos acontecimentos, dos movimentos da história, e colocava sua leitura diante de nossos olhos: dava o que pensar.

Pelo pescoço

É claro que, para um método tão forte, que não oferecia leite para recém-nascidos, mas oferecia alimento sólido para adultos, Comblin contava, em primeiro lugar, com recursos intelectuais acumulados, muita leitura e muita informação. Mas também uma interpretação centrada em alguns pontos absolutamente firmes e inegociáveis: ele sempre olhou o mundo com os olhos do seu mestre nazareno, com as opções evangélicas radicais que distinguem um cristianismo de verdade, com os pés no chão da realidade popular. Ele confessava ser um grande admirador de Dom Helder Câmara, mas nós sabíamos que o próprio Dom Helder devia um bocado do que foi ao seu companheiro teólogo Comblin. E juntos sofreram inclusive pelas mãos da Igreja. Por exemplo, na forma como foi encerrada a formação no Instituto de Teologia de Recife. Aliás, Comblin partilhou todos os tipos de sofrimento de Dom Helder, políticos e eclesiásticos, acrescidos de dois exílios, um a partir do Brasil e outro a partir do Chile. Mas amou e quis a América Latina como sua pátria grande. Percorreu-a por todo lado em cursos, conferências, assessorias de todo tipo, e esteve ao lado dos grandes bispos conciliares e pós-conciliares que deram originalidade ao pensamento teológico latino-americano.

Evidentemente, não foi amado por todos. É claro que incomodava. Em sua liberdade evangélica, dizia com tal simplicidade, sem levantar a voz, o que era difícil nomear na Igreja – os vícios da vontade de poder, as negociações, o medo ao profetismo e à coerência, etc. – a ponto de escutarmos intrigados, por exemplo, que o teólogo chileno Medina, aquele cardeal que, desde o balcão da basílica de São Pedro, anunciou Ratzinger eleito Papa Bento, quando se realizava a Assembleia de Puebla, em 1979, com seu bom tamanho, agarrar o nosso franzino Comblin pelo pescoço contra a parede e o levantar do chão. Ele nos concluiu esse relato com um sorriso bem humorado: “Eu cheguei a pensar, naquele instante, que tinha chegado ao fim dos meus dias!”

Fidelidade inquebrantável

E, no entanto, o seu otimismo e a sua vontade de trabalhar pelo evangelho e pelo Povo de Deus, sobretudo para que tivesse ministros e missionários populares, sempre foram os motivos centrais de todas as suas fadigas. Depois de Aparecida ele me escreveu um e-mail nesses termos: “Trabalhe para uma boa interpretação do documento de Aparecida , mesmo que ele tenha defeitos. Nós voltamos de Puebla, em 1979, sabendo que, em meio à colcha de retalhos de negociações, a porcentagem substanciosa de Puebla não era muita. Mas sabíamos que Puebla seria o que os intérpretes fariam de Puebla, e então nós nos metemos a interpretar e inflacionar o que acreditávamos que era o núcleo substancioso. Há sempre uma luta de interpretações, como aconteceu e ainda acontece com o Concílio Vaticano II”. Isso era parte de seu método.

Mas sua marca registrada, que unia método, teoria e coerência de vida, era sua inserção em meio ao povo do Nordeste. Ele não somente investigou a figura e a pastoral do Pe. Ibiapina; ele a viveu de alguma forma. Essa vida cristã que se encontra com lupa por toda parte no chão brasileiro era uma referência e uma autoridade evangélica. A partir dela fazia seus juízos e mantinha sua fidelidade inquebrantável. Quando algum interlocutor se queixava de alguma autoridade eclesiástica, ele lembrava com frequência que sempre há espaço para muita liberdade e muita criatividade no chão da vida do Povo de Deus.


No último congresso da Soter  Comblin não apareceu, não estava bem de saúde. Estive alguns dias com ele em San Salvador, no final de março de 2010, para celebrar 30 anos do assassinato de Dom Oscar Romero .

Fizemos juntos o circuito de visitas à catedral em que o grande mártir pregava, à igrejinha do hospital em que foi morto, à cripta em que está sepultado, à capela dos jesuítas assassinados  anos mais tarde e ao memorial em que se conservam escritos, fotos e coisas de tantas e tantos mártires salvadorenhos. Comblin fez o percurso com uma grande piedade; em alguns momentos pediu o braço para caminhar melhor. Senti-o mais frágil. Mas em sua conferência foi vigoroso e provocativo como sempre. Tratou do assunto que agora se ocupava em escrever: a questão da relação entre fé e religião, a possibilidade de muita religião e pouca fé, a necessidade de grande fé e religião simples. Isso fez parte de seu canto de vida: a verdade e a liberdade evangélica, eficaz e libertadora para os pobres e suas lutas de vida. Enfim o evangelho de Jesus, o único que lhe importou.

Leia mais...

>> Luiz Carlos Susin já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.

* “Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa”. Publicada na IHU On-Line número 320, de 21-12-2009, disponível em http://migre.me/4a0PH;


* “A mudança de eixo da humanidade. O III Fórum Mundial Teologia e Libertação”. Publicada em 28-1-2009, disponível em http://migre.me/4a0Qy;


* “Teologia da Libertação após Aparecida volta ao fundamento?” Publicada em 8-6-2008, disponível em http://migre.me/4a0RM;


* “Alteridade: um a priori de carne e osso”. Publica na IHU On-Line número 277, de 14-10-2008, disponível em http://migre.me/4a0W9;


* “Segundo Fórum Mundial de Teologia e Libertação”. Publicada em 9-2-2007, disponível em http://migre.me/4a0Sv;


* “Jon Sobrino e a Notificação do Vaticano. Depoimento de Luiz Carlos Susin”, publicado em 15-03-2007, disponível em http://migre.me/4a0Ty.

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