Edição 349 | 01 Novembro 2010

Ciência e práticas de pesquisa na contemporaneidade

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Andres Kalikoske

Desde que a ciência se desmembrou da filosofia, pesquisadores de diversas áreas têm se questionado sobre a fronteira existente entre ciência e conhecimento. A partir da metafísica e da lógica do empirismo, desenvolveu-se a epistemologia, disciplina capaz de esclarecer a genealogia científica, assim como as estruturas e métodos que legitimam os saberes hoje institucionalizados. Dotada de caráter flexível e transdisciplinar, a epistemologia se aprofundou nos conhecimentos lógicos, linguísticos, sociológicos e ideológicos. Na contemporaneidade, se pode dizer que os processos científicos enfrentam uma dúbia realidade.

Por um lado, há o desbravamento dos fenômenos a partir de preceitos metodológicos, aliados à formação cognitiva do pesquisador, que elevam a ciência ao posto de atividade fundamental para se compreender o mundo moderno. Mas por outro, o tecnicismo ainda pulsa intensamente nas instituições de ensino superior, vigorando um espírito questionador sobre a pesquisa científica. Em áreas de forte cultura do profissionalismo, estudantes acreditam que o saber pode ser reduzido à técnica, desconsiderando que, sem pesquisa, essa mesma técnica não avança e o conhecimento se estanca.
No entanto, não se deve elevar à ciência a competência de resolver integralmente os problemas da sociedade. Este é um pensamento ainda corriqueiro em diversas comunidades científicas. Frente ao entendimento de que o modo de produção capitalista utiliza forças produtivas para transformar insumos em produtos, as práticas da atividade científica também devem ser analisadas neste âmbito. Entendido de outra maneira, a persuasão do capitalismo enquadrou também a ciência em sua lógica. A farmacologia é um exemplo, através de sua incansável busca por royalties. Ainda que os benefícios de seu desenvolvimento sejam inquestionáveis para a humanidade, seu número de externalidades negativas também é crescente.

A partir da identificação de paradigmas dominantes como a mecânica newtoniana, os modelos ptolomaico e copernicano de astronomia e as teorias do flogisto e oxigênio, o físico norte-americano Thomas Kuhn defendeu sua tese sobre a incomensurabilidade. Nesse momento, estabeleceu os fundamentos para uma trajetória cientificista do conhecimento. Algo similar às ideias que Saussure e seu legado trouxeram para o desenvolvimento da linguística. Rupturas epistemológicas desse nível assinalam que toda mudança paradigmática resulta numa elevada transformação no clima intelectual de uma época. Ainda que confrontos internos também possam ser projetados, esses saberes mantêm relação direta com o conhecimento tácito, ou seja, uma espécie de know-how específico, compartilhado no âmago de um grupo. No entanto, a dinâmica vertical do compartilhamento de teorias, ou seja, entre membros específicos, pode se tornar numa fonte inesgotável de estagnação do saber. É por este motivo que as pesquisas que utilizam uma corrente singular de autores se deparam com a impossibilidade de contemplar as múltiplas facetas do fenômeno que estão analisando. Uma alternativa que eleva a importância desses trabalhos é a utilização de métodos cruzados, dotados de inovação; ou a introdução de saberes advindos do conhecimento popular, ainda carente de subsídio científico.

A subutilização das práticas de pesquisa representa um enorme problema ao âmbito acadêmico. Ocorre quando o paradigma compartilhado por membros de uma disciplina ou campo passa a ser reproduzido aleatoriamente, com baixo grau de reflexão e de maturidade. Essa dinâmica pode ainda acontecer propositalmente, através de pesquisas cujo objetivo único é somar quantitativamente ao currículo do pesquisador (um bom exemplo é a publicação de ensaios travestidos de artigos científicos, onde o desbravamento do objeto-análise e o rigor teórico-metodológico são postos em segundo plano). Em último caso, pode ocorrer também ingenuamente, quando, por imaturidade, um estudante reaplica fórmulas empregadas por seu mestre.

Uma vez que o conhecimento avança através da renovação dos saberes, o incentivo às práticas de pesquisa deve ser o dever de todos os docentes. Mesmo estudantes de graduação, que se encontram em fase de formação, devem ser incentivados ao registro de suas investigações. Emblemático para exemplificar a importância do registro científico, o filósofo e matemático ateniense Platão figura como responsável por registrar e organizar as primeiras ocorrências da humanidade, através de descrições, explicações e predizeres sobre os fatos. Posteriormente, as dinâmicas que provocaram tais incidências foram mais facilmente previstas, a parir da cronologia como modo de antecipar outra realidade. Ainda que as contribuições de seu mestre Sócrates sobre justiça, amor e virtude (sendo esta última entendida como sinônimo de conhecimento e algo que pode ser ensinado) tenham sido inovadoras, tal pioneirismo partiu de Platão. Em seus relatos, que acabaram por servir de alicerce para as filosofias natural e ocidental, é constante a presença de Sócrates ensinando filosofia voluntariamente à população de Atenas. Parte de Platão, ainda, a fundação da Academia de Atenas, instituição de educação superior do mundo ocidental. Um primeiro caso de institucionalização do conhecimento que se tem notícia e que passa a efervescer o conhecimento adquirido, ora registrado, passível de ser avaliado e validado por gerações futuras.

Aos estudantes, a ciência pode ser explicada como a abstração dos conhecimentos empíricos, aplicáveis a estruturas dinâmicas e universais. Não obstante, a atualização de conceitos clássicos se constitui na mais elevada contribuição para a gestão do trabalho científico. Não se trate de mera renovação de conteúdos ou replicação de metodologias, mas do implemento de uma racionalidade que possibilite aos estudantes apreender e compreender sua existência, de modo que se tornem, a partir dessa integração, agentes interventores em seu espaço. O desafio posto aos docentes é de formar indivíduos capazes de compreender e lidar com imprevistos e mudanças, sabendo enfrentar com maturidade os problemas fundamentais de seu tempo.

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