Edição 341 | 30 Agosto 2010

As hidrelétricas modificam o clima?

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Graziela Wolfart

“Não se pode afirmar que haja modificação do clima no RS a partir das hidrelétricas”, afirma a engenheira florestal Silvia Pagel, da Fepam

“Se considerarmos a água um recurso natural renovável e que o impacto ambiental é bem menor que o de fontes não renováveis como o carvão, petróleo, gás natural e a energia nuclear, as hidroelétricas podem ser consideradas como produtoras de energia limpa”. A constatação é da engenheira florestal Silvia Pagel, da Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam-RS, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Entretanto, continua ela, “sua construção deveria ser preterida sempre que for possível o uso de fontes de energia mais limpas, como a eólica e a solar, uma vez que os impactos dos barramentos necessários para a geração de eletricidade é considerável tanto sob o ponto de vista ambiental, como social, destacando-se as alterações no regime hidrológico e nos ecossistemas aquáticos e terrestres e nas regiões ocupadas a realocação da população com a perda de seu território e de parte de sua rede de relações”. Silvia ainda acrescenta que as mudanças provocadas pelas hidrelétricas e barragens no Rio Grande do Sul “podem ocorrer no microclima nas áreas de entorno aos reservatórios, com alterações no regime de ventos, temperatura, umidade, etc.”

Graduada em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Silvia Pagel é especialista em Geografia Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Tem experiência na área de planejamento ambiental, avaliação de impacto e licenciamento ambiental. Desenvolve suas atividades no Departamento de Qualidade Ambiental da Fepam, especialmente na área de gestão dos recursos naturais e da biodiversidade. Participou da equipe de coordenação do Diagnóstico Ambiental da Bacia do Taquari-Antas: Diretrizes Regionais para o Licenciamento Ambiental das Hidrelétricas e do Zoneamento Ambiental para a Atividade de Silvicultura no Rio Grande do Sul. Atualmente integra a equipe responsável pela elaboração do Programa RS-Biodiversidade, a ser implementado pelo governo do estado através da Secretaria do Meio Ambiente e Emater.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line - Quais as vantagens e desvantagens da produção de energia por hidrelétricas se considerarmos as condições da natureza do Rio Grande do Sul?

Silvia Pagel -
O regime pluviométrico do Rio Grande do Sul favorece a geração de energia por hidrelétricas, uma vez que, além de apresentar índices de precipitações relativamente elevados, tem uma boa distribuição anual destas, o que se reflete na necessidade de menor volume de água represada por potência instalada. Os vales encaixados comuns no planalto favorecem o represamento da água, diminuindo, assim, o índice da área alagada por potência instalada. Por este motivo, os inventários do potencial hidrelétrico no Rio Grande do Sul estão concentrados na região do planalto, uma região que sofreu intensa descaracterização da sua cobertura florestal e onde os remanescentes desta vegetação estão concentrados justamente nas áreas íngremes das encostas onde são construídas as hidrelétricas.

IHU On-Line - Podemos considerar as hidrelétricas como produtoras de energia realmente limpa?

Silvia Pagel -
Se considerarmos a água um recurso natural renovável e que o impacto ambiental é bem menor que o de fontes não renováveis como o carvão, petróleo, gás natural e a energia nuclear, as hidrelétricas podem ser consideradas como produtoras de energia limpa. Entretanto, sua construção deveria ser preterida sempre que for possível o uso de fontes de energia mais limpas, como a eólica e a solar, uma vez que os impactos dos barramentos necessários para a geração de eletricidade é considerável tanto sob o ponto de vista ambiental, como social, destacando-se as alterações no regime hidrológico e nos ecossistemas aquáticos e terrestres e nas regiões ocupadas a realocação da população com a perda de seu território e de parte de sua rede de relações. 

IHU On-Line - Como a Fepam procede em relação à liberação das licenças ambientais para a instalação de hidrelétricas no Rio Grande do Sul? Quais os critérios que devem ser observados antes de liberar as obras?

Silvia Pagel -
A Fepam foi pioneira, em 2001, quando realizou o estudo integrado da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas , com previsão de implantação de 55 empreendimentos hidrelétricos, ao longo do Rio das Antas e principais tributários. Este estudo estabeleceu diretrizes para o licenciamento ambiental, com base no diagnóstico ambiental da bacia e na capacidade do ambiente para receber estes empreendimentos. Foram considerados inviáveis 17 empreendimentos, assegurando livres de barramentos um rio da região do planalto (rio Tainhas) e um rio da região da encosta (rio Guaporé), além do trecho médio do rio Taquari-Antas e a região de cabeceiras da bacia, com endemismos de peixes, além de outras diretrizes ambientais. Também foram feitos estudos semelhantes para as bacias do Apuaê-Inhandava  e do Ijuí-Butui-Piratini-Icamaquã , na região hidrográfica do rio Uruguai. Estes estudos são importantíssimos, pois agregam ao processo de licenciamento uma análise dos impactos ambientais em escala regional, o que não é possível na análise caso a caso.
Excluídos os empreendimentos considerados inviáveis nos estudos de bacia, o empreendedor deverá elaborar o Relatório Ambiental Simplificado – RAS ou o Estudo de Impacto Ambiental – EIA-RIMA, de acordo com o previsto na Resolução Conama nº 279/2001, para avaliação, pelo órgão ambiental, da viabilidade do empreendimento no local proposto. Cabe destacar neste processo o papel dos Comitês de Bacias, citando o exemplo do Comitê do Caí, que se posicionou contrário à construção de usinas hidrelétricas no trecho médio do rio Caí e esta decisão deve ser respeitada pelo órgão ambiental licenciador.

IHU On-Line - Quais os principais riscos ecológicos provocados pelas hidrelétricas ao clima gaúcho?

Silvia Pagel -
As mudanças, em determinadas situações, podem ocorrer no microclima nas áreas de entorno aos reservatórios, com alterações no regime de ventos, temperatura, umidade, etc. Entretanto não se pode afirmar que haja modificação do clima no Rio Grande do Sul a partir da formação destes reservatórios, uma vez que o clima regional é influenciado por fatores de grande escala. Na bacia do Taquari-Antas, os resultados do monitoramento climático em andamento por algumas empresas, com registro de temperatura, umidade, pressão, vento, radiação solar global e precipitação têm demonstrado que os dados coletados estão em concordância com o clima regional do período.

IHU On-Line - Como as hidrelétricas e as barragens alteram a ecologia dos peixes de água doce no Rio Grande do Sul? E como elas modificam a dinâmica de população dos peixes?

Silvia Pagel -
Para responder a estas questões tive a colaboração do professor Fernando Becker, do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, que destaca dois impactos principais sobre os peixes decorrentes da construção de barragens: o primeiro é a interrupção das rotas de migração de peixes como o dourado, por exemplo. O ciclo de vida desses peixes depende de que eles tenham acesso a diferentes partes das bacias hidrográficas, o que envolve migrações por longas distâncias. Com a interrupção das rotas de migração, os peixes não conseguem chegar aos seus locais de desova ou de crescimento e, com isso, não ocorre a renovação das populações com novos indivíduos. Isso não significa que seja impossível construir barragens sem prejudicar peixes migradores. Mas a solução para isso não é trivial e depende, entre outras coisas, de identificar a existência de rotas alternativas e de garantir que essas não sejam interrompidas ou determinar se a desova pode ocorrer à jusante das barragens. No caso da construção de muitas barragens em uma mesma bacia, esse efeito é potencializado e acaba afetando também espécies não migratórias, que não se adaptam ao ambiente de reservatório e que possuem populações pequenas ou dispersas. Essas populações dependem de que os indivíduos possam deslocar-se, mesmo que por pequenas distâncias, tanto para reproduzir quanto para exercer o que se denomina “efeito resgate”. O efeito resgate ocorre quando novos indivíduos colonizam uma área, ajudando a recompor a população local após um evento de redução do tamanho populacional ou mesmo de extinção local. Quando há muitas barragens na malha hidrográfica, essa possibilidade de efeito resgate fica também reduzida.

O segundo aspecto a destacar é que as barragens podem, em diferentes graus, alterar o regime hidrológico dos rios. O ciclo de vida de muitas espécies de peixe e de outros organismos está associado às flutuações naturais do regime hidrológico, que geram diversas modificações no ambiente ecológico dos rios como, por exemplo, flutuação na disponibilidade de alimentos para os peixes jovens, alterações nas características físicas e químicas da água, acesso a habitats na planície de inundação. O próprio desencadeamento fisiológico da reprodução de certas espécies pode depender de “sinais” dados pelo rio quando sua vazão começa a aumentar durante o período de cheias. Logo, o impacto sobre os peixes pode ser muito elevado nas bacias cujo regime hidrológico adquire uma dinâmica muito diferente daquela existente sem as barragens. Na dinâmica das populações de peixes esses impactos se refletem em vários momentos, impedindo a renovação das populações a cada geração, levando assim ao declínio populacional e eventualmente à extinção. Especificamente, as alterações descritas prejudicam a taxa de natalidade, pois podem impedir que ocorra a desova, aumentam a mortalidade dos ovos, larvas e jovens, e bloqueiam o trânsito de indivíduos, impedindo o efeito resgate em populações que estejam decrescendo ou localmente extintas.

IHU On-Line - Em que medida as hidrelétricas interferem na rede de água e de esgotos das cidades?

Silvia Pagel -
Conforme técnicos desta Fundação existem dois tipos básicos de configuração de usinas hidrelétricas:

- geração no pé da barragem;

- geração com alça de vazão reduzida.

Na geração no pé da barragem, a formação do reservatório diminui a velocidade das águas do rio, e consequentemente diminui a capacidade de aeração e autodepuração. Portanto, apesar do maior poder de diluição no reservatório, os esgotos lançados sofrerão menos aeração e depuração do que nos trechos de correnteza. Na geração com alça de vazão reduzida, os reservatórios são menores; porém, parte do rio é desviada para a Casa de Força (geração) e outra parte prossegue no curso normal do rio até encontrar com as águas que foram desviadas para geração. Este trecho de rio, cuja parte das águas foi desviada para geração, denomina-se alça de vazão reduzida. Neste trecho (alça) do rio, o poder de diluição é menor, devido à diminuição da vazão. É o local de maior impacto para lançamento de esgotos e outros tipos de matéria orgânica. No caso dos sistemas de abastecimento de água, as captações localizadas em alças de vazão reduzidas estarão prejudicadas, e devem ser realocadas para trechos de maior vazão.

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