Edição 342 | 06 Setembro 2010

A influência de Ockham na Segunda Escolástica

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Márcia Junges e Alfredo Culleton | Tradução Benno Dischinger

Há um nexo indiscutível entre a filosofia do filósofo nominalista com o pensamento desenvolvido pela Escolástica, analisa Alessandro Ghisalberti. Ideias ockhamianas chegam até a modernidade, em Kant e em sua filosofia moral

Guilherme de Ockham não foi um nominalista no sentido negativo do termo, explica o filósofo italiano Alessandro Ghisalberti na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “Neste sentido, muitos filósofos e teólogos da Segunda Escolástica valorizaram a teoria de Ockham sobre os universais (contra toda forma de realismo dos conceitos), sobre a linguagem científica (contra toda hipostatização de termos como essência, natureza, espaço, tempo, movimento), e contra a proliferação das distinções que não sejam a distinção real e a de razão (“‘Não se devem multiplicar entes sem necessidade’; eis a famosa navalha de Ockham!”) Outra contribuição importante desse pensador é para a ontologia, filosofia da natureza e da política ao afirmar o primado do indivíduo em relação ao gênero e à espécie. As influências de Ockham para a Segunda Escolástica são inegáveis, e chegam até a modernidade, na filosofia moral de Kant, por exemplo.

Ghisalberti é professor de História da Filosofia Medieval na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão, onde é diretor do Departamento de Filosofia. Membro da Sociedade Internacional para Estudos da Filosofia Medieval (SIEPM), escreveu diversas obras, das quais destacamos Introduzione a Ockham (Roma: Bari, 1976) e Guglielmo di Ockham (Firenze: Scritti filosofici, 1991).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual é a influência de Ockham sobre a Segunda Escolástica?

Alessando Ghisalberti -
São dois os elementos emergentes da historiografia filosófica mais recente sobre a valoração da obra de Guilherme de Ockham: antes de tudo, o mestre inglês, considerado o iniciador da “via moderna”, não foi um nominalista, no sentido negativo do termo. Se por nominalismo se entende a teoria da insignificância do universal, do seu reduzir-se a um flatus vocis, a mera vocalização convencional destituída de toda carga semântica ligada ao mundo do pensamento e do conceito, Ockham não foi nominalista. Seu nominalismo é entendido como um terminismo, ou seja, como uma teoria do uso rigoroso dos termos (termos mentais, ou conceitos, orais e escritos), correspondente às peculiares características da lógica e da linguagem. Neste sentido, muitos filósofos e teólogos da Segunda Escolástica valorizaram a teoria de Ockham sobre os universais (contra toda forma de realismo dos conceitos), sobre a linguagem científica (contra toda hipostatização de termos como essência, natureza, espaço, tempo, movimento), e contra a proliferação das distinções que não sejam a distinção real e a de razão (“não se devem multiplicar entes sem necessidade”: eis a famosa navalha de Ockham!).


Primado do indivíduo

Em segundo lugar, Ockham deu contribuições inovadoras no plano da ontologia, da filosofia da natureza e da política, mediante a afirmação do primado do indivíduo com respeito ao gênero e à espécie: presença não-repetível e irreprimível no cosmo criado e ordenado pela “infinita potência do Criador”; o indivíduo, qualquer indivíduo pertencente ao mundo do devir, do movimento espaço-temporal, é originado do imperscrutável ato de liberdade com que o Criador fez surgir o mundo a partir do nada inicial na vertente dos entes finitos. O indivíduo tem a força de existir e se encontrar precisamente por sua não-repetibilidade, sua característica singularidade, a qual lhe impede de perder identidade e consistência: sem indivíduos a contingência já seria anulada em seu esforço de nascer. A influência destas doutrinas estará muito presente nos autores franceses do século XV ao XVIII, tanto escotistas como boaventurianos, os quais reivindicam o primado da liberdade do sujeito contra toda forma de absolutismo da razão (sobretudo criticando Descartes), ou do poder político e religioso.


IHU On-Line - Como se deu a recepção de Ockham pela Segunda Escolástica na Itália e na Europa?

Alessando Ghisalberti -
É difícil elencar com precisão a recepção de Ockham na Segunda Escolástica (séculos XIV-XVII): são conhecidos os nomes dos mais renomados mestres dos séculos XIV-XV pertencentes à “via moderna” da qual Ockham foi o iniciador (Venerabilis Inceptor): Alberto Magno  e Alberto da Saxônia, Buridano, Strode, Paulo Veneto, no que se refere aos dialéticos verdadeiros e próprios; Giovanni Balbi de Gênova dito o Catholicós, Niccolò Trevet, Benvenuto da Imola entre os literatos: Bartolo di Sassoferrato, Baldo degli Ubaldi e Cino da Pistoia entre os juristas. A subsequente divisão, na Europa, dos ensinamentos segundo as cátedras (tomistas, escotistas, albertistas, ockhamistas), que durou até todo o século XVI, recolheu diversos seguidores, entre os quais Gabriel Biel e seu mais célebre discípulo Martinho Lutero: sua escolha do ockhamismo se coloca sobre os desenvolvimentos de uma linha estritamente teológica (doutrina do mérito e da graça). Na modernidade, o influxo de Ockham é relevante também nos seguidores do empirismo, na lógica transcendente e na filosofia moral de Kant.

É certamente notável a obra dos pensadores da Segunda Escolástica que, nos séculos XV-XVII, retomaram e desenvolveram as doutrinas dos grandes mestres da Escolástica medieval: os nomes de maior realce são aqueles de Tommaso de Vio (dito o Gaetano), B. Mastri e B. Belluto para a Itália, e de F. Suarez, L. de Molina, F. de Vitoria, J. de Mariana e João de Santo Tomás para a Europa.

Em geral se pode afirmar que aquela, que comumente é chamada Segunda Escolástica, suportou, de fato, os desenvolvimentos e o ensinamento da Filosofia, da Teologia e do Direito nas instituições escolásticas oficiais, ligadas às escolas superiores (faculdades) religiosas ou públicas, habilitadas a emitir títulos acadêmicos na Itália e na Europa.

Os maiores filósofos da modernidade, presentes nos manuais de História da Filosofia, não têm sido docentes nas universidades, mas pertenceram a círculos de pensadores sábios ou savants, que atuavam em correspondência entre si (como o foram Descartes, Hobbes, Locke, Spinoza , Pascal , Hume). A Segunda Escolástica sustentou e cumpriu, ao invés, os programas curriculares dos estudos graduados de toda a Europa. Não se pode, portanto, qualificá-la como pensamento menor ou irrelevante, tanto porque tal não é um pensamento que resistiu por três séculos, como porque os seus desenvolvimentos produziram obras conspícuas e assinalaram a historicidade intelectual das universidades europeias do século XV ao século XVII.


IHU On-Line – Qual é a relação da lei natural e direito natural em Ockham e na atualidade?

Alessando Ghisalberti -
Ockham constrói sua ética sobre a base da reconhecida liberdade da vontade do homem, e a liberdade permanece como requisito preliminar da ética, a qual parte do reconhecimento do alcance universal da lei natural. Ockham define o direito natural em sua acepção mais rigorosa como “o que é conforme à razão natural”, e é imutável e invariável. O apelo à retidão da razão natural se apóia sobre o reconhecimento de que o criador da natureza racional e das leis que a regulam é Deus.

Sobre a fundamentação teológica da ética, Ockham afirma como teólogo que, para que um ato seja moralmente relevante, é requerida a explícita conformidade à vontade de Deus. O sentido último da necessidade para que uma ação moral seja cumprida em adesão à vontade de Deus - ou seja, na consciência de cumprir uma ação que responde a um comando de Deus -, coincide com a afirmação que somente o amor de Deus é o fim beatificante do homem.

Já destes destaques, que desenvolverei melhor no meu relato ao simpósio na Unisinos, emerge a importância, direi até a necessidade, de refletir também hoje sobre temas da lei natural e do direito natural, para encontrar um acordo entre as teorias éticas dos filósofos e as doutrinas morais dos teólogos, indagando de modo equilibrado sobre os traços fundantes da ética racional e aqueles da ética revelada. Não estou pensando apenas no conhecido debate de tipo moral no plano da bioética ou das biotecnologias. Mas penso principalmente no âmbito da antropologia, na renovação do conceito de racionalidade e na elaboração de um projeto sobre o sentido do agir humano. Considero isso fundamental num mundo hoje marcado por uma avançada globalização, a qual ofuscou e marginalizou a reflexão sobre a importância do empenho de cada um sobre os valores irrenunciáveis da pessoa humana e sobre sua aspiração à verdadeira felicidade.

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