Edição 348 | 25 Outubro 2010

Reduções jesuíticas: um projeto político e evangelizador

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Patrícia Fachin

Segundo Adone Agnolin, os inacianos se tornaram instrumentos da política de desenvolvimento da Colônia, servindo aos interesses da Coroa Portuguesa

Na ideologia imperial da Espanha e de Portugal, a “missão religiosa não se distinguia daquela política (...). Essas duas perspectivas ofereceram-se, conjuntamente enquanto fundamento do projeto de monarquia universal”, menciona Adone Agnolin, em entrevista à IHU On-Line, por e-mail. Segundo ele, o “‘encontro catequético’ que se realiza, no século XVI, junto às comunidades indígenas mostra como, além de prepará-lo, realiza no encontro a abertura de uma série de convergências de horizontes simbólicos que se produzem enquanto construções históricas decorrentes do impacto colonial”.
Na entrevista que segue, Agnolin ressalta que o objetivo evangelizador se constituiu, também, “enquanto base de um projeto propriamente colonial (...) e se tornou fundamento de um entusiástico projeto missionário que via no bom selvagem a imagem de uma inocência que apontava para a possibilidade de fecundar sua alma virgem”. Na base do processo de catequização, observa, “impunha-se o trabalho enquanto instrumento de civilização”. Nesse sentido, avalia, “o processo (civilizador, antes que missionário) de redução manifesta, portanto, o domínio político enquanto policiamento endereçado a modificar os (excessos dos) costumes indígenas: processo de ‘mediação concreta’, sucessiva e, depois, paralela e complementar à linguagem religiosa enquanto área privilegiada da ‘mediação simbólica’ entre diferentes culturas”.
Adone Agnolin participará do XII Simpósio Internacional IhU – A experiência missioneira: território, cultura e identidade, com a conferência Adaptação dos catecismos à realidade missional, na manhã do dia 28-10-2010, às 9h, no Auditório Central.

Agnolin é graduado em Filosofia pela Università degli Studi di Padova, Itália, onde realizou, também, especialização em História das Religiões. É doutor em Sociologia e pós-doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. Desde 2003 é professor em História Moderna na Universidade de São Paulo e, atualmente, integra o Projeto Temático “Dimensões do Império Português”, junto ao Departamento de História: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Cátedra “Jaime Cortesão”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se deu a atuação missioneira junto aos indígenas nos séculos XVI e XVII, no âmbito do Império português?

Adone Agnolin - Esta pergunta inicial resulta bastante ampla pela complexidade dos problemas que envolve: problemas políticos, religiosos, culturais. Ao mesmo tempo, todavia, na sua generalidade, ela nos permite delimitar devidamente a perspectiva a partir da qual, em nosso estudo, enfrentamos a questão. Nos termos da “política religiosa” da época, preocupada em incentivar, mas também em controlar, o processo de expansão das monarquias ibéricas, a atuação missionária no âmbito do Império português se desenvolvia sob a égide da instituição do Padroado que, de fato, devia realizar a unidade da dimensão político-administrativa com aquela religiosa. Mas, evidentemente, a distância atlântica das colônias portuguesas, a complexidade de situações nas novas terras americanas (bem diferenciada, inclusive, ao longo dos dois séculos), e, enfim, os diferentes âmbitos da ação missionária – da realidade dos colégios nas sés metropolitanas à atuação junto às populações portuguesas locais ou, no contexto propriamente indígena, àquela junto às reduções (decorrentes dos “descimentos” indígenas) ou às missões itinerantes – acabaram condicionando profunda e diferentemente esta atuação de um sonho imperial. Na diversidade desses contextos e ao longo do período histórico em questão, portanto, esta atuação missionária encontra bem diferentes soluções históricas e estruturais: de um lado, geralmente, orientadas pelas estruturas do Império português e da Igreja romana, mas, sobretudo, mais proximamente à realidade local indígena, historicamente condicionada pelas concretas experiências catequéticas missionárias e pelas “respostas”, nem sempre concretamente imagináveis, que essas encontravam no mundo indígena relido em termos de um novo “catecumenato”.

IHU On-Line - O senhor diz que desde os primórdios de sua constituição, o cristianismo determinou um nexo íntimo entre as coisas da fé e a vida política. Como, a partir desse pensamento, outras culturas foram ajustadas? Como se dá, a partir disso, a relação entre fé e política para as culturas ocidentais?

Adone Agnolin - Para responder a essa pergunta, precisamos ficar atentos ao fato (histórico) do “fideísmo ” cristão que tem marcado toda a cultura ocidental. É somente verificando a contingência histórica e a necessidade teórica que tornaram fundamental para o cristianismo a profissão de fé que podemos entender, também, a ideologia imperial ibérica. E isto porque o Império remete ao modelo romano, no interior do qual, com o afirmar-se do cristianismo, o ato de fé numa realidade ultramundana vinha se propondo enquanto superação do condicionamento mundano da nacionalidade ou, genericamente, do nascimento. Nesta direção, o cristianismo se propunha enquanto uma outra modalidade do Império que, em termos cristãos, superava a dimensão étnica, não tanto em termos civis (de uma civitas romana), mas em termos transcendentes (uma civitas Dei) – que nós identificamos enquanto dimensão religiosa. Para o novo cristão, a superação de sua dimensão étnica era obtida através de um (simples) ato de fé no Reino dos Céus que, além disso, em vida, podia ser somente esperado e não experimentado. No entanto, de experimentável havia o Império romano, isto é, o único modelo histórico da realidade meta-histórica, defrontada pelos cristãos em chave de universalidade: por meio dele superava-se o condicionamento étnico através da distribuição da civitas Romana às pessoas de qualquer raça. Com o cristianismo, portanto, tornar-se súdito do Reino dos Céus significava subverter idealmente os reinos terrestres: historicamente, significou subverter o Império romano, o próprio modelo da universalidade; e contra os “subversivos”, súditos do Rei dos Céus, o Império romano procedeu em termos de lei. A subversão tornou-se martírio, testemunha: uma testemunha constituída, também, em termos de lei, tanto que a fé testemunhada tornou-se lei, por sua vez, quando o Império romano se transformou em Império cristão, um império no qual caia-se na ilegalidade se não “se acreditasse” ou não se acreditasse da justa forma. A alternativa do crer tornava-se perigosa e, de qualquer forma, ilegal.
É nessa direção, como bem analisou Anthony Pagden , que a extensão da cristandade continuou, sucessivamente, circunscrita ao território que teria sido ocupado pelo Império romano. Segundo os termos do autor: “O orbis terrarum se converteu, assim, através da variação efetuada por Leão o Grande  no século V, no ‘orbis Christianus’, que por sua vez se transformou de imediato no ‘Imperium Christianum’. Um século depois, Gregório o Grande  o traduziria por a ‘sancta respublica’, uma comunidade dotada da mesma exclusividade simultaneamente aberta que havia caracterizado a ‘respublica totius orbis’ de Cícero ”. Mesmo que, a partir dessa perspectiva e nos termos do direito natural, todos os homens, fossem eles pagãos ou cristãos, tivessem idênticos direitos políticos “os não-cristãos, pagãos, que também eram barbari, deviam ser animados para juntar-se à ‘congregatio fidelium’, da mesma forma em que haviam sido impulsionados os ‘bárbaros’ a integrar-se à civitas romana”.

IHU On-Line - Quais são as bases históricas da ideologia imperial da Espanha e de Portugal que implementam os pressupostos dos projetos evangelizadores?

Adone Agnolin - Aquelas acima apontadas são as bases históricas da ideologia imperial a partir das quais se constituíram os pressupostos fundamentais de um projeto evangelizador como base da ideologia imperial ibérica. É preciso entendê-las no interior desta formação histórica para poder levar em consideração o projeto catequético (evangelizador), implícito nesta ideologia, enquanto elemento de coesão (ideológica) fundamental dos respectivos projetos imperiais. E esta coesão era garantida, fundamentalmente, pela “fé na fé”, segundo a expressão sugerida por Dario Sabbatucci  (conforme a obra de minha autoria Jesuítas e Selvagens: a Negociação da Fé no encontro catequético-ritual americano-tupi - séc. XVI-XVII. São Paulo: Humanitas/FAPESP, 2007, parte III, cap. 1: A Fé como Fato Histórico: entre a “Civitas” do Império e a Catequese Cristã). Lá observávamos como, dessa herança cultural, do Império romano resultou o instituto da Monarchia Universalis. Esta, segundo Anthony Pagden, com o antigo sonho dos imperadores cristãos, “transformou a ambição pagã de civilizar o mundo no objetivo análogo de converter literalmente todos seus habitantes ao cristianismo. O único sistema legal unificador (o koinos nomos) se converteu, dessa forma, num único sistema de crenças. A enorme influência que teve a noção estoica de lei nas reformulações realizadas pelos Padres da Igreja, de Santo Agostinho a São Tomás, assegurou um alto grau de continuidade teórica entre os impérios pagão e cristão e a convicção (...) de que a conversão não podia alcançar-se de forma plena ou adequada sem uma correspondente transformação política e cultural”.

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