Edição 348 | 25 Outubro 2010

A literatura jesuítica sobre o Brasil do século XVI

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Patricia Fachin e Márcia Junges

Deslumbramento e horror – esses são os dois polos entre os quais oscilam as narrativas dos padres da Companhia de Jesus sobre a grandeza e incognoscibilidade da natureza brasileira, analisa Alessandro Zir. Cartas dos jesuítas revelam o “caráter dispendioso do processo de colonização”

“Depois de narrar a tempestade, Anchieta imediatamente refere-se à tranquilidade dos índios em vista dela. Ele explica essa tranquilidade ironicamente, apontando para a crença de um feiticeiro indígena segundo o qual a tempestade teria sido causada pelo espírito invocado por ele (o feiticeiro) a fim de punir um cachorro que o teria mordido”. A afirmação é do jornalista e filósofo Alessandro Zir, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, adiantando aspectos que irá debater no minicurso Animais peçonhentos, tempestades e curupiras: questões de ordem ontológica na literatura jesuítica sobre o Brasil no século XVI, dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU: A experiência missioneira: território, cultura e identidade. Segundo Zir, “as impressões dos jesuítas sobre o Brasil do século XVI oscilam entre um certo deslumbramento diante de uma natureza exuberante, que seria como que uma manifestação da grandeza e beleza em última instância incognoscível de Deus, e o profundo horror que lhes inspira essa mesma exuberância quando ela também inevitavelmente se manifesta como um excesso fundamental que desafia e degringola a ordem divina, através de fenômenos como as tempestades e os rituais de canibalismo dos indígenas.”

Graduado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde cursou mestrado em Psicologia Social e Institucional. É doutor em Interdisciplinaridade pela Universidade Dalhousie, no Canadá, com a tese The Sixteenth-Century Corpus of the Portuguese Colonizers about Brazil: an Approach in Terms of Styles of Thinking.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a referência de Heidegger para pensar a literatura jesuítica sobre o Brasil no século XVI?

Alessandro Zir - Em primeiro lugar, gostaria de dizer que estou longe de ser um especialista em Heidegger  ou algo parecido. Mas Heidegger, no século XX, é talvez o pensador que melhor soube recolocar certos questionamentos da tradição filosófica que permanecem um desafio para qualquer teórico das chamadas ciências humanas, e inclusive para a própria filosofia acadêmica. Sabe-se da influência fundamental de Heidegger sobre autores como Foucault , Deleuze  e especialmente Derrida . O entendimento que esses autores franceses têm de Nietzsche, por exemplo, vem plasmado pelas reflexões heideggerianas sobre a história da filosofia. Essas reflexões extrapolam em muito o âmbito da filosofia acadêmica e tocam no cerne de questões que perpassam a nossa história, dizendo respeito àquilo que é prévio à nossa própria constituição enquanto sujeitos e às nossas relações com outras pessoas e coisas no mundo. Quando eu falo de literatura, por outro lado, e seja ela jesuítica ou outra, eu penso justamente nesse movimento que não apenas perpassa, mas faz perpassar, correr e deslizar (glisser) a própria história aos seus limites, arruinando-a. A referência aqui é Blanchot , outro autor que deve permanecer, por um tempo indefinido, uma pedra no sapato dos acadêmicos das ciências humanas e dos profissionais do mundo das letras. No que ela tem de mais difícil e arrojada, a reflexão de Blanchot sobre a literatura deve muito a autores como Heidegger e Hegel .

IHU On-Line - Quais as impressões dos jesuítas sobre o Brasil do século XVI? Que relatos são mais impressionantes nas obras literárias desse período?

Alessandro Zir - Para mim, as impressões dos jesuítas sobre o Brasil do século XVI oscilam entre um certo deslumbramento diante de uma natureza exuberante, que seria como que uma manifestação da grandeza e beleza em última instância incognoscível de Deus, e o profundo horror que lhes inspira essa mesma exuberância quando ela também inevitavelmente se manifesta como um excesso fundamental que desafia e degringola a ordem divina, através de fenômenos como as tempestades e os rituais de canibalismo dos indígenas. O que permanece determinante em ambos os casos é uma recusa em tomar a realidade por aquilo que é visível e pode se fazer inteiramente presente. Historiadores como Laura de Mello e Souza  (O diabo e a terra de Santa Cruz – feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986) estão corretos quando acusam os jesuítas de uma incapacidade de tomar as coisas que eles veem por aquilo que elas efetivamente são, e de reconhecer um Brasil que é aquele que mais imediatamente (ainda hoje) nos toca. Mas esses historiadores estão errados quando tomam essa incapacidade por um descaso. A meu ver, ela denota, muito pelo contrário, um grande interesse dos jesuítas pelo Brasil e está na raiz dos mais eloquentes relatos que podemos encontrar nessa literatura: aqueles, por exemplo, sobre as endemias inerentes ao processo civilizatório.

IHU On-Line - O que as cartas de diversos jesuítas, como a do padre Luís da Grã, revelam sobre a relação entre índios e padres?

Alessandro Zir - Revelam, antes de qualquer coisa, que tais relações nunca eram de mão única, e dificilmente podem ser explicadas por teorias que entendam os processos de troca (de bem materiais ou simbólicos) apenas em termos de uma otimização entre meios e fins, quer dizer, em termos do que tradicionalmente se entende por economia. As cartas dos jesuítas, que começam a ser escritas em meados do século XVI, vão, ao longo de um período de cerca de 50 anos, mais do que revelar, desbaratar o caráter cada vez mais dispendioso do processo de colonização, de um projeto de civilização que demanda um investimento visceral e sem caução possível por parte daqueles que nele seriamente se engajam: os jesuítas e muitos dos índios. Aqui não é possível fazer nenhum cálculo do que se ganhou e do que se perdeu. Não há como fazer avaliação. As cartas são ruínas, mas de uma comunidade que nunca existiu. Ao mesmo tempo são cifras instáveis de um cálculo que nunca poderá deixar de ser feito e refeito por qualquer comunidade por vir. Quer dizer, por qualquer comunidade que, hoje e no futuro, consiga emergir do rastro dessa história, no espaço concreto que ela instituiu.

IHU On-Line - Qual é a especificidade de animais peçonhentos, tempestades e curupiras como diferenças que afetam a forma de ser desses e de outros entes?

Alessandro Zir - O texto da minha comunicação para o simpósio é todo ele uma tentativa de resposta a essa questão; eu não teria como responder aqui de uma forma mais objetiva e resumida. Tenho, portanto, de nos remeter a ele.

IHU On-Line - Que peculiaridades José de Anchieta narra ao escrever uma carta sobre os animais peçonhentos do Brasil?

Alessandro Zir - Bem, a referência que faço em minha comunicação é à carta escrita por Anchieta  em 31 de maio de 1560, de São Vicente-SP, um dos primeiros assentamentos dos portugueses na América. Essa carta se destaca de todas as outras escritas pelos jesuítas por focar-se explicitamente em descrições de elementos da natureza brasileira, que são o tema dessa carta do início ao fim, mais do que a relação com os índios ou as dificuldades cotidianas que os jesuítas enfrentam ao levar a cabo o projeto missionário. A carta começa com comentários mais gerais sobre o clima, e se move rapidamente para a narração de uma tempestade, apresentada como um acontecimento extraordinário, assustador, que seria como que a manifestação de uma potência no limite do natural (preternatural) que ameaça colonizadores e indígenas. Depois de narrar a tempestade, Anchieta imediatamente refere-se à tranquilidade dos índios em vista dela. Ele explica essa tranquilidade ironicamente, apontando para a crença de um feiticeiro indígena segundo o qual a tempestade teria sido causada pelo espírito invocado por ele (o feiticeiro) a fim de punir um cachorro que o teria mordido.

É claro que a ironia de Anchieta é dirigida ao que ele percebe como um elemento de futilidade gritante que vicia a explicação do feiticeiro. Mas essa ironia não visa subverter o tipo de explicação avançada pelo feiticeiro enquanto tal. Anchieta também explica a tempestade como uma manifestação de uma potência que extrapola o natural. Essa é a razão, aliás, pela qual ele discorre longamente sobre essa tempestade, elaborando-a através de um episódio narrativo singular que a destaca dos outros fenômenos climáticos descritos na carta até então. Essa carta é longa, e há uma série de elementos que precisariam ser analisados aqui, mas esse trecho que citei como exemplo é suficiente para ilustrar o que eu considero como um dos grandes focos da literatura jesuítica em geral, e inclusive dessa carta de Anchieta, em particular, dedicada à descrição de fenômenos da natureza brasileira, entre eles tempestades e animais peçonhentos: o cuidado com aquilo que extrapola o que pode ser simplesmente dado no universo natural, uma atenção à natureza não como fenômeno presente e efetivo, mas como força criativa, deslocada, e de uma riqueza intrinsecamente instável.

IHU On-Line - O que lhe motivou a estudar os animais peçonhentos descritos na literatura jesuítica?

Alessandro Zir - O meu interesse por esse tipo de descrição decorre do meu interesse por aquilo que, na literatura jesuítica, é eminentemente literário (sem deixar de ser real) e pode ser caracterizado nos termos que utilizei no final da minha resposta à sua questão anterior. Quando fui fazer o meu doutorado, eu estava interessado em estudar concepções sobre a natureza típicas do início do período moderno. O que se escreve nesse período sobre o mundo natural tem peculiaridades que nos soam muito estranhas, as quais são resumidas nos capítulos iniciais de Les mots et les choses  de Michel Foucault . O livro de Foucault segue sendo até hoje tanto elogiado quanto difamado. Uma das críticas, até certo ponto pertinente, diz respeito ao fato de Foucault trabalhar nesse livro com diferentes períodos históricos como se fossem blocos epistêmicos tão artificialmente delimitados como impermeáveis entre si. Como resposta a essa crítica, em defesa do autor do livro, pode-se citar, entre outras coisas, a hipótese de Foucault, que não é uma hipótese exclusiva dele, de que a forma como os autores do início do período moderno escrevem, a maneira como eles experimentam a linguagem, está numa relação fundamental com aquilo que vem a se tornar a literatura depois dos simbolistas franceses. O exemplo que sempre se cita é Paracelsus , mas existem inúmeros outros autores mais ou menos obscuros cuja leitura atual tem implicações que vão além de um interesse meramente historiográfico e de reverência ao passado. Veja o caso dos escritos de Boyle  sobre demonologia, ou mesmo dos escritos de Newton  sobre alquimia e teologia. No corpus dos portugueses sobre o Brasil, além dos jesuítas, há outros autores, como Pero de Magalhães Gandavo , cujas obras não se têm como catalogar em termos de ciência, história ou literatura. Eu tinha a facilidade da língua para trabalhar com os portugueses, e foi talvez por uma grande ingenuidade minha que, ao constatar uma certa repercussão do meu trabalho fora do Brasil, me surpreendi com o grande interesse que a literatura em língua portuguesa desperta em círculos acadêmicos fora daqui.

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