Edição 347 | 18 Outubro 2010

Um ocidental modelado pelos chineses

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Nicolas Standaert | Tradução Luís Marcos Sander

O “Outro” chinês teve preponderância na ação do missionário italiano, considera Nicolas Standaert. A identidade de Ricci foi moldada por essa alteridade

“Os chineses fizeram Ricci adaptar-se à situação particular da China. Pode-se também salientar que o refinamento e sofisticação do Outro impôs alguns limites na adaptação dos jesuítas”. A análise é do jesuíta belga Nicolas Standaert, no artigo que publicamos a seguir. Segundo ele, o que se chama de “estratégia missionária jesuíta na China não é apenas o resultado de uma política consciente e bem definida concebida por Valignano e sua elaboração criativa e pró-ativa pelos missionários como Matteo Ricci. Em grande medida, é também o resultado de sua reação ao que a China era e a quem eram os chineses. Em outras palavras, a sua identidade foi também moldada pelo Outro chinês”. E completa: “Se Ricci tornou-se o que ele se tornou, foi também porque o Outro o encorajou ativamente ou passivamente para se tornar assim. Desse modo, a história não só deve ser contada somente a partir da perspectiva do missionário Ricci, mas também do ponto de vista da comunidade receptora, os chineses”.

Nicolas Standaert é professor na Faculdade de Artes da Universidade Católica de Louvain, da Bélgica, onde desde 1993 ensina Sinologia, ciência que trata da história, da língua, da escrita, das instituições e dos costumes chineses. É bacharel e mestre em Estudos Chineses pela University of Leiden, da Holanda. Estudou a história e a filosofia chinesa na Fudan University, de Xangai. Em 1984, obteve o título de Ph.D em Estudos Chineses pela University of Leiden. Graduou-se, ainda, em Filosofia e Teologia no Centre Sèvres, de Paris, em 1990. Em 1994, licenciou-se em Teologia pela Fujen University, de Taipei, na China. Desde 2003, é membro da Academia Royal de Ciências da Bélgica. Os interesses acadêmicos de Standaert são o contato entre a China e a Europa no século XVII, especialmente a forma como os estudantes chineses receberam e reagiram com relação à cultura europeia. É autor de, entre outros, Bibliography of the Jesuit Mission in China (com E. Zürcher e A. Dudink. CNWS Publications Nº 5, Leiden: Centre of Non-Western Studies, 1991).

Confira o artigo.

Quatro Características de Estratégia Missionária Jesuíta na China
Como um ponto de partida, pode-se fazer uma primeira — de preferência tradicional — leitura da vida de Ricci, centrando-se sobre o missionário. A “estratégia missionária jesuíta” na China foi concebida por Alessandro Valignano (1539-1606), que foi o ex-mestre de noviços de Matteo Ricci (1552-1610) e que foi visitador jesuíta para a Ásia Oriental durante o período 1574-1606. Sua estratégia era criativamente posta em prática por Matteo Ricci. Gerações posteriores, até o século XVIII, associaram essa estratégia com Ricci e chamaram-na “método Ricci”. Ela pode ser descrita por quatro características principais :
1) Uma política de acomodação ou adaptação à cultura chinesa.  Valignano, que tinha ficado desapontado com o grau limitado de adaptação dos jesuítas à cultura japonesa, insistiu em primeiro lugar, no conhecimento da língua chinesa. Por isso ele chamou alguns jesuítas a Macau em 1579, ordenando-lhes que centrassem a sua atenção inteiramente no estudo da linguagem (colegas jesuítas criticavam-lhes por gastar todo o seu tempo a estudar chinês). Dois anos mais tarde, Michele Ruggieri (1543-1607) entrou na China através do sul, e Matteo Ricci seguiu um ano mais tarde. Provavelmente inspirado pela situação japonesa, vestiam-se como monges budistas. Em 1595, após quase 15 anos de experiência, eles mudaram essa política e adaptaram-se ao estilo de vida e etiqueta da elite de letrados confucionistas e funcionários. Ricci foi o responsável por essa mudança. Essa nova política permaneceu inalterada durante todo o século XVII e, para a maioria dos missionários jesuítas, Matteo Ricci tornou-se o ponto de referência no que diz respeito à política de adaptação.
2) Propagação e evangelização “de cima para baixo”. Os jesuítas dirigiram-se para a elite letrada. A ideia subjacente era que, se essa elite, de preferência o Imperador e sua corte, fosse convertida, o país inteiro seria ganho para o cristianismo. A elite era composta principalmente de letrados que despenderam muitos anos da sua vida preparando-se para os exames em que eles precisavam ser aprovados para tornarem-se funcionários. Foi para esses exames que tiveram de aprender os clássicos confucionistas e os comentários. Depois de ter sido aprovado no exame Metropolitano, que acontecia em Pequim a cada três anos e nos quais cerca de três centenas de candidatos eram selecionadas, eles entravam na burocracia oficial e recebiam nomeações como magistrados do distrito ou posições nos ministérios. Tal como no serviço diplomático moderno, os escritórios normalmente eram trocados a cada três anos. Para entrar em contato com essa elite, Ricci estudou os clássicos de Confúcio e, com seu notável dom de memória, tornou-se um hóspede bem-vindo ao grupo de discussão filosófica que fora organizado por essa elite.

3) A propagação indireta da fé, usando a ciência e tecnologia europeias para atrair a atenção dos chineses educados, e convencê-los do alto nível da civilização europeia. Ricci ofereceu um relógio europeu para o Imperador; ele apresentou pinturas que impressionaram os chineses pelo uso da perspectiva; traduziu escritos matemáticos de Euclides com os comentários do famoso matemático jesuíta Christophorus Clavius (1538-1612); e imprimiu um enorme mapa global que integrava os resultados mais recentes das explorações do mundo. Com essas atividades, Ricci estabeleceu relações de amizade que, por vezes, resultavam na conversão de membros da elite: Xu Guangqi (1562-1633; batizado como Paulo, em 1603) e Li Zhizao (1565-1630; batizado como Leo, em 1610) são os mais famosos do tempo de Ricci.
4) Abertura para os valores chineses e sua tolerância. Na China, Matteo Ricci encontrou uma sociedade com valores morais elevados, sobre a qual ele expressou sua admiração. Educado na melhor tradição humanística jesuítica, ele comparou favoravelmente Confúcio (552-479 a. C.), com “outro Sêneca” e os confucionistas com “uma seita epicurista, não no nome, mas nas suas leis e pareceres”.  Ricci era da opinião que essa excelente doutrina ética e social do confucionismo devia ser complementada com as ideias metafísicas do cristianismo. No entanto, ele rejeitou o budismo, o taoísmo, e o neoconfucionismo, que, a seus olhos, foram corrompidos pelo budismo. Ricci defendeu um regresso ao confucionismo original, que ele considerava ser uma filosofia baseada no direito natural. Em sua opinião, continha a ideia de Deus. Finalmente, ele adotou uma atitude tolerante para certos ritos confucianos, como o culto aos ancestrais e a veneração de Confúcio, os quais logo foram rotulados como “ritos civis”.

Questões metodológicas
Existem várias razões pelas quais essas quatro características podem muito bem serem identificadas como típicas de Ricci e de seus companheiros jesuítas, num sentido mais amplo. Primeiro de tudo, pode-se facilmente encontrar uma justificativa para elas nos documentos oficiais dos jesuítas de inspiração inaciana, especialmente as Constituições da Companhia de Jesus e os Exercícios Espirituais, de Inácio, os quais, muitas vezes, insistem em adaptação. Em segundo lugar, podem-se contrastar essas políticas com as adotadas pelos franciscanos e dominicanos contemporâneos. Essas ordens parecem menos adaptáveis, menos orientadas para a elite, menos envolvidas com as ciências e, por último, menos tolerantes com as tradições rituais locais. Finalmente, em publicações sobre os jesuítas na China, nos tempos modernos, tanto pelos jesuítas quanto pelos não jesuítas, esses elementos são, de uma forma ou de outra, apresentados como “tipicamente Ricci” ou como “tipicamente dos jesuítas”.
Existem também várias razões pelas quais essas características, como estratégia, podem ser questionadas. Primeiro, pode ser questionada se é uma estratégia “jesuíta”. Aqui, a comparação com a missão no Japão é bastante determinante. Os primeiros 30 anos da missão jesuíta no Japão mostram uma imagem completamente diferente; desde antes da chegada de Valignano, a política de adaptação era muito restrita. Assim, a estratégia real foi determinada, em grande medida, pela inspiração de um indivíduo, tal como Valignano, ao invés de uma formação ou educação jesuíta comum. Um segundo problema com a “estratégia” é que ela parecia referir-se a um conjunto pré-determinado e bem pensado que foi executado de forma consistente ao longo do tempo. No entanto, alguns estudiosos têm argumentado convincentemente que o próprio Ricci “não tinha formado uma opinião precisa sobre o problema da evangelização na China e que o seu julgamento sobre os meios e métodos a adotar, para converter os chineses variou no decorrer dos anos que ele dedicou a esta tarefa.”  Assim, a rotulagem sistemática de qualquer ação como a divulgação de um “método de Ricci” é, provavelmente, uma superestimação.

Interação com o Outro
Deste modo, enquanto essas quatro características da estratégia jesuítica na China não são certamente inválidas, elas possivelmente apresentam apenas um lado da história. A principal objeção metodológica que pode ser levantada é que a identidade não é formada somente mediante o esforço isolado do self, mas é formada por meio da interação constante com o Outro. Isso é verdade para os indivíduos, mas também para grupos. Portanto, o que chamamos de estratégia missionária jesuíta na China não é apenas o resultado de uma política consciente e bem definida concebida por Valignano e sua elaboração criativa e pró-ativa pelos missionários como Matteo Ricci. Em grande medida, é também o resultado de sua reação ao que a China era e a quem eram os chineses. Em outras palavras, a sua identidade foi também moldada pelo Outro chinês. Se Ricci tornou-se o que ele se tornou, foi também porque o Outro o encorajou ativamente ou passivamente para se tornar assim. Desse modo, a história não só deve ser contada somente a partir da perspectiva do missionário (Ricci), mas também do ponto de vista da comunidade receptora (os chineses). Por isso, irei rever as quatro diferentes características e tentarei demonstrar como o Outro participou no esboço do modelo. Trarei para o quadro os resultados de pesquisas recentes sobre o cristianismo no final da dinastia Ming na China. Esses resultados têm sido frequentemente obtidos concentrando-se sobre o ponto de vista do Outro e tomando os textos chineses como fonte primária para a pesquisa.

Moldado pelo Outro
1) Adaptação para a cultura chinesa. O exemplo mais óbvio de interferência do Outro, no campo do ajustamento, é a mudança de uma política de adaptação ao budismo para uma política de adaptação ao confucionismo (e, posteriormente, a rejeição do budismo). O Outro já estava presente na decisão original de adotar a veste budista, uma vez que fora o governador de Guangdong quem tanto insistiu que essa era a maneira como os missionários deveriam vestir-se, quanto aprovou a proposta de Michele Ruggieri fazê-lo.  A adaptação para o estilo de vida budista não era sem vantagens. Permitiu que os jesuítas fizessem contato com a maioria da população chinesa com mais facilidade, e permitiu-lhes concentrar a conversa diretamente sobre assuntos religiosos. Mas também havia desvantagens. A partir de uma perspectiva confucionista, o budismo e o cristianismo compartilhavam muitos elementos religiosos e eram muito semelhantes entre si. Ambos podiam ser classificados como religiões institucionais com um sistema de teologia, rituais e organização próprios, independentes das chamadas instituições seculares. O confucionismo, por outro lado, assemelha-se a uma religião difundida. Sua teologia, seus rituais e sua organização eram intrinsecamente ligados aos conceitos e estruturas das instituições seculares e da ordem social secular.  Além disso, o cristianismo compartilhava com o budismo elementos como a crença na vida após a morte, a ideia de céu e inferno, a prática do celibato etc., que eram muito não confucionistas. Desde Della entrata de Ricci e posteriores trabalhos apologéticos, pode-se observar que, precisamente essa semelhança ao Outro (os budistas) forçou os jesuítas a dissociar-se do Outro e a enfatizarem as suas diferenças. A primeira (inconsciente) razão para essa mudança foi que, no contexto religioso chinês, havia muita competição entre o budismo e o cristianismo. Os jesuítas foram, de fato, sujeitados ao fenômeno da “diferença inflada”, ou seja, o fenômeno em que o grupo médio (minoritário), pressionado para consolidar a sua própria identidade, é passível de desidentificar-se com os outros e chamar a atenção para as diferenças insignificantes entre aqueles que estão dentro e aqueles que estão fora dos seus limites.  A única maneira de dissociar-se dos monges budistas (que eram considerados muito baixos na escala social) foi voltar-se para o confucionismo. Na verdade, foi o Outro representado por letrados confucianos como Qu Taisu (Qu Rukui) (1549-?) quem encorajou Ricci a instituir essa mudança. 
Aqui deve ser mencionado um segundo elemento importante em que o Outro determina o self. Foi rotulado como “imperativo cultural” por Erik Zürcher, e pertence à estrutura profunda da vida religiosa chinesa no final da China Imperial.  Nenhuma religião marginal que penetrasse do exterior poderia esperar enraizar-se na China (pelo menos em um nível social alto), a menos que se conformasse em um padrão que, nos últimos tempos imperiais, era mais claramente definido do que nunca. O confucionismo representava o que é zheng (“ortodoxo”) em um sentido religioso, ritual, social e político. Para não ser rotulado como xie (“heterodoxo”) e ser tratado como uma seita subversiva, uma religião marginal tinha de provar que estava do lado do zheng. A autoridade, a massa absoluta e o poder aliciante do confucionismo era tal que qualquer sistema religioso de fora era preso em seu campo, e era obrigado a gravitar em torno daquele centro. Em outras palavras, quando Ricci começou a aplicar o seu método de adaptação, ele provavelmente não percebeu o peso completo desse imperativo cultural. Ele deve apenas, gradualmente, com uma rara combinação de inteligência, intuição, e um conhecimento crescente da situação da China, ter percebido que a adaptação ao imperativo do confucionismo era o único caminho viável. Como resultado, o cristianismo na China do décimo sétimo século mostra todas as características que eram típicas das respostas das religiões marginais como o budismo, o judaísmo ou o islamismo para o imperativo cultural: (1) ênfase na congruência e compatibilidade total entre a religião das minorias e confucionismo; (2) a noção de complementaridade; o credo estrangeiro servindo para enriquecer e cumprir a doutrina de Confúcio; (3) a tendência para fundamentar a existência da doutrina estrangeira sobre precedente histórico, chegando, por vezes, a voltar para o início da civilização chinesa; (4) a adoção de costumes e rituais chineses.

Esses dois elementos, a diferença inflada e o imperativo cultural, mostram a forte influência do Outro na estratégia de adaptação de Ricci. Os chineses fizeram Ricci adaptar-se à situação particular da China. Pode-se também salientar que o refinamento e sofisticação do Outro impôs alguns limites na adaptação dos jesuítas. É de fato notável que os jesuítas, aparentemente, não foram capazes de adaptar-se a certos aspectos da cultura chinesa, porque esses aspectos eram muito difíceis de dominar ou eram muito diferentes da cultura europeia. Isso diz respeito a aspectos de sua cultura corporativa jesuíta na Europa e em muitas partes do mundo que não foram postas em prática na China. O exemplo mais claro é o da escola e do ensino. Apesar de sua esperança em substituir o assunto-tema dos exames chineses pela filosofia aristotélica, os jesuítas nunca foram capazes de influenciar o bem estabelecido sistema educacional chinês. Havia ainda outros aspectos que não pertencem a sua cultura corporativa, mas que também eram muito sofisticados para aprender ou para adotar.

No campo das artes, normalmente cita-se uma adaptação bem sucedida dos pintores jesuítas, como Giuseppe Castiglione (1688-1766), mas não há praticamente qualquer aprovação ou interesse na caligrafia chinesa. No entanto, cada membro da elite educada da China passou longas horas, quando eles eram jovens, aprendendo caligrafia, e muito poucos continuaram a praticá-la todos os dias de suas vidas. Embora os esforços dos jesuítas fossem dirigidos a essa elite, em seus escritos abundantes não há qualquer indicação de que os jesuítas apreciavam a dimensão estética da caligrafia e do papel fundamental que ela desempenhava na cultura chinesa.  No campo dos costumes chineses, Ricci e seus companheiros jesuítas acharam impossível deixar suas unhas crescerem muito, como era costume entre os letrados chineses.  Esses são exemplos negativos da influência que mostram claramente como a cultura chinesa impôs limites à adaptação.

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