Edição 344 | 21 Setembro 2010

A subjetivação ética como desgoverno biopolítico da vida humana

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Márcia Junges

O trinômio disciplina-biopoder-governamentalidade é analisado por César Candiotto, que assinala haver uma tendência capciosa em nossa sociedade, que busca moldar nossa forma de viver, influenciando escolhas, aspirações, desejos e crenças

“A subjetivação ética constitui a forma mais suscetível de despotencializar o governo da individualização. Arrisco-me a dizer que a criação de uma relação diferente com o ato de consumir em nossa sociedade poderia ser uma das formas do desgoverno biopolítico da vida humana, porque implicaria em nova qualificação do desejo, distante de sua modulação governamentalizada e mimeticamente colonizadora da vida interior”. A afirmação é do filósofo César Candiotto na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Há uma tendência “capciosa” em nossa sociedade que tenta “modelar nossa maneira de viver”, invadindo inclusive nossas escolhas, aspirações, desejos e crenças. “De um lado, o indivíduo é regulado enquanto zoé, vida natural, ser vivente; de outro, é modelado como bíos, na sua maneira de viver”. Candiotto resume o trinômio disciplina-biopoder-governamentalidade: “A disciplina normaliza os corpos, o biopoder regula a vida e a governamentalidade administra as possibilidades das ações livres”. O tema foi objeto da conferência O biopoder e a governamentalidade dos sujeitos, ministrado por Candiotto em 15-09-2010, dentro da programação do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana.

Professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Candiotto é graduado em Filosofia por essa instituição, e em Teologia pela PUC do Chile. Cursou mestrado em Educação pela PUCPR e doutorado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e na Universidade de Paris XII com a tese Foucault e a verdade. Organizou as obras Mente, cognição, linguagem (Champagnat: Curitiba, 2008) e Ética: abordagens e perspectivas (Champagnat: Curitiba, 2010).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como se dá a presença do biopoder na governamentalidade dos sujeitos no século XXI?

César Candiotto -
Dificilmente existe uma modalidade de biopoder que pertença exclusivamente ao século XXI. Mais prudente é apontar algumas tendências que reconfiguram práticas recorrentes do século passado: uma primeira é o investimento exacerbado em torno da vida biologicamente regulada por parte da aliança entre ciências médicas, empresas e governos, como será detalhado na terceira questão proposta. Outra tendência, mais capciosa, é a tentativa comum nas sociedades atuais de modelar nossa maneira de viver, nossas escolhas e aspirações, desejos e crenças. Regulação dos processos vitais e modelação da maneira de viver são as duas principais ramificações do poder na governamentalidade dos sujeitos de nossa época. De um lado, o indivíduo é regulado enquanto zoé, vida natural, ser vivente; de outro, é modelado como bíos, na sua maneira de viver. Ocorre que muitas vezes a governamentalidade dos sujeitos é realizada a partir do cruzamento das duas tendências: tanto nosso ser-herdado (Ricoeur ) quanto nosso ser-livre (Sartre ) já não são tão “nossos”. Genética e ciências afins são capazes de alterar nosso patrimônio genético, colocando em jogo nossa identidade pessoal; por sua vez, máquinas de expressão (Deleuze ), como o marketing e a propaganda, procuram criar um campo de possibilidades no qual pensamos ser livres, mas no exterior do qual qualquer possível é descaracterizado.


IHU On-Line - Tendo em vista a tecnologia da informação e a globalização, quais peculiaridades poderiam ser apontadas sobre o biopoder hoje?

César Candiotto –
De um lado, as tecnologias da informação possibilitam visualizar o alcance da atuação do biopoder a partir da rapidez das notícias e da plasticidade das imagens; de outro elas atuam no sentido de perpetuar antigas formas de governamentalidade dos sujeitos em razão de seu nascimento, de seu “sangue”. Em recente artigo do jornal Gazeta do Povo, encontramos a seguinte manchete: “Quanto vale seu sangue?” Ela se refere ao professor William Adams, da Universidade George Washington, que publicou no Journal of Communications uma pesquisa sobre a cobertura televisiva de desastres naturais. Esperava-se que, quanto maior o número de mortos nesses desastres, maior deveria ser o tempo da cobertura da imprensa televisiva. Contudo, um dos resultados surpreendentes é que esse fator representa somente 3% na variação do tempo de cobertura por parte dos telejornais. A conclusão é que o valor de uma morte está relacionado à nacionalidade, ao sangue da vítima. A morte de um europeu equivale à morte de três europeus orientais, nove latino-americanos, 11 árabes do Oriente Médio e 12 asiáticos.

Para além desse artigo, podemos depreender que, se a morte tem um valor diferente em razão da nacionalidade, significa que raciocínio similar poderia ser atribuído à vida. Trata-se da perpetuação da operacionalização do biopoder do século XVIII, quando a soberania passou a ter como princípio a Nação. Foucault e Agamben entendem que os Estados democráticos liberais encontraram sua legitimidade não a partir da concepção abstrata do sujeito de direitos como átomo social, mas em razão da pertença a uma nacionalidade. Quer dizer, o direito é conferido pelo nascimento, ser nascido nesse ou naquele território. As tecnologias da informação e os processos de globalização não mudaram essa realidade, somente a fortaleceram.


IHU On-Line - A partir disso, poder-se-ia falar em uma exacerbação do biopoder? Por quê?

César Candiotto -
É verdade que o campo de atuação do biopoder foi ampliado em virtude dos avanços da engenharia genética, da microbiologia, da nanotecnologia e áreas afins, que demandam uma séria, mas cautelosa, reflexão a respeito do direito ao patrimônio genético, da utilização de células embrionárias para a fabricação de células-tronco e assim por diante. Provavelmente, vivamos numa sociedade mais medicalizada que no passado: obesidade beira o pecado, ausência de consultas rotineiras é identificada com irresponsabilidade, furtar-se às práticas de vacinação assemelha-se ao delito, a inadequação aos padrões de beleza estéticos significa descuido de si mesmo. Contudo, as ciências médicas que demandam o cuidado, são as mesmas que colocam em risco a vida dos cidadãos, sua exposição à morte. A indústria farmacêutica, por exemplo, afirma cuidar da vida de maneira segura e legítima, mas para isso utiliza cobaias humanas sem consentimento informado em países periféricos do mundo onde a legislação é laxa.


Sandra Caponi , no artigo A biopolítica da população (publicado na revista Ciência & saúde coletiva, p. 447) mostra que “A situação dos contaminados pela Aids na África, submetidos às novas pesquisas científicas do AZT entre 1995 e 1998, é um dos exemplos contemporâneos mais instigantes de vida matável, vida espécie, insignificante. O fato de que esses experimentos tenham sido feitos justamente na África, e que a comunidade internacional praticamente pouco se importou com as mortes resultantes da experiência com placebos, demonstra que a vida matável tem uma geografia específica; que o discurso em torno dos direitos humanos, dentre eles a dignidade da vida, é sobreposto ao biopoder, que torna essa mesma vida insignificante. Que os direitos, garantidos entre os iguais e que têm voz, sobrevive à custa daqueles tornados desiguais e sem possibilidade nenhuma de reagir.” Portanto, a exposição ao risco de populações biologicamente delimitadas é um dos maiores exemplos de exacerbação do biopoder.


Quando Foucault, pela primeira vez, se referiu à “ortopedia moral”, quis mostrar que os imperativos morais da sociedade burguesa dos séculos XVIII e XIX eram indissociáveis de tecnologias de poder disciplinares que visavam à constituição de um indivíduo normal e adaptado aos processos de industrialização da época mediante o investimento no corpo: controle do espaço e do tempo, atenção à minúcia dos atos e gestos, criação de um campo de visibilidades, tudo para que o corpo se torne produtivo e a vontade, obediente. Se entendermos por imperativos morais os valores, princípios e regras de uma sociedade específica em razão da constituição de sua identidade coletiva, não podemos deduzir que o cumprimento desses imperativos exija necessariamente uma ortopedia moral. Quando uma pessoa segue regras porque foi educada para discernir quais valores as sustentam e, a partir daí, se propõe torná-las suas em razão de uma escolha racional e deliberada, não estamos diante da ortopedia moral. Em contrapartida, o mesmo raciocínio não se aplica quando se tratam de imperativos mercadológicos. Produtividade, competitividade, empreendedorismo e criatividade têm sido constituídos como imperativos mercadológicos tão relevantes nas sociedades atuais que demandam continuamente uma ortopedia moral, mediante contínuas avaliações de desempenho, investimento infindável em capital humano, cumprimento irretocável de todas as regras organizacionais de acordo com códigos de deontologia específicos, e, principalmente, mensuração da qualidade do comportamento e da conduta pelos resultados práticos – econômicos – a serem alcançados.


Se as disciplinas controlavam os corpos por meio de um jogo de visibilidades em espaços fechados ou semiabertos, os imperativos mercadológicos administram a vida a partir do controle das virtualidades de uma vida em razão do qual nela investem ou deixam-na perecer. A proliferação dos códigos de conduta organizacionais atuais não tem como única razão de existir os imperativos morais, mas principalmente os imperativos mercadológicos. Na sociedade atual os imperativos morais são muitas vezes indissociáveis dos imperativos mercadológicos, ainda que irredutíveis aos mesmos.

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