Edição 351 | 22 Novembro 2010

Uma distribuição de renda sem confronto

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Patrícia Fachin

De acordo com o economista Gabriel Rossini, não há motivos para falar na ascensão de uma nova classe média. O que está ocorrendo “é uma ligeira distribuição de renda sem confronto”

O modelo de desenvolvimento econômico e social em curso no Brasil busca “ininterruptamente” o equilibrio entre as classes sociais e atende desde os empresários, o setor financeiro até a população que “estava mergulhada na miséria, aqueles que nos anos 1940 Caio Prado chamou de ‘desclassificados’ e que hoje se tornaram os inempregáveis”. A opinião do economista foi manifestada na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail. Para ele, os brasileiros estão vivenciando “a preservação de parte de nossas raízes, de aspectos do nosso passado, um passado que se acaba a cada minuto, porém, nunca acabando de se acabar. Somos, em grande medida, prisioneiros de um passado cujo aniquilamento não se consome, por mais que incorpore certas exigências do novo”. Na avaliação do economista, não há uma “uma ampliação da classe média e, sim, a ampliação do subproletariado. O movimento ascensional ocorre entre parte da população que era miserável e pobre e passou a ter possibilidade de adquirir alguns bens e serviços aos quais antes não tinha acesso. Isso ocorreu apesar do conservadorismo da vertente monetária da política macroeconômica. Portanto, o movimento é dos pobres e miseráveis para o subproletariado, tal como explicita André Singer”. De acordo com Rossini, isso se confirma no fato de o subrproletariado não ter o “padrão de consumo que os proletários tinham quando a ponta de lança da acumulação era o capital produtivo nem, muito menos, o padrão de consumo, a educação, as possibilidades de certa sociabilidade do que normalmente se identifica como classe média”.

Gabriel Rossini é mestre em Desenvolvimento Econômico (IE-Unicamp) e professor do Departamento de Economia da PUC-SP e do CCSA-Mackenzie.

Confira a entrevista.



IHU On-Line - Que modelo de desenvolvimento econômico e social está em curso no Brasil? Hoje podemos vislumbrar um projeto nacional?

Gabriel Rossini -
O modelo de desenvolvimento econômico e social que hoje está em curso no Brasil é algo que, ininterruptamente, busca certo equilíbrio entre as classes sociais. É um modelo que procura atender, por mais estranho que pareça – e, diga-se de passagem, é aí que encontramos a sua especificidade –, por um lado, aos empresários, ao setor financeiro, aos latifundiários e, por outro, à população que outrora estava mergulhada na miséria e na pobreza, aqueles que nos anos 1940 Caio Prado chamou de “desclassificados” e que hoje se tornaram os inempregáveis. Este seria hoje o projeto nacional em vigor. Cada época tem o projeto nacional que merece. Tal projeto, em última instância, não é uma novidade, de forma menos bem sucedida foi praticado por outros governos. O que estamos vivenciando, para a angústia dos leitores de Sergio Buarque de Holanda, é a preservação de parte de nossas raízes, de aspectos do nosso passado, um passado que se acaba a cada minuto, porém, nunca acabando de se acabar. Somos, em grande medida, prisioneiros de um passado cujo aniquilamento não se consome, por mais que incorpore certas exigências do novo.

Temos no horizonte o fim da pobreza extrema em virtude da manipulação acertada, principalmente durante o segundo mandato do Lula, de algumas variáveis, tais como: recuperação do poder de compra do salário mínimo (embora ele continue muito aquém do necessário para fazer frente às necessidades de saúde, educação, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social do trabalhador. Segundo o Dieese o salário mínimo para isso deveria ser, em fevereiro de 2010, 2.003,30 reais, geração de empregos e os programas de transferência de renda que promovem mais a equidade do que a igualdade. Os resultados de tais processos aparecem na ligeira melhora de nosso índice de Gini, que em 2010 gira em torno de 0,49. Houve melhoras, este é um lado da moeda. Todavia, por exemplo, as mulheres e, sobretudo, as negras, continuam em geral, passando por grandes privações. As mulheres recebem menor salário que os homens pelo mesmo tipo de trabalho, têm maior presença na economia informal e trabalham mais horas que eles. Em média, o número de pessoas vivendo com menos de um dólar por dia é duas vezes maior entre mulheres do que entre os homens brancos.


Outro lado da moeda?

O outro lado seria a manutenção de uma política macroeconômica pautada por meta de inflação, taxas de juros escorchantes, superávit primário elevado e câmbio apreciado. Temos aí a preservação e o fortalecimento do interesse dos ricos e do grande capital. O que continua obstaculizando o caminho para superarmos problemas que nos remetem ao século XIX.

Um aspecto que merece atenção é o fato de que as políticas anticíclicas postas em marcha frente à crise irrompida na virada de 2007 para 2008 acabam potencializando os efeitos deletérios dos interesses de certos grupos nacionais. Tais políticas possibilitaram que a crise fosse minimizada de uma forma, digamos assim, não tradicional. O modo “costumeiro” de o sistema sair das crises consiste na destruição de grande massa de capital fictício e de capital-mercadoria invendável, acompanhada de um período de grande penúria dos trabalhadores, e cujo resultado final é a concentração do capital restante nas mãos dos grupos capitalistas sobreviventes. Desta vez assistimos apenas aos primeiros passos desse processo. Por um lado, ocorreu destruição de capital fictício e, por outro, deu-se uma ampla eliminação de postos de trabalho. Logo em seguida, porém, foram implementadas medidas de contenção dos efeitos imediatos do excesso de capital e de capacidade produtiva, o que resultou na preservação de grande volume de capital ocioso, mantendo em pé os direitos do capital financeiro sobre o produto social futuro. O que aconteceu, em última análise, foi uma solução financeira imediata para a crise. A circulação do capital financeiro internacional foi reanimada, embora sem reerguê-la ao nível anterior. Tal solução, entretanto, cria uma nova “normalidade” capitalista, acentuadamente mais nociva, pois é ainda mais dependente de subsídios e de privilégios garantidos pelo Estado. O resultado dessa situação é que a crise não explode, mas também não para, tendendo a se espalhar lentamente e a prolongar-se indefinidamente. E tal processo beneficia certos interesses do capital financeiro nacional.
Assim, temos um contexto propiciado pelo governo Lula, no qual prevalece a conciliação de classes. De um lado, ele tem o apoio do capital financeiro e, de outro, dos desclassificados sociais ou, como diria o economista Paul Singer, do “subproletariado”, ou seja, um contingente de trabalhadores não qualificados, sem carteira profissional e de baixíssima renda que constitui nada mais, nada menos do que metade da população economicamente ativa. Assim sendo, temos a configuração de um cenário que possibilita a melhoria da distribuição de renda no quadro da manutenção do jogo financeiro.


IHU On-Line - Tal contexto seria corroborado pela atual ampliação do crédito? Qual a relação do aumento do crédito e a recente ampliação da classe média?

Gabriel Rossini -
O que estamos vivenciando não é tanto a ampliação da classe média e sim a ampliação do subproletariado. O movimento ascensional ocorre entre parte da população que era miserável e pobre e passou a ter possibilidade de adquirir alguns bens e serviços aos quais antes não tinha acesso. Isso ocorreu apesar do conservadorismo da vertente monetária da política macroeconômica. Portanto, o movimento é dos pobres e miseráveis para o subproletariado, tal como explicita André Singer. Ao lado disso, e com uma importância menor, as oportunidades de acessão social para alguns setores menos pobres se efetivaram em virtude da criação de empregos formais. O importante nesta história é que o subproletariado não tem o padrão de consumo que os proletários tinham quando a ponta de lança da acumulação era o capital produtivo nem, muito menos, o padrão de consumo, a educação, as possibilidades de certa sociabilidade do que normalmente se identifica como classe média. Mesmo assim, no interior nordestino, nas cidades do Amazonas, nos lugares onde a aposentadoria era o único meio de renda, passou a ocorrer uma melhora considerável, o mercado interno de massa foi alentado. O que está ocorrendo, deste modo, é uma ligeira distribuição de renda sem confronto. Para tanto, os programas de transferência de renda e a geração de empregos desempenharam papel importante. Aliado a estes, potencializando o consumo, temos o crescente endividamento pessoal, que chega hoje, segundo dados do Bacen, a cerca de ¼ do ganho mensal. Se tudo correr bem e o Brasil continuar crescendo a taxas consideráveis nos próximos anos, não haverá problema, este endividamento é parte da própria estratégia de ampliação de mercado. Porém, se as coisas tomarem outro rumo, os endividamentos podem se tornar um problema, o que não é uma possibilidade distante, pois, como mencionamos, a última crise não foi solucionada e os golden boys estão se reerguendo do período vergonhoso que enfrentaram.


IHU On-Line - Em uma de suas respostas anteriores você comentou sobre a existência ou persistência de problemas que nos remetem ao século XIX, quais seriam?

Gabriel Rossini -
O problema fundamental reside na distribuição da terra. Na questão da terra encontramos parte das raízes do nosso atraso, como discute a professora Lígia Osório em seu livro Terras Devolutas e Latifúndios . É ainda pouco claro para muitos o processo específico pelo qual a apropriação territorial foi estabelecendo o monopólio da terra e moldando de forma perversa a nossa estrutura agrária. Vou tentar esboçar em grandes traços parte importante do processo.

O equacionamento da questão agrária brasileira, até a primeira metade do século XIX, foi assegurar a compatibilidade da instituição escravista com o desenvolvimento econômico e a imigração europeia. Custou-se a tomar qualquer decisão em relação à apropriação territorial, embora D. Pedro II tenha suspendido o regime de concessão de sesmarias pouco antes da independência. A agricultura rudimentar apoiava-se no trabalho escravo e na incorporação contínua de terras novas. Com a desculpa de favorecer a ocupação produtiva do solo, tolerava-se a passagem desenfreada das terras do patrimônio público para o patrimônio privado. Graças à permanência da escravidão as classes dominantes brasileiras não viram motivos para se preocuparem com a delimitação das suas propriedades, nem com o problema da reprodução da mão de obra. Somente em 1850, forçado a competir pelo fluxo internacional de emigrantes, e com os títulos de terras em completa balbúrdia, o Império adotou uma lei de terras e de colonização. Apesar de detalhista, a lei falhava no essencial. Entre as falhas mais graves estava a inoperante definição das terras públicas, pois a iniciativa do processo de discriminação da terra cabia aos particulares, ou seja, todo o processo ficava na dependência da demarcação das terras particulares que, por efeito da lei seriam legitimadas ou revalidadas. Uma vez informados sobre a situação das terras particulares, esses órgãos mediriam e demarcariam as terras reservadas para a colonização. Dando início a todo o processo, portanto, estava o requerimento do posseiro ou sesmeiro para medir e demarcar suas terras; como relutaram em fazê-lo, todo o processo ficou emperrado. Como no Brasil os senhores de terras e de escravos detinham o poder sem precisar dividi-lo com outras camadas sociais, os limites impostos a eles pela legislação foram pífios. Ao contrário, foram eles que impuseram limites à política de colonização do governo. Embora proibida pela lei, a passagem das terras públicas para o domínio privado continuou a ocorrer através da posse, no período de vigência da Lei de Terra (1850-1930) e até bem depois. Aspecto distintivo da formação da propriedade da terra no Brasil, esta forma de apropriação ainda não perdeu sua importância nos dias atuais, e sem que esta prática tenha levado a uma diminuição na alta concentração da propriedade da terra.

Neste processo encontramos as raízes da concentração fundiária brasileira, uma das mais altas do mundo e que origina efeitos nocivos sobre toda a sociedade. A reforma agrária tem um conteúdo econômico muito concreto para os trabalhadores rurais, cuja única possibilidade de sobrevivência digna está atrelada ao acesso à terra. O padrão fundiário marcado pela apropriação desenfreada de terras públicas realizada por uma pequena parcela da população rural, em condições históricas bem precisas, resultou, de um lado, na expansão da capacidade produtiva e da produtividade em algumas regiões do país e, de outro, na marginalização da maioria da população rural devido à alta concentração da propriedade da terra e do crédito agrícola. A reforma agrária é uma opção no sentido de enveredar por um caminho diferente do trilhado até agora e a opção realmente eficaz de combate ao desemprego.

Uma das funções principais do latifúndio improdutivo é manter os salários dos trabalhadores rurais muito baixos, pois torna a terra não disponível para uma massa crescente de trabalhadores rurais. A marginalização de uma parcela importante da população rural do acesso à terra reduz muito o poder de barganha dos trabalhadores rurais, cujos direitos trabalhistas e níveis salariais estão aquém dos já insatisfatórios patamares conquistados pelos trabalhadores urbanos. Embora a elite proprietária procure prender seus trabalhadores à empresa rural, não deseja atá-los a terra – sobretudo não através dos direitos de posse que a legislação contempla. É por isso que proíbe seus moradores de semear plantas permanentes ou conservar gado em número significativo; retém a propriedade das choças, embora o morador possa arcar com as despesas da construção; e frequentemente muda as famílias de lugar, provocando uma pequena migração de tempos em tempos dentro da empresa.

Fazer a reforma agrária deveria ser o grande objetivo da presidente eleita Dilma Rousseff. Esta situação, pautada por amplo apoio dos pobres em virtude da ligeira e positiva mobilidade social que vivenciaram e que possibilitou grande parte dos 70% de aprovação de Lula e a eleição de Dilma, poderia ser aproveitada. Tal situação possibilita uma correlação de forças favorável.


IHU On-Line - De que maneira o Brasil deve usar os recursos do pré-sal?

Gabriel Rossini -
Com relação ao pré-sal, primeiramente temos que saber de fato onde ele está, se há somente uma grande reserva ou algumas ou várias isoladas. Portanto, temos que descobrir qual o seu real volume e em que condições ele pode ser extraído. Dependendo do volume de petróleo existente, a sua extração deve ser organizada de forma a viabilizar saúde e educação de qualidade, aposentadorias dignas – como hoje ocorre com os recursos do petróleo na Noruega –, a redistribuição da terra no campo, investimentos em infraestrutura e a transição de nossa matriz energética. Se é possível ou não fazer tudo isso ainda não sabemos, pois não conhecemos o tanto de petróleo que há. Além disso, se o volume de petróleo do pré-sal for muito grande, parte dele deve permanecer debaixo da terra, pois dificilmente algum investimento ou aplicação será tão promissor em um mundo no qual a readequação da matriz energética ainda é algo distante. Porém, os movimentos iniciais relativos a extensão do pré-sal já conhecida parecem não corroborar tais intenções. Hoje 28% da área atual do pré-sal já foram privatizados.

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