Edição 354 | 20 Dezembro 2010

A Palavra de Deus como “acontecimento” e “encontro”

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Por Moisés Sbardelotto

O conceito base da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini – a Palavra de Deus – é primordialmente um “acontecer” e um “encontro”, um “evento de comunicação de si mesmo que Deus realiza para conosco”, afirma o teólogo jesuíta Johan Konings

No último dia 30 de setembro, o Papa Bento XVI publicou o documento final da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, ocorrido em outubro de 2008, no Vaticano, em Roma. Intitulado Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini sobre a Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja, o documento dá continuidade à assembleia sinodal anterior, sobre a Eucaristia, marcando assim “o próprio coração da vida cristã” – Eucaristia e Palavra –, segundo as palavras do pontífice.

Para analisar o documento e sua repercussão na vida da Igreja, a IHU On-Line entrevistou por e-mail o teólogo jesuíta Johan Konings, que participou como perito, em 2008, da Assembleia do Sínodo dos Bispos. Professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, em Belo Horizonte, Konings afirma que “a Exortação procura fomentar a dimensão teológico-espiritual da leitura bíblica como mensagem para a vida pessoal e comunitária hoje, sem abrir mão do estudo científico do sentido primeiro, sem o qual o sentido de atualidade não teria base”.

Por isso, explica, o conceito base do documento – a Palavra de Deus – é entendida primordialmente como um “acontecer” e como um “encontro”. Ou seja, introduz-nos no “ato, o ‘evento’ de comunicação de si mesmo que Deus realiza para conosco sua autocomunicação ou revelação”. E tudo isso envolvido pelo sentido do “belo”, pois a Palavra de Deus “não é um comando, lei, receita, constato ou definição. É uma palavra que mais abre do que fecha o sentido – e estas são características da arte”, que “supera os nossos sentidos” e “nos faz ver o Deus que ninguém jamais viu”.

Johan Konings é padre jesuíta nascido na Bélgica, professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Participou como perito na XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em Roma, em 2008, com o tema A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja. Filósofo e filólogo, concluiu o doutorado em Teologia na Universidade Católica de Louvaina, na Bélgica. Entre seus livros publicados, citamos A Palavra se fez livro (Loyola, 2010, 4ª ed.) e Ser cristão – Fé e prática (Vozes, 2003, 5ª ed.). É autor, também, do artigo Hermenêutica da tradição cristã no limiar do século XXI, publicado pelos Cadernos Teologia Pública, nº 1, do IHU, disponível em http://migre.me/34rPv.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a recente Exortação Apostólica Verbum Domini a partir dos debates e das questões destacadas no Sínodo, em 2008?

Johan Konings –
Este documento representa com bastante fidelidade o que foi dito no Sínodo, tanto nos relatórios como nas Proposições aprovadas pela Assembleia. Evidentemente, tudo passou por um amplo processo de redação e de enriquecimento, sobretudo mediante citações de documentos anteriores do Magistério, dos Santos Padres, do próprio Bento XVI. Como todos esses elementos estão identificados nas referências de fonte (nas notas de rodapé), fica fácil reconhecer os acentos próprios que o Papa houve por bem reforçar, como sejam, principalmente: o encontro pessoal com Cristo, a questão do secularismo e a dimensão da fé, ou, mais exatamente, a circularidade dos métodos histórico-crítico e teológico no estudo bíblico. E também a liturgia e a lectio divina .


IHU On-Line – A Exortação também se apresenta como um aprofundamento da Constituição Dei Verbum , do Concílio Vaticano II . Em geral, quais são as ressonâncias ou os distanciamentos entre esses dois documentos?

Johan Konings –
Como o foi o Sínodo, a Exortação é uma reflexão a partir da Dei Verbum, e também da anterior Encíclica Divino Afflante Spirito  de Pio XII  e do posterior documento da Comissão Bíblica de 1993 . À primeira vista, não aparecem contradições. Talvez os teólogos mais críticos descobrirão, com o tempo, diferenças de acento, mas não parece que algo de essencial esteja em jogo. Poderíamos dizer que Pio XII, o Concílio e a Comissão Bíblica estavam mais preocupados em legitimar o estudo histórico-crítico e literário, enquanto a Exortação, refletindo certamente a preocupação do próprio Papa, procura fomentar a dimensão teológico-espiritual da leitura bíblica como mensagem para a vida pessoal e comunitária hoje, sem abrir mão do estudo científico do sentido primeiro, sem o qual o sentido de atualidade não teria base.


IHU On-Line – O tema central do Sínodo foi a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Em traços gerais, como a Exortação final interpreta e atualiza o conceito “Palavra de Deus”?

Johan Konings –
O que, para o teólogo, mais salta à vista é que este documento fala da Palavra de Deus como um “acontecer” e como um “encontro“. Costumeiramente, ao ouvir o termo “Palavra de Deus”, pensamos quase automaticamente num livro, a Bíblia; e quando se diz “o Verbo de Deus”, pensamos na segunda pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho. Claro, tudo isso está certo, mas o documento quer abrir nosso olhar e nosso modo de pensar para o ato, o “evento” de comunicação de si mesmo que Deus realiza para conosco sua autocomunicação ou revelação. Essa é uma realidade maior do que a Bíblia. A Bíblia faz parte da palavra de Deus e a contém de modo totalmente singular, mas não é pura e simplesmente “a Palavra de Deus”. Por outro lado, o evangelista João diz que Jesus é a Palavra de Deus em pessoa (leia o Evangelho de João, especialmente 1,14 e 1,16-18). E devemos completar isso pelo que diz o início da Carta aos Hebreus (Hb 1,1-2): “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho...”.

Deus não é um objeto sobre o qual possamos falar como se estivesse disponível à nossa observação e elucubração. “Ninguém jamais viu Deus” (João 1,18; cf. 6,46; 1ª Carta de João 4,12). Mas “o Unigênito, que é Deus e está junto do seio do Pai, este no-lo deu a conhecer” (João 1,18). E esse “dar a conhecer” não é um ensinamento em forma de conceitos, dogmas ou teses, mas uma história que se narra ou se expõe, como diz o texto original de João 1,18 (exegésato, em grego). É a história de Jesus de Nazaré. Ao narrar-se o que aconteceu em Jesus de Nazaré conhecemos a Deus, que ninguém jamais viu. Na hora de concluir sua história na terra, Jesus dirá: “Quem me viu, viu o Pai” (João 14,9), pois naquela hora ele vai dar sua vida por amor até o fim, e assim ele mostra Deus, pois “Deus é amor” (1João 4,8.16).
Esse acontecer, em que Deus se dá a conhecer, só chega a seu pleno efeito se se torna um encontro pessoal com aquele que é sua Palavra, Jesus de Nazaré, e para isso serve como base a narrativa de sua história, enraizada na história de seu povo, respectivamente no Novo e no Antigo Testamento. Mas para que o encontro se realize, não basta ler essas histórias. Precisa do ambiente da Tradição viva que, animada pelo Espírito de Cristo, o torna presente a nós hoje, na proclamação, na memória celebrada e na vivência de sua prática de vida.

Além de ver a Palavra de Deus como evento, como acontecer, o documento acentua também fortemente a unidade da Palavra de Deus, o que pode até ser uma chave de leitura. Pois exatamente a unidade da Palavra em suas diversas manifestações, como a descreve o conceito analógico que a primeira parte sublinha, permite ver a homogeneidade entre o sentido histórico de sua manifestação como registrada nas Escrituras, e o sentido atual hermeneuticamente desdobrado. É sempre a mesma Palavra que fala e nos convoca a dialogar.


IHU On-Line – O documento também dedica um capítulo à parte para refletir sobre “a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja” (n. 29). Como o senhor analisa a hermenêutica proposta pela Exortação?

Johan Konings –
O texto fica perto dos ensinamentos de Pio XII (Divino afflante Spiritu) e do Concílio Vaticano II (Dei Verbum), completados pelo documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993. O acento está no caráter eclesial. A oposição Tradição/Escritura parece superada, pois a Escritura é vista como parte da Tradição viva, mais especificamente, como seu momento fundador e referencial. Em torno disso, porém, há muito que esclarecer, sobretudo quanto à referência primordial em Cristo, que num certo sentido faz, do Novo, o “primeiro” Testamento. E também, quanto à relação dialética entre Tradição e Escritura, pois foi a própria Tradição viva que estabeleceu em que consiste o tesouro escriturístico...

O texto vê num mesmo olhar a referência a Cristo e sua comunidade, que, guiada pelo mesmo Espírito que é o do Senhor, encontra na Escritura a Palavra de Deus que inspira a sua vida. Ora, por trás disso está um processo de “abertura do texto”, e nesta abertura a exegese histórico-literária e a hermenêutica, ou interpretação atualizante, devem dar-se as mãos.
O termo “hermenêutica”, no sentido positivo, não é muito comum em documentos do Magistério supremo, mas a realidade que ele aponta não é nova. A exegese tradicional sempre privilegiou o sentido espiritual, e foi só no século XX que a Igreja Católica deu um lugar oficial – e ainda assim controvertido – à exegese histórico-crítica. No futuro, deverá ser aprimorada a articulação entre a exegese histórico-crítica, que investiga o que o autor quis dizer aos destinatários primeiros, e a hermenêutica, que estuda a nova abertura de sentido para cada geração, já desde o momento em que os escritos foram canonizados e interpretados em vista de seu conjunto (leitura canônica) e em vista da fé da Igreja (analogia da fé). Pouco importa que essa “leitura aberta” se chame de “sentido pleno” ou “espiritual” (suscitado pelo Espírito), sempre deverá ser homogênea com o sentido original, histórico, pois senão a analogia fidei perderia seu elo primeiro.

É no contexto dessas questões que se valoriza a preocupação em manter unidos os dois níveis da leitura bíblica, o nível histórico-crítico e o nível teológico (n. 34). Um não pode excluir o outro, nem devem os dois ficar justapostos, o que provocaria um dualismo insustentável (n. 35). Acertadamente, o texto relaciona isso com a problemática, mais ampla, de razão e fé (n. 36). É na perspectiva do sentido ampliado que se considera a unidade do Antigo e do Novo Testamento e a superação da “letra” (nn. 37-41). A crítica ao fundamentalismo cabe bem no quadro do documento (n. 44), pois este, como vimos, valoriza a semântica aberta, o que o fundamentalismo nega. E é valioso o parágrafo sobre a vida cristã, especialmente dos santos, como “hermenêutica viva” da Palavra de Deus (n. 49).


IHU On-Line – Outra questão levantada pela Exortação é a liturgia, já que “na ação litúrgica, a Palavra de Deus […] [se] torna operante no coração dos fiéis” (n. 52). À luz do documento, como se dá essa relação entre Palavra e liturgia? Como podemos repensar essa relação na vida da Igreja, diante dos desafios da contemporaneidade?

Johan Konings –
Considerando a Igreja como “casa da Palavra”, pensa-se antes de tudo na liturgia, âmbito privilegiado onde Deus fala hoje ao seu povo que escuta e responde. Cada ação litúrgica é impregnada pela Sagrada Escritura. O próprio Cristo está presente na sua palavra: é Ele que fala quando é lida na Igreja a Sagrada Escritura. A Palavra de Deus permanece viva e eficaz pela ação do Espírito Santo, que sugere a cada um tudo aquilo que, na proclamação da Palavra, é dito para a assembleia inteira. E, enquanto reforça a unidade de todos, o Espírito favorece também a diversidade dos carismas e valoriza a ação multiforme.
Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à Sagrada Escritura deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como palavra atual e viva. Dispondo a leitura da Palavra de Deus em torno do centro que é o Mistério Pascal, o Ano Litúrgico mostra os mistérios fundamentais da nossa fé.

O texto fala muito do caráter performativo da Palavra na liturgia, tanto da Eucaristia como dos outros sacramentos. A palavra não só fala, mas age. Por isso, a liturgia da palavra é um elemento decisivo em todos os sacramentos. Não há separação entre o que Deus diz e faz. Na ação litúrgica, sua Palavra realiza aquilo que diz. O documento aponta dois exemplos: o sinal do Pão no capítulo 6 do Evangelho de João e a história de Emaús, em Lucas 24.

A Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia pela Igreja, conduz ao banquete da graça, a Eucaristia. Palavra e Eucaristia não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, e esta, por sua vez, ilumina e explica o mistério eucarístico. Sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura. Em palavras mais simples: na proclamação do Evangelho (emoldurado pelas outras leituras e pelo Salmo Responsorial, que é também Palavra de Deus), Jesus diz em que consiste o Reino, o Projeto do Pai. E na consagração, celebramos a memória de como ele colocou isso na prática, dando sua vida até a morte. Palavra e ação, inseparavelmente unidas. Por isso, a principal celebração cristã tem a Mesa da Palavra e a Mesa do Pão, e pede-se que isso transpareça até na disposição arquitetônica, sendo ambas devidamente acentuadas e visualmente relacionadas entre si.
Tudo isso tem consequências práticas para nossas comunidades: não é normal que – como acontece no Brasil – 70% das celebrações dominicais são celebrações da Palavra sem a consagração eucarística. Isso, por falta de sacerdotes. Será que não há meio de aliviar essa falta? E tem também consequências para o modo de celebrar e de assistir. Se a escuta da Palavra e a memória da Ceia da Aliança e da morte de Jesus constituem uma unidade, será que não deveria haver um pouco mais de compenetração em nossas eucaristias, músicas mais profundas, mais verdadeiramente bíblicas, cristológicas e comunitárias, menos individualismo e vedetismo, menos show? E que dizer das homilias, as quais, exatamente, deveriam mostrar a vinculação entre a palavra proclamada e o mistério celebrado, para fecundar a nossa vida e missão no dia a dia, na comunidade e no mundo?

Sobretudo, a Palavra, unida à memória sacramental do gesto, deve produzir em nós o fruto da caridade, numa forma coerente com nossa contemporaneidade, inclusive, com suas dimensões políticas e sociais e – por estarmos falando a universitários – científicas, mediante o saber responsavelmente assimilado e posto a serviço da humanidade, na qual a Palavra veio morar, e da criação, que por meio dela veio a ser.


IHU On-Line – Como já dizia o tema do Sínodo, a Exortação ressalta que a missão da Igreja é anunciar a palavra de Deus ao mundo. Nesse sentido, como podemos compreender o diálogo da Igreja com um mundo cada vez mais globalizado, multicultural e multirreligioso?

Johan Konings –
Os primeiros cristãos consideraram o anúncio missionário como exigência da própria fé, que não pertencia a um âmbito cultural particular, mas ao da verdade, que diz respeito a todos (cf. Paulo no Areópago, At 17,16-34). Como disse o Papa certo dia, o cristão deve dizer a todos: “O Deus desconhecido mostrou-se, em pessoa, e agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento, mas num fato: Ele revelou-se” (n. 93).
O dom do Espírito nos assimila a Cristo, o Enviado do Pai (Jo 20,21). Devemos descobrir a urgência e também a beleza de anunciar a Palavra para a vinda do Reino de Deus pregado por Jesus e que é sua própria pessoa. A luz de Cristo deve iluminar cada âmbito da humanidade, como palavra que desinstala, que chama à conversão e propicia o encontro com Ele, para que floresça uma humanidade nova.
A globalização, característica da nossa época, permite viver em contacto mais estreito com pessoas de culturas e religiões diferentes, oportunidade providencial para promover relações de fraternidade universal e uma mentalidade que veja em Deus o fundamento de todo o bem, a fonte da vida moral e o sustentáculo do sentido de fraternidade. Lembra-se a Aliança estabelecida em Noé com toda a humanidade (Gn 9,13-16). Em muitas das grandes tradições religiosas aparece a ligação íntima entre a relação com Deus e a ética do amor universal.
Daí o respeito por todas as culturas e religiões que colaboram para isso, mas também a justa crítica quando isso não acontece – inclusive no tradicional âmbito cristão. Essa atitude positiva e ao mesmo tempo crítica se exprime, por exemplo, no parágrafo dedicado ao Islão (n. 118). Os muçulmanos reconhecem a existência de um único Deus, e sua tradição contém figuras, símbolos e temas bíblicos. Continue-se, pois, o diálogo sincero e respeitoso, fazendo votos de que se aprofundem o respeito da vida como valor fundamental, os direitos do homem e da mulher e a sua igual dignidade.
Tendo em conta a distinção entre a ordem sociopolítica e a ordem religiosa, as religiões devem dar a sua contribuição para o bem comum. Quanto à cultura propriamente, quero apontar três ideias:

1) A tradição admira os artistas “enamorados da beleza”, que se deixaram inspirar pelos textos sagrados e ajudaram a tornar de algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades invisíveis e eternas.

2) Recomenda-se o uso inteligente dos meios de comunicação social, bem como a atenção a seu rápido desenvolvimento e diversos níveis de interação. Há que reconhecer um papel crescente à internet, que constitui um novo fórum para a voz do Evangelho. Mas não pode ficar no virtual; deve chegar ao encontro pessoal. No mundo da internet, deverá sobressair o rosto de Cristo e ouvir-se a sua voz, porque, “se não há espaço para Cristo, não há espaço para o homem”.

3) Deus comunica-se numa cultura concreta, assumindo os códigos nela inscritos. Por outro lado, a Palavra tem caráter intercultural e deve ser transmitida em culturas diferentes – evangelização das culturas –, transfigurando-as a partir de dentro. Mas a inculturação do Evangelho não deve ser confundida com adaptação superficial ou mistura sincretista; só será um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura transformada e regenerada pelo Evangelho deixar crescer em seu próprio seio as “sementes da Palavra” e produzir na sua própria tradição expressões de vida cristã que sejam originais – não simplesmente importadas do Velho Mundo.


IHU On-Line – Destaca-se, no final, que o tempo atual urge “uma nova escuta da Palavra de Deus e […] uma nova evangelização” (n. 122). Como o senhor analisa esse desafio no contexto atual da Igreja brasileira, “aqui e agora”?

Johan Konings –
Continua necessária a missio ad gentes, aos que não conhecem o Evangelho de Cristo. A Igreja deve ir ao encontro de todos, com a força do Espírito, e continuar profeticamente a defender o direito e a liberdade de as pessoas escutarem a Palavra de Deus, procurando os meios mais eficazes para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição.
Porém, há também nas regiões consideradas cristãs muitos que foram “batizados, e talvez até catequizados, mas não suficientemente evangelizados”, e que têm necessidade de um novo anúncio da Palavra de Deus. Nações outrora ricas de fé e de vocações vão perdendo a própria identidade, sob a influência de uma cultura secularizada. Daí a exigência de uma nova evangelização. Os “índios” a serem evangelizados encontram-se agora na Avenida Paulista , nos Alphaville ...

Os horizontes imensos e a complexidade da situação presente requerem, hoje, novas modalidades para que a Palavra de Deus seja comunicada eficazmente, sob a guia do Espírito de Cristo.
Ora, antes de mais nada, há a relação intrínseca entre comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão, pois é indispensável dar credibilidade à Palavra pelo testemunho vital. O testemunho comunica a Palavra atestada nas Escrituras, e as Escrituras explicam o testemunho que os cristãos são chamados a dar com a própria vida.
E ainda, nossa responsabilidade não se limita a sugerir valores que compartilhamos; é preciso chegar ao anúncio explícito da Palavra. Não há verdadeira evangelização, se não forem proclamados o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus. A nova evangelização não se contenta, pois, com a divulgação de valores cristãos, ou com um serviço de inspiração cristã à sociedade, como fazem, por exemplo, muitas escolas ou universidades cristãs. Isso tem seu valor. Porém, o que é preciso mesmo é formar novos cristãos, que professem sua fé e pratiquem o que professam.


IHU On-Line – Como convite à leitura, que aspectos centrais o senhor destacaria no documento, para aprofundar o diálogo entre o “Deus que fala” e o homem que responde, hoje?

Johan Konings –
A Exortação preocupa-se, em primeiro lugar, em orientar o destinatário da Palavra de Deus e do testemunho eclesial para o encontro pessoal com Cristo. O conhecimento da Bíblia, sem a qual não se pode conhecer Cristo, ocupa nisso um lugar central, desde que seja abordada numa perspectiva que leve Deus à fala, numa lectio divina.
Daí a importância da Cristologia da Palavra (nn. 11-13), ou seja, a exposição sobre a Palavra de Deus em Jesus Cristo como centro da teologia cristã, numa linguagem que ultrapassa o uso de conceitos “feitos e acabados”, mas possa evocar o acontecer da autocomunicação de Deus.

Em conexão com isso, a hermenêutica bíblico-teológica é vista como uma circularidade entre o estudo científico-crítico do verdadeiro fato histórico e a compreensão teológica que, por força de seu objeto, recorre à analogia, ao sentido ampliado ou “pleno” daquilo que é assinalado pelo sentido histórico. Sem desistir da racionalidade científica, tal hermenêutica permite conceber significações que superam a “letra”, sem se desprender dela.

Quanto à prática pastoral, deseja-se que toda a pastoral seja bíblica: se a Bíblia é o registro original e privilegiado da Palavra definitiva que Deus nos dirigiu em Jesus de Nazaré – depois de ter falado na Criação, na história do Povo de Deus e nos Profetas –, ela não pode ser confinada num setor da catequese ou da pastoral, mas deve ser a referência sempre presente de toda a pastoral. E o meio mais eficaz para isso é, certamente, a valorização da Liturgia, que toda ela é habitada pela Palavra, a ponto de se falar numa “presença real” da Palavra de Deus.

Um elemento que me agradou muito é o discreto aceno ao “belo”. A Palavra de Deus é uma palavra de amor, e toda a palavra de amor envolve aquele a quem se destina. Não é um comando, lei, receita, constato ou definição. É uma palavra que mais abre do que fecha o sentido – e estas são características da arte. A Escritura narra o acontecer do amor de Deus junto a seu povo, e somos arrastados pela beleza da narração. Representa os sentimentos do piedoso no encontro com Deus, e procuramos nos identificar com quem assim reza. Narra Deus mesmo na sua manifestação definitiva em Jesus, e contemplamos no silêncio a Palavra que as palavras só podem evocar e invocar, nunca esgotar. Aí está o “Belo”, o que supera os nossos sentidos, o que nos faz ver o Deus que ninguém jamais viu. O próprio Documento, em muitas de suas páginas, brilha pela beleza e sensibilidade de suas expressões. É preciso captar essa dimensão estética para desfrutar toda a sua riqueza.

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