Edição 344 | 21 Setembro 2010

Agenciamentos imunitários e biopolíticos do direito à saúde

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges e Graziela Wolfart

Para José Roque Junges, a consciência da universalidade do direito à saúde e a insuficiência dos recursos para aceder a determinados meios, tidos como necessários para a cura, estão na origem da judicialização da saúde

“Para Foucault, a Modernidade significou o surgimento da gestão e normatização da vida e da saúde das pessoas pelo Estado. Essa é a origem da medicina social ou da saúde pública pela qual o Estado normatizou os corpos dos indivíduos e a saúde das populações a serviço do bom funcionamento do capitalismo, que necessitava de força de trabalho sadia e controlada. Essa gestão da saúde e da vida introduziu um controle biopolítico configurado num biopoder”. A reflexão é do professor no PPG em Saúde Coletiva da Unisinos, José Roque Junges. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele aborda o tema que tratou no minicurso Agenciamentos biopolíticos e direito à saúde, dentro da programação do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, realizado na semana passada. Roque explica que “hoje são as grandes corporações industriais e financeiras que não só produzem mercadorias, mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico, produzindo necessidades, relações sociais, corpos e mentes ou, em outras palavras, produzem produtores do sistema”.

Junges possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália. Tem experiência na área de Teologia, Filosofia e Ética, com ênfase em Bioética. Entre seus livros publicados citamos Bioética: perspectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999); Ecologia e Criação: resposta cristã à crise ambiental (São Paulo: Loyola 2001); Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004); Bioética: Hermenêutica e Casuística (São Paulo: Loyola, 2006).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais são os aspectos que refletem mais evidentemente a judicialização da saúde?

José Roque Junges -
Quando a maioria dos países, movidos pela onda neoliberal, desmontava os sistemas públicos de saúde, o Brasil optou, na Constituição cidadã de 1988, por um sistema público e universal, consagrando a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Essa foi a base para a constituição do Sistema Único de Saúde – SUS  que assegurou a todos, independente da contribuição previdenciária que imperava até esse momento, o acesso a serviços, procedimentos e tecnologias necessários para responder aos agravos da doença e às necessidades de saúde. Os princípios do Sistema Único de Saúde são: a universalidade e equidade no acesso, a integralidade das ações, a descentralização dos serviços, a relevância pública das ações e dos serviços e a participação da comunidade, enquanto efetivação do direito à prestação de bens e serviços que concretizam a saúde como um direito de todos e um dever do Estado.


Descentralização do atendimento

Uma das mudanças fundamentais foi a descentralização e a municipalização do atendimento, aproximando o usuário dos serviços de saúde. Leis complementares definem o orçamento e asseguram os repasses de verbas da saúde para os municípios. Mas o montante dos recursos destinados à saúde não corresponde às exigências da lei e, por outro lado, está muito aquém das necessidades. A consciência da universalidade do direito à saúde e a insuficiência dos recursos para aceder a determinados meios, tidos como necessários para a cura, estão na origem da judicialização da saúde. Já que não se consegue os meios pela via normal, recorre-se à via jurídica para ter acesso a eles por mandato judicial. O juiz, diante da solicitação, referendada pelo médico do paciente, só pode dar ganho de causa, fundado na interpretação do conteúdo do direito à saúde e porque ele não tem condições de avaliar a necessidade, já que precisa pautar-se pela avaliação do médico. O que parece algo justo e de acordo com as exigências do direito à saúde não é tão simples, porque muitas vezes o médico solicita por via judicial principalmente medicamentos que ainda estão em experimentação ou para os quais existe remédio semelhante no Brasil. Geralmente são medicamentos importados e muito caros que o Estado é obrigado a fornecer por via judicial e, para responder a essa exigência jurídica de importação, terá que desembolsar recursos que serão retirados de outra área, muita vezes da atenção primária. Respondendo a esse problema, atualmente os juízes só incluem no mandato judicial medicamentos que constam da lista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. O Rio Grande do Sul é o estado com maior desembolso de recurso para a saúde por via judicial. Isso pode significar que o Estado não cumpre com seus compromissos e, por outro lado, existe maior consciência cívica dos direitos.


O que significa saúde

A discussão sobre a judicialização da saúde precisa explicitar em que consiste verdadeiramente o direito à saúde, ou, melhor ainda, o que significa saúde. O movimento sanitarista brasileiro, que foi o responsável pela introdução do direito à saúde na Constituição de 1988 e pela consequente criação do SUS, colocava o acento nos determinantes ambientais e sociais da saúde. Essa compreensão englobava emprego e salário justo, saneamento, boa alimentação, ambiente sadio, acesso aos bens culturais e ao lazer. Em última análise, identificava-se com qualidade de vida. A Declaração da Conferência, organizada pela Organização Mundial da Saúde - OMS em 1978 em Alma-Ata (Casaquistão) e que inspirou os sanitaristas brasileiros, considera a saúde como qualidade de vida. A qualidade de vida é uma noção pluridimensional, envolvendo tanto aspectos individuais – como meios para usufruir de uma vida agradável e feliz – quanto coletivos – como usufruir não só de bens econômicos, mas políticos, culturais e demográficos. Essa dupla dimensão da qualidade de vida aparece quando se tem presente a interdependência do direito à saúde com os direitos explicitados pelos dois pactos internacionais, uns de cunho mais individual identificados com os direitos políticos e civis e os outros com os direitos econômicos, sociais e culturais de cunho mais coletivo. Tendo presente a interdependência e a indivisibilidade dos diferentes direitos, não se pode separá-los e muito menos opô-los em sua eficácia e efetividade, porque eles se exigem mutuamente, estando numa continuidade de lógica jurídica. Essa continuidade aparece quando se leva em consideração a dupla perspectiva jurídica presente nos dois tipos de direitos. Existem direitos de defesa, limitando o poder estatal, tutelando a liberdade dos indivíduos e impondo ao Estado uma obrigação de abstenção. Por outro lado, temos direitos de prestação, que obrigam o Estado à prestação de bens e serviços que, à primeira vista, parecem identificar-se apenas com os direitos sociais, mas engloba a criação de normas e de instituições coletivas que possibilitem a efetivação dos direitos tanto sociais quanto civis.


O direito à saúde: dimensão de defesa e de prestação

O direito à defesa está mais enfocado no indivíduo em sua liberdade, enquanto o de prestação, mais na exigência da construção de instrumentos no coletivo como condição para a efetivação dos direitos. Assim, por sua inter-relação com os outros direitos, pode-se dizer que o direito à saúde tem também uma dimensão de defesa e de prestação. A saúde como qualidade de vida identifica-se, antes de mais nada, com a autonomia de decisão na sua busca, direito a ser garantido contra a interferência do Estado. Porém, por outro lado, compreende a prestação por parte do Estado de bens e serviços de cunho coletivo que oferecem as condições e os meios para a efetivação da qualidade de vida. Portanto, o direito à saúde precisa conjugar a proteção da autonomia individual e a prestação coletiva de meios para efetivação desse direito. Assim o direito à saúde precisa conjugar tanto elementos individuais quanto coletivos, já que é tanto um direito de defesa quanto de prestação. A redução do direito à saúde ao acesso a medicamentos, procedimentos e tecnologias que prometem e vendem saúde transformou a saúde num bem de consumo entendido num enfoque individual. Perdeu-se a visão dos determinantes sociais da saúde, ofuscando a perspectiva coletiva. Até agora ninguém entrou na justiça para exigir esgoto e água tratada, o que certamente seria parte integral do direito à saúde. Para entender essa transformação é necessário introduzir o conceito de biopoder.
 

IHU On-Line - Até que ponto essa judicialização da saúde reflete um controle biopolítico efetuado sobre os indivíduos?

José Roque Junges -
Para Foucault, a modernidade significou o surgimento da gestão e normatização da vida e da saúde das pessoas pelo Estado. Essa é a origem da medicina social ou da saúde pública pela qual o Estado normatizou os corpos dos indivíduos e a saúde das populações a serviço do bom funcionamento do capitalismo, que necessitava de força de trabalho sadia e controlada. Essa gestão da saúde e da vida introduziu um controle biopolítico configurado num biopoder. Michael Hardt  e Toni Negri , no seu livro Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), insistem na dimensão produtiva do biopoder, pois o exercício do poder imperial acontece num contexto biopolítico. O sujeito é produzido dentro de um processo biopolítico de constituição social. Não existe apenas um controle sobre a vida, mas o próprio contexto biopolítico em que essa vida se desenvolve é constituído pela máquina imperial. A ontologia dessa produção mudou substancialmente na nova ordem mundial, pois não se trata mais de um controle do Estado. Hoje são as grandes corporações industriais e financeiras que não só produzem mercadorias, mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico, produzindo necessidades, relações sociais, corpos e mentes ou, em outras palavras, produzem produtores do sistema. As indústrias de comunicação jogam um papel de destaque, como legitimadoras da máquina imperial, nessa produção de subjetividades. Como fruto desse processo integrador, o império e seu regime de biopoder tendem a fazer coincidir produção econômica e constituição política.


Agenciamentos simbólicos na saúde

Esse fenômeno analisado por Hardt e Negri é essencial para entender o direito à saúde. As grandes empresas multinacionais farmacêuticas e a indústria médica de biotecnologias exercem hoje um grande biopoder, desenvolvendo dinâmicas biopolíticas de agenciamento simbólico muito mais potentes que a gestão do Estado analisado por Foucault. Eles não só produzem mercadorias e bens para a saúde, mas a própria subjetividade é agenciada simbolicamente para o seu consumo através das indústrias de comunicação. Os profissionais da saúde relatam que, nas segundas-feiras de manhã, muitos usuários chegam à Unidade Básica com exigências de medicamentos e de procedimentos miraculosos dos quais ouviram falar no programa Fantástico na noite anterior. Trata-se de agenciamentos simbólicos para o consumo de produtos identificados com a saúde. A subjetividade é moldada a tal ponto que a pessoa encontra o sentido da cura no consumo daquele produto para o qual foi agenciada. O médico muitas vezes é o intermediário desse agenciamento. Depois dessa análise, cabe ao menos a pergunta a respeito de se a judicialização da saúde não está sendo agenciada por essa dinâmica biopolítica das grandes corporações biotecnológicas farmacêuticas e médicas veiculadas pelo marketing e a indústria da comunicação. A elas interessa o direito à saúde, porque significa lucro à custa do sistema público de saúde.


IHU On-Line - Por que a saúde tem sido reduzida aos direitos do consumidor?

José Roque Junges -
Quais são, hoje, as manifestações e as incidências do bio-poder na saúde? A proliferação de tecnologias médicas, sempre mais sofisticadas de diagnóstico e de terapêutica clínica, e as futuras possibilidades abertas pela medicina genômica, através das terapias genéticas, criam e alimentam aquilo que Lucien Sfez (A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo: Loyola, 1996) chamou de utopia da saúde perfeita que se transforma, aos poucos, numa ideologia de consumo. Dessa utopia faz parte pensar que um dia será possível eliminar todas as doenças pela intervenção no gene. A saúde, na modernidade tardia, passou a ser mais do que cultivada; ela tornou-se uma mania cultural coletiva, chamada por R. P. Nogueira de “higiomania” (do grego hugiês: sadio, saudável, robusto). O grande objetivo desta higiomania é apartar da noção de saúde toda associação possível com doença, morte e envelhecimento. Seu narcisismo não lhe permite encarar essas contingências da vida humana. A higiomania é mais uma expressão da hubris moderna na pretensão de criar seres humanos imortais. Mas Nogueira se pergunta: “imortais para quê? Talvez para continuarem a ser consumidores para todo sempre”. (Nogueira, R.P. Higiomania: a obsessão com a saúde na sociedade contemporânea. In: Vasconcelos E.M. (Org.) A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular em saúde. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 63-72). A realização dessa utopia acontece pelo consumo de tecnologias que oferecem a saúde. Em outras palavras, a saúde transforma-se numa mercadoria a consumir. Essa dinâmica consumista já foi muito bem explicitada por Hésio Cordeiro, tendo como referência o complexo médico-industrial da produção de medicamentos (A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1985). Essa dinâmica consumista pode estar transformando o direito à saúde de um direito coletivo social (direito de prestação coletiva por parte do Estado) a um puro direito liberal de consumo (direito individual de defesa diante do Estado).


IHU On-Line - Em que medida o Direito e a própria saúde contribuem para o processo de normalização dos sujeitos?

José Roque Junges -
A visão consumista normaliza os sujeitos, porque os agencia simbolicamente a identificar saúde com o consumo de produtos e procedimentos que devolveriam por um artifício a normalidade, perdendo-se assim uma visão integral, autopoiética e autônoma da saúde como muito bem demonstrou Ivan Illich em seu célebre livro Nêmesis da Medicina. O direito moderno normaliza os sujeitos, porque, ao se identificar com a defesa dos seus direitos individuais, os imuniza contra os encargos e deveres do coletivo. É o que R. Esposito  (Immunitas: protección y negación de la vida. Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 2005) chama de dimensão imunitária do direito. Para explicar essa lógica imunitária da institucionalidade cultural, social e política da sociedade contemporânea, pano de fundo da sua obra, Esposito parte da explicação do funcionamento imunitário dos seres vivos como sistema biológico de defesa contra qualquer penetração, no próprio corpo, de um ser estranho e diferente do seu código genético, servindo este como tipagem para critério de rejeição. Mas a pura explicação biológica não vai ao fundo da questão. Por isso, Esposito procura interpretar a etimologia da palavra latina immunitas e seu significado no direito. Immunitas é um vocábulo privativo de algo que se carece, o múnus, o encargo, a obrigação, o dever. Imune nesse sentido é aquele que está exonerado de encargos e serviços aos outros. Imune é aquele que não deve nada a ninguém. Mas, segundo Esposito, immunitas não é apenas uma dispensa, mas também um privilégio. Assim, imunidade é percebida como exceção a uma regra que todos outros devem seguir. Portanto, além de privativa, a imunidade é essencialmente comparativa, porque afirma uma diferença em relação à condição dos outros. Nesse sentido, Esposito propõe que “o verdadeiro antônimo de immunitas não é o munus ausente, mas a communitas daqueles que, ao contrário, se fazem seus portadores”. A imunidade é uma condição de particularidade de um indivíduo ou de um grupo em relação a algo “não comum”. Portanto, a imunidade tem um caráter antissocial e anticomunitário, pois interrompe o circuito social da doação recíproca de encargos e deveres, presente na communitas, o cum munus ou o munus comum a todos. Assim, o conceito de referência para entender a dinâmica da imunidade é a comunidade que ela nega. Essa dinâmica imunitária do direito ajuda a entender a redução do direito à saúde em um direito individual de consumo que imuniza contra o direito prestativo do coletivo, isto é, da communitas.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição