Edição 343 | 13 Setembro 2010

Os guarani: um povo instituído pela memória mítico-histórica indígena

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Patricia Fachin

De acordo com o sociólogo Walmir Pereira, “a verdadeira natureza do homem guarani, sua humanidade, provém de um caráter divinal que remonta às origens do cosmos, sendo que esta experiência aparece como fundamento do ser no universo”

“Portadores de uma identidade étnica e cultural específica, os guarani contemporâneos desenvolvem uma incessante luta pelo reconhecimento de seus direitos originários aos espaços habitados desde os tempos imemoriais nas terras baixas da América do Sul”, menciona Walmir Pereira, na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo o pesquisador, as coletividades indígenas que migraram para as cidades nos últimos anos do século XX e primeiros anos do século XXI, não perderam traços diacríticos identitários, ao contrário, realçaram “as diferenças entre os modelos de perceber e experienciar a vida social permitindo, assim, que a etnicidade indígena apareça com força político-cultural renovada”. Nesse sentido, citando Boaventura de Souza Santos, Pereira enfatiza que “os povos e coletividades indígenas no Rio Grande do Sul devem ter o direito de invocar sua diferença toda vez que a igualdade lhes discriminar e reivindicar a igualdade toda vez que a diferença lhes desqualifique”.

Os guarani contemporâneos é o tema da palestra que Walmir Pereira ministrará na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, no dia 16-09-2010, às 19h30min. O evento faz parte do Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História e Histórias dos guarani. Pré - evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade.

Walmir Pereira é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente é docente nesta universidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor descreve a identidade dos guarani contemporâneos? Quais suas características?

Walmir Pereira – Portadores de uma identidade étnica e cultural específica, os guarani contemporâneos desenvolvem uma incessante luta pelo reconhecimento de seus direitos originários aos espaços habitados desde os tempos imemoriais nas terras baixas da América do Sul. Concomitante a este movimento de caráter etnopolítico, mantém-se falantes da língua guarani, ativistas de práticas espirituais e zelosos da persistência de vários aspectos da cultura material tradicional.

Contemporaneamente entre os guarani, a verdadeira natureza do homem guarani, sua humanidade, provém de um caráter divino que remonta às origens do cosmos, sendo que esta experiência aparece como fundamento do ser no universo. A sociocosmologia guarani conduz a uma profunda interação entre concreto e abstrato, natureza e cultura, humanidade e divindade, entre heróis mitológicos, deuses e humanos. Os guarani desenvolveram historicamente um tipo ideal de comportamento esperado por sua tradição cultural, melhor dizer instituído pela memória mítico-histórica indígena, visão que é projetada e vivida como uma certeza que cada pessoa carrega consigo em particular, assim como a própria sociedade guarani em sua totalidade. O diálogo com os espíritos, pautado pela constância diária, levado a efeito no templo-opy pela atuação xamânica dos líderes espirituais mediadores das relações entre os mundos natural, social e o sobrenatural, constitui um valioso legado da tradição cultural mbya à humanidade. Os guarani contemporâneos, em especial os mbya, têm plena confiança que seus ancestrais, ocupantes originários da primeira terra (yvy tenonde), foram criados por e na palavra. Como desiderato desta crença, à palavra é conferido o poder de instaurar a comunicação perfeita, dialógica e harmônica entre os mundos socioterrenal, o mundo dos espíritos e seres da natureza e o mundo dos entes sobre-humanos, as divindades.

IHU On-Line - Como o senhor descreve a cultura milenar guarani? Com o processo de urbanização dos indígenas, que aspectos culturais ainda são preservados?

Walmir Pereira – O povo ou sociedade guarani existe espacial e temporalmente, conforme atestam investigações e estudos arqueológicos, linguísticos e etnoarqueológicos, provavelmente há 5.000 anos antes dos acontecimentos históricos que culminaram com o evento-invasão de população não-indígena no espaço socioambiental e territorial do Novo Mundo. Destarte, as parcialidades constitutivas do povo guarani e sua milenar tradição linguístico-cultural e sociocosmológica estão presentes no continente, reproduzindo seu modus vivendi tradicional e imemorial, muito antes da América ser moldada geográfica e politicamente pelos modernos Estados Nacionais latino-americanos, emergentes das ações sociopolíticas de independência continental frente aos reinos Ibéricos.
Os guarani têm seu centro de origem e processo dispersivo na região amazônica, locus a partir de onde possivelmente teriam partido e, a partir de então, consolidado um movimento de expansão e ocupação de espaços territoriais no continente americano. Nessa empreitada, conquistadora e colonizadora em direção ao território meridional da América do Sul, os grupos e parcialidades guarani percorreram distâncias imensas em um período epocal de longa duração. Em termos linguísticos, a língua guarani falada pelos grupos étnicos kaiová, mbya e ñandeva ou xiripa, tradicionais habitantes das Terras Baixas sul-americanas, enquadra-se na família linguística Tupi-guarani, pertencente ao tronco Macro Tupi. A referida família encontra-se presentemente subdividida em três ramos dialetais: o kaiová, o mbya e o nhandeva, os quais compõem uma unidade linguística e sociocultural relativamente homogênea.

Grosso modo, esses indígenas vêm reproduzindo, milenarmente, características distintivas de seu modus vivendi, marcas identitárias e de pertencimento - assentadas particularmente na organização social do parentesco, espiritualidade e domínio socioambiental do espaço -, que conformam uma cultura prático-simbólica e cosmologia singular. Em boa medida corroboro, também, as assertivas de especialistas em antropologia guarani que atestam, em estudos das últimas três décadas, que os guarani inseriram e continuam a inserir ao longo de sua longa história tênues modificações, ressignificações e ressemantizações em sua cultura, propiciadas, sobretudo, pela experiência drástica da situação de contato vivenciada a partir do processo de invasão espanhola e portuguesa em seus espaços tradicionais de domínio.
É interessante perceber que, especificamente no que tange aos casos brasileiro e gaúcho em particular, a presença de indígenas guarani - assim como de outros grupos étnicos e coletividades indígenas que migraram para as cidades nos últimos anos do século XX e nos primeiros anos do século XXI, ao invés de ter levado à invisibilização ou acarretar a perda de traços diacríticos identitários - têm produzido o efeito contrário de realçar as diferenças entre os modelos de perceber e experienciar a vida social permitindo, assim, que a etnicidade indígena apareça com força político-cultural renovada. Em que pese o aparecimento de novas situações de risco e problemas de marginalização e preconceito aberto, também detectáveis nos processos de urbanização dos coletivos indígenas, a tônica que tem preponderado é a de reforço dos laços de solidariedade e vínculos coletivos que podem ser expressos na máxima segundo a qual na cidade os indígenas são (tornam-se) mais indígenas ainda, quando comparados com os processos de fricção interétnica experimentados nos espaços confinados das terras e reservas indígenas que concentram-se em espaços territoriais ruralizados.

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