Edição 342 | 06 Setembro 2010

A escolástica e os direitos humanos

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Alfredo Culleton, Márcia Junges e Graziela Wolfart

João Madeira entende que a formação escolástica não foi incompatível com uma postura crítica da colonização das Américas

“Um estudo aprofundado de temas escolásticos, como a diferença entre o direito natural e o direito positivo, o problema do mal, e a noção de ‘corpo político’, certamente enriqueceriam o debate sobre as bases da política latino-americana, desde o período colonial, passando pelos processos de independência dos vários estados e chegando até os dias atuais”. A consideração é de João Madeira, filósofo, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “o aristotelismo português assume no Brasil, tanto quanto em Portugal, uma posição média e estratégica para uma perfeita concepção da Filosofia, não só como disciplina normativa suscetível de contingências históricas, mas também como atitude reflexiva atemporal. Os missionários e autoridades da administração do Brasil eram egressos daquele ensino”. E lembra que “a escolástica sempre se pautou pela abertura a ideias e a saberes de outras fontes, que não se restringiam ao familiar e já conhecido”.

Graduado em Filosofia pelas Faculdades Claretianas de Batatais e em Teologia pelo Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeiro Preto, João Madeira é especialista em Filosofia Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), mestre em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve e doutor em Filosofia pela mesma instituição, com a tese Pedro da Fonseca’s Isagoge Philosophica and the Predicables from Boethius to the Lovanienses. Fez pós-doutorado em História das Ciências na Universidade de São Paulo (USP). Membro do Centro de Filosofia Brasileira (CEFIB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é professor de História da Filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como a Segunda Escolástica se insere na filosofia no Brasil?

João Madeira -
Para contextualizar a relação entre a Segunda Escolástica e a filosofia no Brasil, é necessário lembrar o fato de que os missionários e os encarregados da administração, enviados de Portugal para o Brasil ao longo dos primeiros séculos de colonização, foram todos formados no contexto da Segunda Escolástica. Talvez, o caso mais emblemático seja o dos missionários jesuítas. Isto porque o Colégio das Artes de Coimbra foi entregue aos jesuítas em 1º de outubro de 1555. Os jesuítas tinham ainda outros colégios em Portugal e a direção da Universidade de Évora. O ensino dos jesuítas foi gestado no contexto da Contra-Reforma e tendo como pano de fundo a luta entre aristotélicos e antiaristotélicos, que precedeu o surgimento da ciência e da filosofia modernas. Conhecido como Ratio Studiorum, o método de estudos dos jesuítas estabeleceu regras para o ensino de disciplinas como a lógica, a psicologia, a ética, as matérias referentes às ciências da natureza (especialmente a física) e a metafísica. O grande objetivo declarado era não apenas ser a melhor preparação para os estudos posteriores de Teologia, de Medicina e de Direito, mas também ser o mais solidamente fundado na doutrina aristotélica, em Filosofia e no tomismo, em Teologia, sem, contudo, jamais descuidar da busca pela verdade, quaisquer que fossem suas fontes.


Humanismo renascentista e escolasticismo

Frequentemente se considera que o humanismo renascentista foi uma superação completa e que estava em oposição total ao escolasticismo. Se esta separação radical entre estas duas orientações filosóficas fosse real, grande parte da filosofia dos séculos XVI e XVII seria totalmente incompreensível. A mútua influência e interdependência entre renascimento e filosofia escolástica ainda é mais evidente na filosofia da península ibérica daqueles dois séculos. O ensino da Filosofia em Portugal, entre 1500 e 1772, foi pautado pelo estudo dos clássicos e dos principais autores de cada escola da filosofia medieval. Este estudo era possível, sobretudo, pela ênfase no ensino cuidadoso das línguas grega e latina. Um dos objetivos principais do estudo dos clássicos era inculcar nos jovens estudantes os mesmos sentimentos e a mesma nobreza de caráter que brotava dos textos de autores como Cícero  e Quintiliano . O caráter escolástico do ensino de Filosofia sob o Ratio Studiorum é evidente. Todavia, convém destacar que o aristotelismo defendido no Colégio das Artes de Coimbra, desde a sua fundação, não é o mesmo aristotelismo escolástico combatido em várias universidades europeias dos séculos XV e XVI. Humanistas controversos como Pedro Ramus , que foi um conhecido professor da Universidade de Paris, entraram em polêmica com os aristotélicos de seu tempo.


Validade objetiva no ensino filosófico

No âmbito da mudança de uma tradição científica decadente – o aristotelismo escolástico refratário ao humanismo – para o modelo matemático-experimental das ciências da natureza, a introdução da necessidade de validade objetiva no ensino filosófico permitiu aos jesuítas contribuírem, através do Ratio Studiorum, não só para a formação de homens como Galileu e Descartes, como também para a superação definitiva do dogmatismo de que se revestira aquele tipo de aristotelismo. Independentemente de qualquer juízo de valor, a exigência de validade objetiva no estudo filosófico é por si só suficiente para caracterizar um autêntico aristotelismo português como sendo também o âmbito das primeiras pesquisas filosóficas no Brasil. O aristotelismo português assume no Brasil, tanto quanto em Portugal, uma posição média e estratégica para uma perfeita concepção da Filosofia, não só como disciplina normativa suscetível de contingências históricas, mas também como atitude reflexiva atemporal. Os missionários e autoridades da administração do Brasil eram egressos daquele ensino.


IHU On-Line - Quais são as influências da escolástica na política latino-americana?

João Madeira -
Tenho um pouco de dificuldade para responder a esta questão, pois as áreas da Filosofia em que tenho trabalhado nos últimos anos são a lógica, a metafísica e a história da Filosofia. Na graduação em Filosofia, ainda na juventude, cursei a disciplina Filosofia Política. Contudo, além dos quase vinte anos que já se passaram desde aquele tempo, há também o fato de que era uma disciplina geral e, portanto, não específica sobre a política latino-americana. O que posso dizer a este respeito é que um estudo aprofundado de temas escolásticos, como a diferença entre o direito natural e o direito positivo, o problema do mal, e a noção de “corpo político”, certamente enriqueceriam o debate sobre as bases da política latino-americana, desde o período colonial, passando pelos processos de independência dos vários estados e chegando até os dias atuais.


IHU On-Line – O senhor percebe uma relação entre a escolástica e os movimentos revolucionários em nosso continente? Se sim, quais seriam esses nexos?

João Madeira –
Novamente, tenho que dizer que não sou estudioso dos movimentos revolucionários no continente americano e, desta maneira, não tenho como analisar possíveis relações com a escolástica. O que sei é que o método escolástico favorecia o debate. Havia inclusive um momento importante dos estudos que os escolásticos chamavam de “disputas”. Contudo, entre a abertura para as disputas em torno de ideias e os movimentos revolucionários há um passo enorme. Ainda que revoluções sejam inspiradas por ideais e executadas por indivíduos com talento e combatividade aguçados, não são travadas apenas ao nível das discussões teóricas, mas envolvem ações decisivas. Não era o caso das “disputas” escolásticas, que exigiam talento e combatividade, mas que não eram voltadas para ações. Talvez, não se deva generalizar a partir de poucos exemplos, mas pelo menos no caso de Bartolomeu de Las Casas e de Antonio Vieira, a formação escolástica não foi incompatível com uma postura crítica da colonização das Américas. Pode-se dizer que, tendo sido formados dentro do contexto da Segunda Escolástica, Las Casas em Salamanca e Vieira em Salvador da Bahia, foram árduos defensores de uma mudança radical no foco da ação de espanhóis e portugueses nas Américas, principalmente ao defenderem que os indígenas não podiam ser vistos como meios para o enriquecimento das metrópoles, em nenhuma circunstância. 


IHU On-Line - Pode-se falar entre uma convergência de princípios entre a escolástica e os direitos humanos? Por quê?

João Madeira -
Do ponto de vista da metafísica, ou seja, dos princípios e abordagens gerais da natureza em geral e da natureza humana em particular, fica claro que há uma relação entre alguns postulados da escolástica e os direitos humanos. Uma questão discutida na escolástica era a das diferenças entre as várias espécies que pertencem a um mesmo gênero e a diferença que pode haver entre os indivíduos de uma mesma espécie. No que se refere às diferenças entre diferentes espécies de um mesmo gênero, os escolásticos diziam haver uma differentia specifica (característica própria de uma espécie que estaria ausente de todas as outras espécies do mesmo gênero). Assim, os escolásticos diziam que a racionalidade era uma diferença específica dos seres humanos e que, portanto, não estaria presente em qualquer dos outros animais. O ponto importante era que os escolásticos diziam que entre os seres humanos, ou seja, entre um ser humano e outro, não haveria diferença específica, mas que cada ser humano é igual em dignidade. Ora, este último ponto está justamente na base da declaração universal dos direitos da pessoa humana, pois tal declaração inicia-se afirmando a “dignidade inerente a todos os membros da família humana”. A declaração soma, ao reconhecimento desta dignidade, a afirmação dos “direitos iguais e inalienáveis” da pessoa humana e diz que são “o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. A metafísica escolástica seria, assim, a base da base ética da declaração dos direitos humanos.


IHU On-Line - Qual é a atualidade da escolástica em termos de diálogo com outros saberes?

João Madeira -
A abertura para o diálogo com opiniões diferentes e para contribuições de outras áreas da cultura sempre foi uma característica marcante da escolástica. Desde Boécio  até Francisco Suárez houve grande preocupação com o estudo das sete artes: as três artes da linguagem e as quatro artes matemáticas. Foram os escolásticos que se preocuparam em traduzir as obras dos filósofos árabes para o latim e que os estudaram com grande interesse, mesmo sabendo que se tratavam de autores de outra religião, com a qual o ocidente cristão esteve por séculos em guerra. Isto me parece sinal evidente de que havia abertura para buscar a verdade, qualquer que fosse a fonte onde pudesse ser encontrada. Mesmo diante de tantas diferenças, os escolásticos não recuaram. Portanto, parece acertado dizer que a escolástica sempre se pautou pela abertura a ideias e a saberes de outras fontes, que não se restringiam ao familiar e já conhecido.

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